quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Sobre os desafios que a aplicação ChatGPT e outras aplicações de inteligência artificial nos colocam


Duas versões lado a lado: a versão original em francês, e a versão portuguesa, trabalhada sobre um rascunho produzido pelo Chat GPT, antecedida de um apontamento [nota prévia], que dá conta da atenção que deve merecer-nos o uso que crianças e jovens fazem desta aplicação. Fica o convite à leitura.
 
Para aceder ao texto em pdf, com as duas versões, seguir a ligação que se segue:
"Chat GPT mata o desejo de aprender" - versão PDF >>>


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NOTA PRÉVIA - Daniel Lousada

Como utilizador de tecnologias digitais, fui seduzido pelo Chat GPT e outras aplicações do mesmo género. Como não ser seduzido? Em segundos ele copia, de uma língua para a língua que eu pretendo, uma quantidade de páginas que me levariam largos minutos a copiar. Copia mas não traduz, dir-me-ão. Mas, não sendo tradução, é rascunho sobre o qual posso traba­lhar num trabalho de texto, que vou confrontando com o texto original. Não dispensa, portanto, o traba­lho de análise que só quem conhece minimamente as línguas em confronto é capaz de fazer, e que lhe permite atrever-se na tradu­ção. A mim, na escrita desta versão, não me dispensou do uso dos dicionários de francês, francês-português e do dicionário de sinónimos. Como não dispensa nin­guém da informação prévia que permite a pergunta sobre o assunto que a motiva. Se não sabes porque é que perguntas?”, diria João dos Santos.*

Como rascunho, a escrita que esta aplicação de inteligência artifi­cial oferece não é, assim, texto acabado, longe disso. E mesmo que as suas traduções fossem tecnicamente perfeitas (algo de que estão longe), seriam a “perfeição da máquina”, semelhante à perfei­ção da máquina do afinador de pianos: passado pela má­quina, o piano fica afinado; a afinação de cada nota está lá no lugar certo; mas, no fim, há qualquer coisa a faltar: faltam aquelas “imperfeições" que lhe dão o “tempera­mento” que o distingue como “aquele piano”. En­tão, é a vez do ouvido do afinador de pianos entrar em acção, fazendo um ajuste mínimo aqui e outro ali, até encontrar o “temperamento” certo que não está ao al­cance de nenhuma máquina. Um temperamento que, no caso da escrita, traduzo por "sabor do texto”, aquele ca­rácter que o distingue e que, muitas vezes, nos deixa adi­vinhar a identidade do seu autor. “Por vezes, para conseguir escrever, é preciso lu­tar contra a gramática”, diz Paulo Freire. Ora, a máquina não sabe lutar contra a gra­mática: limita-se a reproduzir a gramática que o progra­mador lhe deu.

Daqui a atenção que deve merecer-nos o uso que as cri­anças e os jovens fazem deste tipo de aplicações. Mas como atender aos seus usos, se formos incapazes de re­sistir àqueles que pretendem proibir a sua entrada na sala de aula?


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Chat GPT mata o desejo de aprender - Alain Bentolila

Este texto é dedicado a todos aqueles que confundem "élévation" com "élevage” **


Querer saber não é sinónimo de querer aprender. Esta distância necessária entre saber e aprender está agora a ser posta em causa pelas redes sociais, que celebram a conivência em vez de explicitarem as diferenças, e já não convidam ao diálogo, mas fecham as pessoas numa “bolha". O ChatGPT insere-se nesta lógica de imensos perigos. Mas o perigo maior que representa para as nossas escolas não se resume à fraude que pode permitir, pois encontraremos sempre os meios técnicos para a evitar. A ameaça reside antes numa relação distorcida com o conhecimento. Como diz, e muito bem, Philippe MEIRIEU, "este robot de conversação, com a sua capacidade de dar respostas em tempo recorde, satisfaz o desejo de saber e mata o de­sejo de aprender". Afinal, para que serve fazer perguntas, para que serve tentar construir laboriosamente respostas se, com um simples clique, podemos mobilizar toda a inteligência do mundo para as trazer até nós com um esforço mínimo. Pedir a um robot de conversação que escreva uma declaração de amor, ou utili­zar a mesma ferramenta para dizer ao nosso  melhor amigo o quanto estamos tristes com a morte da sua mãe, tornar-se-á em breve um lugar-comum, e deixaremos de nos aperceber até que ponto este desprendimento apouca a nossa intenção, até que ponto enfraquece o nosso envolvimento.


