sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Denunciar a maldição das certezas, convocar os pedagogos*

Philippe Meirieu

Versão portuguesa de Daniel Lousada [Mudar para PDF >>>]

Vivemos hoje assombrados pela maldição das certezas que transformam o debate democrático em fúteis disputas oratórias, confrontos estéreis de toda espécie, quando não é a violência que abala gravemente o vínculo social. A maldição das certezas que invadem o campo social e paralisam qualquer busca serena da verdade em favor das "notícias falsas", das teorias da conspiração ou dos dogmas sectários mais ou menos esotéricos; a maldição das certezas, promovidas pelos motores de busca comerciais e por todos os senhores do digital, que preferem a sedução da resposta “certa” ao exame crítico de hipóteses possíveis; a maldição das certezas que bloqueiam a aprendizagem de crianças e adolescentes, enquistados no que acreditam saber, e que rejeitam tudo que possa desestabilizá-los. Enfim, uma maldição de certezas que bloqueia a investigação, e dificulta o diálogo necessário e fecundo entre as nossas convicções e o nosso saber

O debate educativo contemporâneo está a enredar-se em conflitos de certezas que paralisam qualquer diálogo autêntico. É urgente promover um diálogo sereno que exclua completamente afirmações como: "Esta é a verdade científica que deve ditar todas as decisões”! E, em vez deste teatro de sombras dogmático, que hoje triunfa, deveríamos ser capazes de debater e explicar os nossos objectivos ["Isto é o que acredito ser necessário para os nossos filhos..."], a nossa área de referência ["Este é o campo em que trabalho e estes os dados que investigo..."], os nossos conhecimentos estabilizados ["Isto é o que me parece adquirido no momento presente..."] e as nossas propostas ["Isto é o que me parece desejável e que deve ser posto à prova..."]. Sem esta abertura às diferentes dimensões do conhecimento, na educação, receio que estejamos condenados a um diálogo interminável de surdos.

Em suma, gostaria que fossemos um pouco mais "pop­perianos", tanto em debates democráticos como em diálogos sobre educação, tanto nas nossas práticas, enquanto cidadãos, como nas nossas práticas, enquanto educadores. Gostaria que apostássemos um pouco mais no domínio da investigação e do conhecimento autêntico... e menos no domínio da propa­ganda.

Precisamos de convocar as grandes figuras da pedagogia, abordando-as não de um ponto de vista enciclopédico, mas segundo uma lógica de "descoberta", no âm­bito de um movimento de procura de sentido e de diálogo com os nossos próprios compromissos. Dialogar com Pestalozzi ou Itard, Freinet ou Montessori, Rous­seau ou Jacotot, procurando encontrar neles algo que nos ajude a compreender esta ou aquela dimensão essencial... Não como autores de obras sub speciae aeter­nitatis** que bastaria conhecer e admirar numa dimensão cultural [embora isto não seja de forma alguma negligenciável], mas sim como interlocutores, eles próprios lutando com contradições, com problemas por vezes intransponíveis... mas, por vezes, também, em contacto com os seus próprios demónios, que podem ser os nossos, e deixarmos-nos, quem sabe, abalar pela sua história e pelos seus pensamentos

Peguemos nas diferentes contribuições – de sociólogos, historiadores, neurocien­tistas, psicanalistas, linguistas, filósofos, escritores, o que seja – mas tomemo-las apenas pelo que são: contribuições, apenas isso. 

Reabramos constante e obstinadamente a questão dos fins e dos métodos, através do património pedagógico [legado dos pedagogos]. Esta deve ser, hoje, a nossa prioridade.

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* No original «Philippe Meirieu dénonce "la malédiction des certitudes", en éducation notamment (interview exclusive)» – uma entrevista apresentada, nesta versão, em jeito de artigo: uma leitura do que me ficou de mais importante, para os tempos que hoje vivemos.
** Em Inglês, sub specie aeternitatis significa aproximadamente "a partir da perspectiva do eterno".

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A pedagogia e o digital: em que é que ficamos?

Philippe Meirieu

Versão portuguesa [condensada] de Luís Goucha

Assistimos, com um misto de preocupação e sensação de impotência, a um processo de desinstitucionalização da escola. Em poucos anos, passámos de uma escola institucional e estável, para uma “lógica de serviço”, onde cada um surge, conforme lhe apetece, com o que lhe apetece, esquivando-se da mínima contrariedade. Se, antigamente, se entrava na escola como quem entra num teatro, hoje entra-se na escola como numa sala de estar, em que a televisão está ligada e, se o programa não agrada, tiramos o comando ao vizinho e mudamos de canal. Num contexto assim, estruturar um colectivo é quase impossível. LER MAIS >>>

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

O poder das imagens no imaginário

Leitores dão uma vista de olhos aos livros da biblioteca de Holland House,
em Londres, alvo de uma bomba incendiária em 22 de Outubro de 1940
Luís Goucha

Para quem viveu mal a Escola, esta é uma imagem de felicidade: a destruição do livro. Livro é escola. Eu não gosto da Escola, logo o “livro” desapareceu! 

