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quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Da IA e do Robô que aprende

Daniel Lousada

José Matias Alves, na sua página do Facebook >, a propósito da IA, dá conta do que um amigo de Rubem Alves dizia sobre o computador que aprende:
«Um amigo meu, professor de engenharia, comentou que se matriculasse um computador num cursinho, ele tiraria sempre nota máxima em todos os testes; passaria em primeiro lugar no vestibular; "salvaria" na sua memória tudo o que fosse ensinado. Em tudo ele seria superior aos seus colegas humanos, menos num detalhe, pois a uma pergunta ele não saberia responder: de tudo o que você estudou e aprendeu me diga: do que foi que você gostou mais?».*

A anteceder este comentário Matias Alves coloca a pergunta: «Então agora, com a IA, o que diria Rubem Alves?»

Eu, curioso e levado pela pergunta à qual, diz o amigo de Rubem Alves, um computador não saberia responder, pergunto ao ChatGPT: De tudo quanto sabes, de que é que gostas mais? Ao que ele responde:

«Isso é uma pergunta interessante! Eu não tenho emoções ou gostos pessoais, mas posso dizer que gosto de explorar ideias e aprender com as perguntas que me fazem. As coisas que mais me fascinam são os temas que envolvem a criatividade humana, a linguagem e o conhecimento. O facto de poder ajudar a resolver dúvidas, gerar novas perspectivas ou até inspirar pessoas é o que torna a minha "existência" mais significativa, por assim dizer» (ChatGPT, 02.01.2025).
E remata com a pergunta:
«E tu o que gostas mais de saber e explorar?»

Eu, contrariamente ao ChatGPT, tenho emoções e gostos pessoais — são os meus gostos, não são os gostos do vizinho, se bem que possam partilhar alguns com ele, e com ele terei até adquirido alguns —. E, no entanto, assim, de repente, não estando à espera da pergunta, vi-me sem resposta para dar! Talvez porque não goste da mesma coisa o tempo todo? Não sei. Experimento contextualizar a pergunta na profissão (de professor) que exerci. E surpreendo-me ao pensar que a resposta do ChatGPT poderia andar próximo da minha e a de muitos professores que conheço!

De tudo quanto aprendi, não sei dizer do que gosto mais. Mas dúvidas e surpresas à parte, uma coisa eu sei: «Gosto de gostar» — trata-se de um gosto que partilho com Adília Lopes (ou que Adília Lopes partilhou comigo) — O maior dos gostos, estou certo. E, tal como ela, tenho sorte. Uma sorte que não vejo como possa ser partilhada com uma máquina «inteligente».

APRENDER A GOSTAR DE GOSTAR, PRECISA-SE [LER MAIS>>>]. Um gosto que nenhuma máquina (inteligente ou não) sabe cultivar.

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*in Rubem Alves,  Por uma educação sensível, São Paulo, Principis, 2023

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Inteligência artificial ou inteligência cooperativa na escola: Será preciso escolher?

Versão portuguesa de Intelligence artificielle ou intelligence coopérative à l’école: faut-il choisir?, publicado em Cahiers pédagogiques

Porque é que os alunos optam por pedir ajuda a uma IA, para o seu trabalho, na aula ou em casa, em vez de pedir a um colega? E o que é que eles ganham a mais em ajudar-se mutuamente? Estas são as reflexões de um professor de uma turma cooperativa sobre os méritos destas duas formas de ajuda, mas que se inclina mais para a cooperação entre alunos, a que ele chama de inteligência cooperativa. 

Na terça-feira, 17 de Novembro, Mohamed levanta-se para escrever o seu primeiro nome no quadro, que Raja acabou de desenhar. Entre as três colunas disponíveis – «Posso ajudar», «Preciso de ajuda», «Trabalho sozinho» – Mohamed não hesita e escreve o seu nome na terceira coluna. De volta ao seu lugar, abre o seu computador, ce­dido pela escola, tira uma folha de papel e começa a tra­balhar.

Este tempo, e este quadro de ajuda, foram concebidos pela nossa equipa para que os alunos se ajudem mutua­mente nos seus trabalhos escolares. Para nós, a coopera­ção não é apenas um fim em si, mas sobretudo um meio de aprendizagem. Como não se trata de a impor, dei­xamos aos alunos a possibilidade de trabalharem sozi­nhos, se assim o desejarem. No entanto, há uma observa­ção que nos preocupa. Este ano, há mais nomes na ter­ceira coluna. Porquê?

Quando o meu olhar caiu no ecrã de Mohamed, descobri uma plataforma, já familiar, de inteligência artificial.