Aprender a ler e saber ler

Muitas vezes, pensamos que se alguma criança, algum aluno, não lê, é porque não tem curiosidade alguma, ne­nhum desejo de saber. Isto nem sempre é verdade! Pelo contrário, é o frenesim, “a pressa da chegada”, que a leva a entrar em pânico e a bloquear. Saber antes de ter aprendido; saber sem se dar tempo para aprender; eis o que estas crianças desejam. Qualquer espera, qual­quer demora, imposta por um processo de aprendizagem laborioso, desmobiliza-as e pode, frequentemente, levá-las a uma raiva reprimida, que as paralisa. Na sua maioria, estes alunos, estas crianças, ar­dem de vontade de saber. Estão dispostos a fazer tudo para conquistá-lo, excepto esforçar-se por construir o seu próprio sentido a partir das escolhas dos outros. Saber, sim! Dar-se ao trabalho de aprender com rigor, não! O que os irrita até à exasperação é serem confrontados com uma actividade em que a informação não é mais orientada pe­los laços da confirmação imediata. Uma actividade que, como muito bem diz Serge Boimare, lhes impõe "um tempo de suspensão, um tempo de pausa para uma elabo­ração mínima, porque o que há para compreender não se dá de imediato”. Este "tempo suspenso", necessário à aprendizagem, pode provocar, junto da criança, dispersão e desordem. Ela experimenta-o como um vazio, uma falha, porque a dúvida e a incerteza são demasiado dolorosas para que ela possa estimular a actividade do pensamento. Em vez de sentir aquela ansiedade ligeira e normal, que surge naturalmente ao dar-se conta do que ainda não sabe, e que deveria encorajá-la a construir o seu próprio caminho, é invadida por uma frustração terrível, quando tem de fazer associações, ligações, numa palavra... investi­gar. Por outras palavras, é a impaciência de querer ver, como por magia, as imagens a formar-se na sua mente; é o desejo, praticamente impossível, de querer compreen­der sem ter feito nada para isso; é finalmente a recusa em conceder um prazo, por mínimo que seja, ao trabalho pelo saber, que explica a sua dificuldade, ou melhor, a sua dis­função cognitiva. Gostariam de sair do túnel sem precisarde tempo para escavar. Não é por incompetência ou preguiça que al­gumas crianças se recusam a ler. Não devemos resignar-nos a essa recusa com o pretexto de que não são "feitas da mesma massa que faz leitores", ou que as crianças de hoje gostam mais de jogos de vídeo do que de livros.... Enredadas que estão num universo onde reina a conivência, a passividade e a ambiguidade, habituaram-se a aceitar apenas textos cujo sentido lhes é amplamente conhecido de antemão. Por conseguinte, desconfiam de qualquer "aventura de compreensão" que possa impor a distância e convidar à critica e à argumentação.

O desejo de ensinar deve encontrar o desejo de aprender

Amanhã, como todos os dias, cada professor abrirá aporta da sua sala de aula, para encontrar aí cerca de vinte "filhos de alguém", alguns dos quais sem saberem exatamente por que estão ali e outros que prefeririam estar noutro lugar. Cada um deverá deixar à entrada à entrada as dúvidas que o atormentam, as suas esperanças, frequentemente frustradas, para todas as manhãs renovar o "voto do professor": Nenhum de vós sairá da sala de aula como entrou. Todos vós tereis aprendido coisas que vos são desconhecidas mas, acima de tudo, tereis compreendido coisas que mal sabeis existir, e assim sabereis pensar com mais liberdade e discernimento. Mas esta vontade magistral de formar a inteligência de cada aluno, de maneira singular, deve encontrar neles o desejo de aprender, porque, a menos que fracasse na sua função essencial, a escola não pode desinteressar-se da força que faz aproximar a mensagem da criança e das motivações que a levam a acolhê-la. São essas virtudes de curiosidade e coragem que estão hoje em perigo, e são elas que a escola e a família devem transmitir às crianças, ao mesmo tempo como um desafio e uma promessa. Pais e professores devem acompanhá-las, da pesquisa à descoberta, da regra reconhecida à regra aplicada, para que aceitem o esforço intelectual e o domínio emocional que lhes permitirão dissipar as trevas e, assim, merecer que a sua inteligência interprete livremente o conhecimento sem traí-lo. É nossa responsabilidade mostrar-lhes que o desconhecido é um desafio que devem enfrentar, aceitando que o prazer do conhecimento não é mais do que um justo retorno ao seu investimento intelectual. Ensinar as crianças a valorizar o esforço porque ele traz promessas de um maior poder sobre o mundo é, sem dúvida, a melhor defesa que podemos construir contra a tentação irresistível de se render ao CHAT GPT.