Gostava que esta fotografia fizesse parte da nossa Humanidade, na procura perpétua da inteligência, aquela coisa que só os Homens são capazes de construir e destruir com o mesmo rigor e sabedoria.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Cultivar o silêncio como elemento essencial da conversa

Daniel Lousada
«Ouvir é a maneira mais pura de calar», leio num verso de Filipa Leal. Mas só o é se for por opção. E c
alar da "maneira mais pura" é interromper a fala, naquele momento em que a escuta é mais importante do que tudo o que possamos ter para dizer.

Nem sempre me calo da maneira mais pura. Quer dizer, muitas vezes, quando me calo, calo-me apenas..., sem qualquer compromisso com a escuta. Outras vezes, no que me parece ser o mais normal, calo-me quando não tenho nada para dizer..., ou então, o que tenho, digo melhor em silêncio..., que o silêncio também faz parte da conversa [às vezes é a maneira mais pura de dizer! — «O silêncio só raramente é vazio», leio num verso de José Tolentino Mendonça *].

In "Vem à quinta-feira", Assírio & Alvim, Lisboa, 2016
Calamos tão pouco, hoje em dia. Parece que desaprendemos [será que alguma vez aprendemos?] de cultivar o silêncio como elemento fundamental da conversa:

O que por palavras nos está oculto
no silêncio crepita
em intimidade *

«Ouvir é a maneira mais pura de calar». Será que isto se ensina? Creio que sim! E, nesta crença, elejo a poesia, como instrumento privilegiado do processo. 
Na poesia está tudo o que é preciso: o apelo à voz, através das palavras que mais significam, muito mais para além delas...; os silêncios — aqueles que fazem parte do poema, mais aqueles que somos convidados a fazer —; a escuta...** 

O silêncio não está sob controle 
ninguém consegue activá-lo 
sem transitar por ele *

O difícil está aqui: dar por ele neste "trânsito". E se, no que fazemos, o silêncio [ou a necessidade dele] não está presente, a dificuldade é maior.

Daqui o poema, que vive de silêncios, para ajudar a ensinar a cultivar o silêncio. Precisamos "apenas" de acertar na escolha dos "poemas certos", a cada um, em cada momento.


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* In "A papoila e o monge", Assírio & Alvim, Lisboa, 2013
** A música também convida à escuta, poder-se-á dizer. Mas ao servir também outros propósitos, não convida com a mesma intensidade. Às vezes, perante passantes de auscultadores enterrados nas orelhas, o que vejo não é propriamente alguém implicado com a escuta, mas que tão só transita entre "ruídos"!

sábado, 8 de agosto de 2020

Competências: quem as define?

António Nunes
Quando nos invadem os ouvidos e os olhos com o conceito de competência [uma invasão que nos chega, invariavelmente, pela voz ou pela mão daqueles que não conseguem ter, sobre a educação-formação, mais do que um olhar de senso comum], até parece que estamos na presença de um assunto de simples resolução.

Contudo, os mais atentos sabem bem que não é assim. E que esta espécie de simplicidade [pequena traição que a ignorância, por vezes, nos prega], aliada à emergência da sua afetação a quase tudo aquilo que respeita às aprendizagens, coloca este tema como objeto de uma mais profunda reflexão e que deveria sujeitar todos aqueles que com ela trabalham, a um estudo sistemático e consistente desta "nova" (?) realidade, no trabalho pedagógico.

Pela sua estrutura, poderá parecer, aos olhos de alguns, que as mesmas se detetam num saber fazer e em operacionalizações mais ou menos rebuscadas. Nesta facilidade de análise, não se interroga se esse tipo de ação incorpora valores como a consciência, a justiça, a cultura, o humanismo, a solidariedade, etc. Este tipo de qualidades, embora muito faladas, não representam uma grande preocupação ao nível do seu desenvolvimento e desocultação, visto estas não interessarem muito aos “mercados”, nem tão pouco serem preocupações e, por isso, objeto de avaliação dos sistemas educativos, como o sistema educativo português.

