segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Burocracia na escola: À espera que algo mude! Será que muda?

Registo vídeo
Quando um novo ano lectivo bate à porta, impõe-se, mais uma vez, que não se esqueça o excesso de trabalho burocrático dos professores. 

No passado mês de Maio realizou-se a 72ª tertúlia Inquietações Pedagógicas, sob o signo da burocracia, num debate em que a organização do trabalho de aprendizagem dos alunos e a avaliação foram as preocupações dominantes [Ver registo vídeo]. São estas preocupações que me merecem, agora, os apontamentos que se seguem.

Quando a avaliação se torna um acto burocrático

Faço a viagem Porto-Lisboa, que tenho agendada. Passo a Ponte do Freixo e sigo em direcção à A1. A meio da viagem, páro numa estação de serviço para um café. Três horas e meia depois de ter saído do Porto, ultrapassando aqui e ali os limites de velocidade, chego ao meu destino e, à chegada, perguntam-me como correu a viagem. Ao que eu respondo: bem obrigado, foi uma viagem tranquila.

Imagine-se agora que, quem perguntou, queria que eu elaborasse e insistia na pergunta: "Mas, tranquila como? Que é isso de correr bem?"  Acho que episódios como este, bem poderiam ser metáfora da grande maioria das sínteses descritivas, que os professores se vêem a escrever, a propósito da avaliação dos seus alunos.

Tal como da avaliação que faríamos de muitas viagens, se nos sentíssemos obrigados a escrevê-la, da avaliação da maior parte dos nossos alunos não há muito a dizer, e ainda bem: quer dizer que a viagem deles tem sido tranquila, em piloto automático. A sensação que fica, em quem é obrigado a fazer sínteses de avaliação destes alunos é igual à de quem se sente obrigado a “encher chouriços”. Foquemo-nos, então, nas razões daqueles que têm viagens atribuladas.

Entre projectos, planos e planificações

De determinadas áreas curriculares com propriedades ou características mais instrumentais, diz-se que têm vocação transdisciplinar. São áreas de muitos poisos, que transitam através de outras áreas disciplinares. A língua portuguesa é uma destas áreas: para além de se assumir como disciplina com um objecto de estudo específico (estudo da língua), viaja por outras áreas como instrumento delas. Quer dizer, todos os conhecimentos ligados a esta ou àquela disciplina precisam da língua que permite pensá-los: em cada disciplina, a língua é um instrumento dessa mesma disciplina, e daqui dizer-se que uma língua, além de um objecto de estudo, é também um instrumento de cultura (a mesma característica instrumental é apontada para a matemática).

Nem todas as áreas disciplinares têm esta vocação transdisciplinar. Mas não a tendo, tê-la-ão, certamente, alguns dos seus temas ou conteúdos.

Do que é trandisciplinar diz-se que é transversal, que se manifesta em mais do que uma área de conhecimento, sem precisar de autorização para entrar nas disciplinas que atravessa, mostrando-se nestas sem convite. Assim, na abordagem ao ensino de um tema que se apresenta como transdisciplinar, o seu tratamento, numa perspectiva interdisciplinar, deveria acontecer naturalmente (algo que não acontece na generalidade dos agrupamentos!).

São estes temas, que convocam conteúdos de disciplinas que se cruzam no mesmo espaço (e só estes), os que merecem que sejam pensados em projectos interdisciplinares e não, como acontecem na maior parte dos Agrupamentos de Escolas (com uma visão burocrática da educação), que se inventem projectos, nos quais se encaixam, a martelo, todas as disciplinas. 

Se do que nos chega do Ministério da Educação, para além do protesto e da reivindicação pública, pouco mais há a fazer, já da burocracia produzida pelos Agrupamentos (aquela que mais aleija), e pela qual apenas estes são responsáveis, impõe-se uma resistência activa, recusando a adopção de procedimentos inúteis porque estúpidos, ou estúpidos porque inúteis: aqueles que se adoptam porque toda a gente adopta, que se adopta porque sim... 

Daniel Lousada

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Escola Inclusiva: uma questão de ponto de vista.

«Ponto de vista é uma vista a partir de um ponto», diz Leonardo Boff. Quer dizer: a vista que se avista não é indiferente ao ponto a partir do qual é vista».