– «Por que estás a usar isso?

– Senhor, estou a trabalhar!»

Peço-lhe que volte a explicar a lição de matemática sobre funções e que me crie exercícios práticos.

– «E porque não perguntas ao Danny que se inscreveu na coluna "Posso ajudar"?

– Ah, não tinha pensado nisso!»

A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL ESTÁ PARA FICAR 

A inteligência artificial chegou à escola, isso é um facto. Por vezes, através de actividades preparadas pelos profes­sores. Mais frequentemente, através da utilização espon­tânea pelos alunos. A Jenna, por exemplo, consulta-a re­gularmente no corredor para lhe fazer perguntas, que a ajudem a rever a matéria antes da avaliação; a Mathilda pede-lhe que releia um texto que escreveu em casa para verificar se é compreensível; o Sami dá-lhe os trabalhos de casa para fazer, «para comparar com os que faço sozi­nho e autocorrigir-me», diz ele com um sorriso.

A I.A. é vista como útil pelos alunos. No entanto, em mui­tas das suas utilizações, podiam muito bem ter recorrido aos seus colegas de turma. Talvez pudessem ter matado dois coelhos com uma cajadada só: ter sucesso nas tare­fas es­colares e aprender competências de inteligência co­opera­tiva. Então porque é que Maomé não preferiu ir ter com o Danny para rever a sua matemática? Porque é que nem sequer pensou nisso? Por outras palavras, será que a uti­lização da inteligência artificial está a substituir, gra­dual­mente, a utilização da inteligência cooperativa, inclu­indo a comunicação entre humanos? Como é que se pode con­ciliar as duas coisas na escola? O que é preciso para fazê-lo?

ENTRE O FASCÍNIO CEGO E A PREOCUPAÇÃO ESTÉRIL

Flores artificiais, carne artificial e neve artificial são todos substitutos que nos provocam frequentemente sentimen­tos de rejeição. Quando se trata de inteligência, a reacção emocional não é tão clara. Quer te sintas irresistivelmente atraído ou sistematicamente amedrontado, basta uma simples tentativa de responder a uma pergunta subme­tida à IA para sentires um certo fascínio: «É espantoso!» Por vezes, este espanto desvanece-se para aqueles que se dão ao trabalho de verificar as informações fornecidas.

No domínio da educação, a I.A. é, por vezes, motivo de pre­ocupação, por várias razões: o risco de alienação, a perda de criatividade, uma relação de consumo que não incen­tiva o esforço de investigação, o futuro da profissão, a fo­calização na transmissão, etc. Como acontece fre­quente­mente, a preocupação rapidamente dá lugar à pro­ibição ou à resignação. É o caso, por exemplo, dos traba­lhos de casa, em que alguns colegas procuram vestígios de uma possível utilização da I.A. para punir, enquanto ou­tros op­tam pela solução mais simples: já não dão TPC.

E aqui estamos nós, a caminhar numa linha ténue entre o fascínio cego e a preocupação estéril. Como podemos evi­tar cair para um lado ou para o outro e mantermo-nos no caminho da educação? No que diz respeito aos trabalhos de casa, esta nova tensão acaba por nos convidar a clari­ficar o que se espera dos alunos neste tipo de trabalho.

Muitas vezes, os trabalhos pessoais e os trabalhos de casa são utilizados como sinónimos, imaginando um aluno em casa, sentado sozinho à mesa, a fazê-los. No entanto, os trabalhos de casa raramente são feitos individualmente. Quando confrontados com dificuldades, os alunos trocam informações activamente, enviando mensagens de voz ou de texto, em várias redes sociais.

Assim sendo, estes trabalhos poderiam ser uma oportuni­dade para mobilizar a inteligência cooperativa entre pa­res. No entanto, quando pergunto à Mathilda porque é que usa a I.A. para fazer os trabalhos de casa, em vez de pedir ajuda a um colega, a resposta demora um pouco a chegar. Talvez nunca se tenha questionado, o que é razo­ável, dado que esta opção se tornou automática. E, final­mente, decide: «Não sei bem. Mas é claro que é mais rá­pido, não tens de esperar pela resposta».

DA RESPOSTA IMEDIATA AO TEMPO DE REFLEXÃO

O interesse da I.A. para os estudantes é, portanto, a rapi­dez. A resposta é dada de forma instantânea, por isso evita-se perdas de tempo. É verdade que é rápida, mas como competir com ela? E será que as escolas podem, e devem, competir? Esta rivalidade desvanece-se a partir do mo­mento em que o trabalho na escola consiste não apenas em encontrar as respostas certas, mas sim em formular perguntas.