Se, como eu, acreditas que o propósito do ser humano é o desejo de descoberta, a curiosidade de compreender, é o apetite pela investigação, a alegria do intercâmbio entre seres humanos, então não te deixes encantar pelas proezas do CHATGPT, que pretende disponibilizar toda a inteligência do mundo aos teus filhos, organizada de acordo com critérios que eles desconhecem, e tratada com algoritmos aos quais eles nunca terão acesso. Em vez disso, presta atenção aos "porquê pai, porquê mãe, porquê professora?" que uma criança te dirige; como um apelo para olhar e questionar o mundo juntos. Desprezar esse apelo, enviado da inteligência de uma criança à tua inteligência, é o mesmo que dizer-lhe que as suas perguntas legítimas não valem um momento de reflexão partilhada. Na escola e em casa, devemos-lhe esse momento de suspensão, em que o adulto se diferencia da máquina, para responder com amor, como ninguém mais responderia, porque ela é o que é, e tu és o que és. Em resumo, na escola e em casa, fala uma e outra vez ainda..., ouve uma e outra vez novamente, discute, argumenta, conta histórias; e... Olha, olhos nos olhos, essa criança. Aprende a manter o seu olhar que te questiona, que às vezes te avalia e, na maioria das vezes, te implora que lhe assegures que ela não é um fardo, mas o sujeito de uma relação que não dispensas.

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A qualidade dos re­sultados obtidos com os assistentes artifici­ais inteligentes de­pende criticamen-te da qualidade da in­formação que lhes fornecemos  - a esti­mulação” (António Dias de Figueiredo, in Jornal de Letras, 29 de Novembro a 12 de De­zembro, 2023).

** Uma dedicatória cheia de ironia que se perderia numa tradução literal. Enquanto “Élévation" está relacionado com elevar ou levantar algo, "élevage" tem a ver com criação ou reprodução de animais.  Assim quem confunde “Élévation” com “élevage” não iria além da percepção que o significante lhe dá. Não seria, portanto, capaz de distinguir a acção de ajudar alguém a “elevar-se”, da acção de reprodução e criação de animais.

 

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

ChatGPT, uma aplicação de inteligência artificial, que não é possível ignorar, nem é sensato descartar


O maior perigo do ChatGPT não está na fraude que ele pode permitir, mas na sensação que dá de estarmos a falar com um humano e que inverte completamente o sentido da relação educacional - diz Philippe Meirieu -. Ele fornece respostas objectivas imediatas, dispensando, assim, a dinâmica do questionamento. Promove certezas que aprisionam o pensamento... Vai totalmente contra o que se espera de um professor: suscitar interrogações que libertam de preconceitos.

Philippe Meirieu, ao reconhecer a legitimidade das preocupações dos professores que temem que esta aplicação isente os seus alunos dos trabalhos de investigação e de escrita, defende (até por isso) que se traga o ChatGPT para a sala de aula, incentivando o estudante a formular perguntas de diferentes formas, para comparar respostas, confrontando-as com as respostas dos manuais e enciclopédias. De certa forma, promove-se a utilização das sugestões destes dispositivos como rascunhos, sobre os quais há que fazer todo um trabalho de identificação das proposições menos claras, deslizes semânticos, erros grosseiros até, que levam a mal entendidos que é necessário corrigir. Algo semelhante à tradução para português, realizada pelo ChatGPT, que acompanha a versão original de Philippe Meirieu, publicada pelo “Le Monde”, e que CONVIDAMOS AGORA A LER>>>