Penso numa escola com todos e para todos e, ao pensá-la, penso numa escola que não sei. Se soubesse, por que haveria de pensá-la? Quer dizer, se eu soubesse limitava-me a construí-la, não a pensá-la. Acontece que ao pensá-la possível é um passo que dou na sua direcção, mesmo desconfiando que não haverá passo que chegue para chegar até ela. Alguns dirão que pensar a escola desta forma assemelha-se a um confronto com a utopia. E assemelha-se de facto, mas nem por isso ela é menos real. Porque, contrariamente ao que se diz por aí, a utopia existe mesmo!

Quando Thomás More baptizou a sua ilha com o nome de Utopia [palavra inventada a partir dos elementos gregos «U», «não», e «tópos», «lugar»], não fez mais do que dizer que ela era um «não-lugar»[1] .E, como «não-lugar» [que não significa, necessariamente, ser irreal], a utopia carrega em si a possibilidade da sua existência: é tão real como aquele lugar onde o céu toca a terra.

O quê, o céu não toca a terra? Claro que toca! O horizonte está mesmo ali a dizer-me que sim. Não posso chegar até ele, é certo, porque, como «não-lugar» que é, não posso habitá-lo – como diria Eduardo Galeano, se dou dois passos na sua direcção ele logo se afasta outros tantos de mim.[2] Então, não podendo alcançar o horizonte caminhando até ele, só me resta encontrar forma de o trazer até mim. Como? Vergílio Ferreira, no seu «Pensar», aponta uma resposta:

O horizonte varia consoante a altura que temos. Só não varia nunca o ser variável, enquanto horizonte que é, ainda que por absurdo se atinja. Porque não é nunca o horizonte que nos fascina mas a distância a que ele está.

A conclusão parece-me óbvia: tratando-se de chegar ao horizonte, o segredo está em descobrir maneira de encurtar a distância que, está visto, não acontece se eu caminhar na sua direcção. Fica-me então, apenas, a possibilidade de trabalhar naquela distância que fascina [como sugere Vergílio Ferreira], mexendo na altura em que se encontra o meu olhar. Quer dizer, se encostar o olhar junto ao chão, com o meu ponto de vista e o horizonte alinhados no mesmo nível, o horizonte aproxima-se de mim; e chega mesmo a parecer, ao estender o braço, que até posso tocá-lo com a mão! Inversamente, se subo a montanha mais alta para vê-lo melhor, o que consigo é aumentar a distância que me separa dele.

Tudo isto para dizer, que todas as grandes conquistas da humanidade só foram possíveis porque alguém as pensou utopicamente, não como coisa irreal, mas acreditando sempre na possibilidade da sua construção, passo a passo... A maior das conquistas, iniciada há séculos, continua por cumprir, e nem por isso desacreditamos da sua possibilidade e urgência: que maior utopia do que a democracia, e tão teimosa e utopicamente perseguida por tantos, que dão a vida por ela, e que tão obstinadamente a vivem? Tal como uma sociedade democrática se constrói nos diferentes espaços, que continuamente inventamos, e nos quais a cidadania se cumpre, uma escola inclusiva faz-se, em cada sala de aula, do conjunto de gestos que mobiliza as pessoas com objectivos comuns, o principal dos quais só pode ser não deixar que alguma criança ou jovem possa ser excluído. É a partir da sala de aula que a escola inclusiva se constrói – o que mais perto está de nós, afinal.[3]

Continuando com Vergílio Ferreira, «A história do homem é a das suas utopias. Mas é decerto também a do que nelas se conquistou. Somente a utopia não pretende realizar-se, como o desejo que se cumpre não esgota o desejar (...). Que se imagine uma vida em que se realizasse tudo o que se desejasse. Alguma coisa faltaria ainda em tudo em que já não faltava, e não saberíamos o quê. É isso que não sabes que é o fundamental».

A Escola Inclusiva é utopia? Claro que é! Será sempre construção por acabar! Mas dizer de uma construção que ela será sempre uma construção inacabada, é uma coisa; outra bem diferente seria dizer que ela é irreal, sem futuro como construção, como dado de cultura.

Escola Inclusiva: uma construção que, para ser construída, para ficar ao alcance da mão, precisa apenas de um certo «ponto de vista», afinal!



[1] Mário CORTELLA, discorda desta leitura, defendendo que «U» em grego clássico não é negação para lugar. Negação para lugar é «A». Então, se Thomás More quisesse dizer um «não-lugar» ou «lugar-nenhum» teria colocado «A» antes de «tópos». Para Cortella «utopia» quer dizer «ainda não».