De facto, acontece frequentemente que, nas aulas, res­pondemos a perguntas que os alunos não fazem a si pró­prios. Se nos concentrarmos mais em levantar questões e, portanto, em fazer pensar, em vez de nos limitarmos a dar respostas, a inteligência cooperativa torna-se rapida­mente insubstituível. Nada é mais desestabilizador e questionador do que esfregar as tuas certezas contra as dos outros.

No âmbito desta educação para a incerteza, Sophie Rous­seau-Grousson e Gurvan Crombez partilham uma aborda­gem da profissão no seu artigo, no site Café pédagogique: «O professor incentiva os alunos a discordar no seio de um grupo, permitindo-lhes, no final, escolher várias opções, possibilidades ou respostas para a situação-problema que lhes é apresentada». Assim, o objectivo dos alunos não é exclusivamente dar a resposta certa, o que a I.A. pode fa­zer, mas, pelo contrário, exprimir uma opinião autêntica para cultivar a incerteza. Na aula, organizo o trabalho em grupo de forma a ajudar a utilizar e a desenvolver esta in­teligên­cia cooperativa de comparação de pontos de vista.

Aprender a abrandar para pensar em vez de automatizar: este é um objectivo de aprendizagem que, uma vez clari­fi­cado, pode sem dúvida tornar a I.A. útil. Por exemplo, pode pedir-se aos alunos que investiguem uma resposta gerada pela I.A., para que possam procurar elementos fi­áveis, er­ros ou aproximações, comparando-a com uma in­vestiga­ção mais avançada. Também é possível discutir com os alunos a utilização da I.A. na sociedade, para que estejam conscientes das questões relacionadas com esta utiliza­ção automatizada e dos dados utilizados. Estas duas acti­vidades levam tempo, mas também ajudam a passar do fascínio ao distanciamento crítico, da utilização ingé­nua à escolha informada.

TRANQUILIZAR SEM ENCARCERAR 

É claro que se pode argumentar que o ganho de tempo não é a única vantagem para os alunos. A I.A. também pode tranquilizar aqueles que têm medo de cometer er­ros. So­bre este ponto, uma conversa com os alunos mos­tra rapi­damente que eles não se deixam enganar. A maio­ria está consciente de que as respostas nem sempre são muito fi­áveis, mas, para alguns, serão sempre melhores do que as respostas que conseguem encontrar por si.

Perante esta auto-imagem desvalorizada, que é o travão de muitos progressos, a I.A. permanece impotente. Tam­bém aqui, a inteligência cooperativa continua a ser muito importante. Por exemplo, na tabela de ajuda elaborada por Raja, os alunos passam, por vezes, da coluna «Preciso de ajuda» para a coluna «Posso ajudar». Este sentimento de realização pessoal é possível graças à relação prévia entre dois alunos que se ajudaram mutuamente. Se isto contribui para que o aluno que ajuda se sinta valorizado, também pode tranquilizar o aluno que está a ser ajudado e incutir-lhe um sentimento de progresso. Tudo isto é pos­sível, desde que os alunos sejam formados nesta relação de ajuda, porque ela é tudo menos inata e espontânea.

Tendo a relativizar um pouco este defeito da I.A., desde que Sylvain Connac me mencionou o efeito Tinder. Se este nome colocado neste contexto te faz sorrir, no entanto tem o mérito de falar por si. Inspirado por um aluno que prefere esta aplicação de encontros a uma discussão real, porque reduz o risco de «ficar a ver navios», este efeito esclarece um dos preconceitos de uma relação de ajuda na sala de aula. Por exemplo, um aluno preferiria sem dú­vida recorrer à I.A. se estivesse bloqueado no seu traba­lho, pois isso impediria que expusesse os seus defeitos aos ou­tros e se sentisse envergonhado.

A I.A. permitiria, portanto, eliminar os bloqueios dos alu­nos, sem que estes tivessem de se expor aos outros. Mas é precisamente aqui que podemos encontrar um desafio pedagógico na luta contra este isolamento. Assim, é es­sencial trabalhar na construção de um espaço «não ame­açador» na sala de aula. Um espaço onde todos se sintam progressivamente no direito de exprimir as suas dificulda­des. Isto será conseguido através de regras construídas em conjunto, mas também através da organização de in­teracções regulares que, gradualmente, possam descons­truir julgamentos, ou a percepção de julgamentos por parte dos outros.