O conceito de competência tem, ao longo do tempo, transportado consigo as marcas do mundo laboral e, com isso, construído uma semântica da qual com dificuldade se libertará. Isto porque, tradicionalmente, tem sido enquadrado num tipo de ações que se orientam para um desempenho qualificado num posto de trabalho. Competência era [ainda é, na cabeça de alguns] uma qualidade pessoal que se tinha ou se adquiria, que se mostrava ou se demonstrava, tendo por base uma “genética” marcadamente operativa, que respondia, em momentos determinados, a tarefas de diferentes exigências.

Esta dificuldade leva a que muitos [responsáveis pela educação e formação incluídos] subestimem, por incultura ou má-fé, a sua vertente de mutabilidade temporal e estrutural, bem como a sua harmonização com outros conceitos. Parecem não entender que se exige à figura de competência uma descolagem de um arquétipo tradicional de base simplista e se deve sugerir a sua adesão ao mundo da complexidade, propondo-se-lhe, por via disto, uma nova linguagem.

Torna-se então necessário um olhar moderno sobre as competências, para que ao procurar integrá-las no currículo escolar e formativo, estas possam ser aprendidas, mantidas e circunscritas por toda a vida e não, como tem acontecido até hoje, revividas num espaço de tempo curto, ao serviço exclusivo dos fetiches daqueles que não entendem muito, nem de competências, nem da avaliação das mesmas.

Lembramos, por fim, que quando fazemos alguma afirmação acerca de competências estamos, ao mesmo tempo, a desenhar e a definir politicamente o currículo que elegemos e, assim, a determinar o desenvolvimento e o futuro dos nossos pares.

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terça-feira, 4 de agosto de 2020

Pai, quando é que o freguês vem?

António Nunes

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Leio e releio partes de um livro intitulado “Pierre Guérin, sur les pas de Freinet”, isto porque, nestes últimos tempos, em que o sol aquece um pouco mais, o vento amansou, o tempo se mostra mais tranquilo e os dias, embora contando as mesmas horas, se tornam mais longos, tem-me apetecido dar um outro rumo a um livro por mim escrito e já publicado,* para torná-lo num outro, rejuvenescido no seu conteúdo e empurrado, se possível, para uma nova edição, “actualizada e aumentada”, como é uso dizer.

Lembrando Freinet, lembro-me sempre do João e da Mafalda, os meus dois filhos, ao mesmo tempo que me empurro muitos anos para trás, quando serpenteávamos juntos os Alpes Marítimos franceses, à descoberta dos espaços por onde aquele professor francês ensaiou a sua pedagogia: a escola de Le Bar-sur-Loup [a sua primeira escola], a de Saint Paul [onde é exonerado do serviço público] e depois a sua escola privada, também em Vence. São memórias que me levam a olhá-los na sua pequenez, ainda tão crianças, e recordar as brincadeiras que por vezes tínhamos.

Agora, tão distante desse tempo, parece que todos perdemos o prazer de brincar — Esta coisa de ser adulto é, muitas das vezes, uma chatice!

Apetecia-me brincar agora com eles... saltar por cima das mesas, correr à volta das cadeiras da esplanada onde escrevo, cairmos uns por cima dos outros, despejar-lhes até água por cima. E se o empregado resmungasse, paciência: chapinávamo-lo com Coca Cola, que é mais pegajosa e custa mais a limpar. Apetecia-me subir com eles para cima da escada frente a mim, e, empoleirados nela, pintarmos o céu com todas as cores do arco-íris, mais a cor do mar, a cor do pôr-do-sol, mesmo quando noite…, a cor da esperança, da alegria, da amizade, do amor…, a cor de alguns lábios, de alguns olhos…, ou de um sorriso até, daquelas crianças que nunca viram os pais sorrirem-lhes. Cada um pintava como queria, com pincéis de formas e tamanhos diferentes, com as mãos ou mesmo com a ponta do nariz — para isso, teríamos de contar mentiras, muitas mentiras como o Pinóquio, para facilitar a pintura—. Podíamos gastar a tinta que nos apetecesse gastar. Só não podíamos apagar o que decidíssemos pintar!, para aprendermos que, na vida, o que fazemos não pode ser mais apagado. Pode ser reorganizado..., modificado, … Apagado não!

Chegados a Vence, frente à escola privada de Freinet, o João, vendo-me tocar mais do que uma vez na campainha da porta, sem que alguém atendesse, pergunta-me:

— Pai, quando é que o freguês vem?

Ainda hoje nos rimos com ele, pouco importando as memórias que ele guarda deste episódio. E ele ri-se connosco. Para ele, Freinet ou freguês tanto dava... Para nós, pela sua afetividade, é uma troca que, vinda do passado, mantemos presente: faz parte de nós. Queremo-la, enquanto vivermos, inalterável. Não a queremos, jamais, apagada!