[2] Para que serve o horizonte, não podendo ser alcançado? Serve para caminhar.

Numa carta de Antero de Quental, a António de Azevedo Castelo Branco, encontro um desabafo que o coloca próximo deste sentido de utopia, se bem que a utopia não seja o contexto do que escreve: «Os nossos ideais – escreveu então Antero – tinham efectivamente uma parte de verdade: mas não é como nós julgávamos para se realizarem na vida prática. Servem para levantar os espíritos à altura dum critério superior ao mundo visível». Colocam o nosso olhar no horizonte, apetece dizer.

[3] Nada posso fazer para acabar com a fome no mundo. Mas alguma posso fazer para acabar com ela no meu prédio, no meu bairro, na minha rua...

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Da relação Currículo/Pedagogia

O processo pedagógico tem de realizar, no ponto de chegada, o que no ponto de partida não está dado – diz Dermeval Saviani [1] –. Referindo-se, por exemplo, à questão da igualdade. A cultura de que as crianças são portadoras à entrada da escola é da maior importância do ponto de vista escolar, enquanto ponto de partida. Não é, porém, esta cultura que vai determinar o ponto de chegada do trabalho pedagógico.

Por isso – defende Michael F. Young [2] – deve distinguir-se currículo e pedagogia, uma vez que se relacionam de modo diferente com o conhecimento escolar e com o conhecimento do quotidiano que os alunos levam para a escola. O currículo deve excluir o conhecimento quotidiano dos estudantes, ao passo que esse conhecimento é um recurso para o trabalho pedagógico dos professores. Os estudantes não vão para a escola para aprender o que já sabem.

Do conhecimento do quotidiano [como ponto de partida], ao conhecimento escolar [como ponto de chegada], está a ideia de viagem defendida por António Nóvoa [3]: Só nos educamos se sairmos do nosso lugar. Educar não é fechar as crianças na sua cultura; é permitir que as crianças façam uma viagem, conheçam o mundo todo. Educar é libertar. E libertar é fazer uma viagem.

Daniel Lousada

________________________________________

[1] Pedagogia histórico-crítica, Campinas, Autores associados, 2012: p. 113.
[2] O futuro da educação na sociedade do conhecimento, in Revista Brasileira, V.16, nº 48 Set-dez: p. 609-623. 
[3] A importância do território na educação, in Educação & Participação, Youtube, 2017.

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Das ciências (da educação), da pedagogia e da didáctica

Frank Smith conta que, quando foi convidado a falar sobre o tema do que viria a ser o conteúdo do seu livro "Pensar"*, foi interpelado por um superintendente escolar, que estava muito perturbado. Dizia ele que semanas antes tinha ouvido outro especialista com uma posição diferente da sua.

"Ele dizia uma coisa e o senhor está a dizer outra. Como explica isso?"

Frank Smith sugeriu que pelo menos um dos dois devia estar errado.

"Então como é que eu posso saber quem tem razão?", perguntou ele, aparentemente chocado.

O dilema aqui presente é óbvio. Em pedagogia, não é possível pedir a um especialista que pense por nós e, muito menos, que decida por nós [apenas que pense connosco, digo eu], e vale de pouco procurar outra avaliação noutro lado, porque não há qualquer garantia de que um segundo especialista [terceiro, quarto..., o que for] tenha razão.

É preciso que cada um se sinta capaz a pensar por si, em diálogo com o outro com certeza, sustentado nos saberes de cientistas e especialistas certamente, mas sem se deixar colonizar por eles. É  com esta capacidade de pensar, por si, sobre o trabalho, que se faz a pedagogia.

Em pedagogia não há métodos fixos. O método, em pedagogia, é sempre provisório, desactualiza-se a partir do momento mesmo da sua prática, e o que fica é o método didáctico, que decorre da prática pedagógica que o produziu, como referência para pensar uma prática pedagógica possível, que não será mais aquela que o método didáctico aponta. Não sendo assim, o método didáctico transforma-se num produto de alguém que simplesmente deixamos pensar por nós.

É por isso que precisamos, continuamente, através da reflexão pedagógica, de procurar sempre novas didácticas, conscientes de que a didáctica que temos de construir é, como diz Sérgio Niza, "a negação mesma da didáctica".**

_______________________________

*Frank Smith, "Pensar", Lisboa, Instituto Piaget, 1990
** Sessão de Abertura do Congresso do Movimento da Escola Moderna, Lisboa, 1989