Mais simplesmente, recordo uma observação de ajuda mútua no liceu de Amiens, durante uma apresenta­ção da nossa equipa Feydercoop[1] sobre a relação entre as práti­cas cooperativas e o abandono escolar. Um aluno sentou-se ao lado de Paul para o ajudar com o seu inglês. Este aluno contou-me mais tarde, numa entrevista: «Sa­be, fui falar com ele, mas percebi que ele sabia fazer aquilo muito bem. Com o Paul é muitas vezes assim, vou lá mais para que ele não desista. Eu sou um pouco um im­pulsionador da sua confiança». Um estímulo à confiança, é o que o Danny poderia ter sido para o Mohammed, para além de o ajudar com o trabalho de matemática.

PREPARA O AMANHÃ, OU INVENTA-O

A inteligência cooperativa parece, portanto, útil e insubs­tituível na sala de aula. Mas ainda precisa de ser posta em prática, em particular através da implementação de práti­cas cooperativas. Quer isto dizer que a I.A. não tem lugar nas escolas? Sem dúvida que não.

Além disso, há quem apresente apressadamente o argu­mento utilitarista: «A I.A. estará, amanhã, em todo o lado, por isso temos de nos preparar para ela na escola». A lei­tura de A Crise da Cultura, de Hannah Arendt, ajuda a esbater esta abordagem: «Cada nova geração tem de redes­cobrir laboriosamente a actividade de pensar. Não se trata de refazer o fio quebrado da tradição, nem de inventar um substituto ultramoderno capaz de superar o hiato entre o passado e o futuro, mas de saber praticar o pensamento para entrar neste hiato».

Precisamente, cabe aos alunos, aos futuros cidadãos, en­trar neste hiato e inventar o amanhã. Em que medida po­dem as crianças de hoje imaginar e inventar o mundo de amanhã, se a geração que as precede está a incutir a sua própria visão do futuro?

O amanhã não é apenas um horizonte fixo predetermi­nado por um avanço tecnológico, é também uma constru­ção do que queremos que ele seja colectivamente. Assim, o papel da escola não é preparar o amanhã, mas dar aos alunos os meios para escolherem e imaginarem o seu fu­turo. Mas é preciso deixar espaço para que o colectivo se dedique a imaginar o que poderá ser o futuro desejável. Para isso, a escola continua a ser um lugar privilegiado, porque é aí que todas as diferenças se encontram e tra­balham em conjunto. Mas é preciso ainda organizar as condições da inteligência cooperativa, e isso não se faz so­zinho perante um software, mesmo que seja «inteli­gente».


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[1] https://feydercoop.wordpress.com

sábado, 7 de setembro de 2024

Dos conflitos que o digital provoca

Uma discussão sem fim à vista!
Disponível em PDF>>>

Tratemos os ecrãs pelo que são: instrumentos cujo valor depende do seu (ab)uso. Então, nem proibição nem afastamento, mas controlo – palavra que deveria ser proclamada palavra de ordem –. Mas é mais fácil proibir. Até porque a proibição dispensa-nos do trabalho de pensar soluções, inclusive com as nossas crianças e jovens, que os ajudem a manter uma «relação» saudável com estes dispositivos. CONTINUAR A LER>>>

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Gostar de ler: privilegiar o papel sem diabolizar o pixel

Michel Desmurget acha que o prazer de ler não se dá bem com o pixel, que precisa do papel para se impor. É um prazer que se desenvolve mal com ebooks, mesmo que suportados por leitores digitais dedicados, como o kindle ou o kobo: entre o leitor e o texto não existe aquela relação com o livro-objecto, que se constrói através de um livro impresso em papel. Uma experiência que uma criança começa a adquirir, quando lhe oferecemos livros (de pano ou cartão), ou revistas que ela manuseia, como um “brinquedo” (e destrói em minutos), muito antes de saber o que é um livro, na convicção de que, quem desenvolve uma relação positiva com o livro-objecto, desenvolverá idêntica relação com o texto.

E, no entanto, gostar de livros, por estranho que pareça, não significa gostar de ler. Há quem goste de livros e não se sinta entusiasmado pela leitura: “Não sou leitora – disse a professora Isa, lembram-se? >>> – Nunca fui muito de ler livros. Mas sempre adorei tê-los.” Já quem não gosta de livros, com toda a certeza não gosta de ler. O que não quer dizer que não leia; lê, claro, por necessidade. E será que, quem gosta ler, gosta de ler em qualquer formato?

Os dados fornecidos pelo autor de "Cretinos digitais", apontam para a superioridade do papel sobre o pixel. E são tão esmagadores que não há como contrariá-los. Mas o meu ponto é outro. Não estou interessado no confronto pixel versus papel: procuro antes os contextos de uma coabitação possível. Até porque "o digital veio para ficar e ficou mesmo".

Pela parte que me toca, con­fesso, são mais os "livros" que compro, hoje, em suporte digital do que em papel  escrevi há tempos neste sítio >>> . Leio-os, nos dispositivos dedicados à sua lei­tura, com o mesmo prazer ou desprazer – que só de­pende do conte­údo –, excepto no ecrã de um pc. Claro que, dir-me-ão, sentes o mesmo prazer a ler ebooks, porque passaste pelo livro em papel, antes de chegar a eles. Quer dizer, construíste uma relação com os livros, que trans­por­tas agora para o digital; ao lê-los, na tua cabeça está, de certa forma, um livro.

De facto, quando pego num leitor de ebooks, não sendo um livro que agarro, ainda assim é um objecto que carrega livros, que seguro nas mãos. Agarro-o com a intenção de ler um dos muitos “livros” que ele guarda. Procuro um livro para ler! E, ao encontrá-lo, é mesmo um livro que leio. O objecto está nas minhas mãos, percorro as suas páginas, como percorro as páginas em papel, numa experiência quase idêntica. Idêntica mas não igual, é certo. Efeito daquela representação que tenho do livro, que mantenho – porque a vivi –quando folheio as páginas digitais de um ebook? Certamente que sim. Daqui o imperativo de proporcionar às nossas crianças as experiências que farão com que ela, ao ler um ebook, sinta que tem nas suas mãos um livro. Como? Privilegiando o papel sem diabolizar o pixel! Porque se é certo, que a relação com o livro-objecto, só com o livro, mesmo, é possível desenvolver, não é menos certo, que posso partilhar com ela a leitura de um ebook. Conheço pais que o fazem com os seus filhos. Só não lhe passam o leitor para as mãos, sem supervisão, da mesma forma que lhe passam um livro. 

Distinguir os livros, que lemos com prazer, das fontes de informação, que se consultam por obrigação, é fundamental, neste processo. Nos primeiros, coloco a literatura – em todas as suas dimensões –, os ensaios, as obras de cultura, da história às artes, da filosofia às ciências... Nos segundos, coloco os jornais e revistas, os sítios da web,  o manual escolar – livro-repelente, que não é bem livro – aquela coisa a que recorremos, sem a expectativa de que algo nos surpreenda, e que, por isso mesmo, poderia muito bem ser digital.

Quando os estudos apresentados por Michel Desmurget dizem que a maioria dos leitores competentes "acham que o suporte em papel é preferível, nomeadamente, para leituras longas e exigentes, porque favorece a concentração", nada é dito sobre o aparelhos que suportam o texto, presentes no estudo, nem da experiência do leitor no uso de aparelhos dedicados à leitura  Eu li o livro de Michel Desmurget no kindle, e não me desconcentrei mais do que me teria desconcentrado se o tivesse lido em papel *–. Creio, aliás, que serão muito poucos a ter acesso a leitores dedicados à leitura de textos, demasiado caros, tendo em conta que só servem, exclusivamente, a leitura de livros digitais. 

Não desvalorizo as preocupações que o digital coloca. Mas recuso enveredar na histeria do "isto ou aquilo", num "ou" que exclui. Em pedagogia o "ou" é inclusivo. É isto ou aquilo, numa alternância que não exclui: isto agora, neste lugar, ou aquilo noutro tempo, no mesmo ou noutro espaço.

Claro que ficam preocupações a debater (que esperamos abordar em breve neste sítio). Mas essas passam ao lado da leitura e do prazer do texto, que nos obrigamos – porque devemos – a promover.

Ter na devida conta os dados que a ciência nos oferece, é fundamental. Mas com o cuidado de não correr a traduzi-los numa prática. Assim sem mais!... Até porque – repito – "o digital veio para ficar e ficou mesmo"


* O livro de Michel Desmurget, "Faite-les lire! Pour em finir avec le crétin digital", foi comprado em ebook, no inicio do ano, antes da edição portuguesa, publicada em Junho, com o título "Ponham-nos a ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais", da Contraponto. Quando o texto é escrito noutra língua que não a portuguesa (francês, inglês ou espanhol), prefiro a edição em ebook, quando existe. A disponibilidade dos tradutores digitais inteligentes, ajudam a resolver, rapidamente, as dúvidas de tradução localizadas, quando afectam a compreensão do todo.


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  • Tecnologia digital: extensão ou substituição >>>
  • Desafios que o ChatGPT nos coloca >>>
  • ChatGPT: uma aplicação que não é possível ignorar >>>
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sábado, 10 de fevereiro de 2024

Tecnologia Digital: Extensão ou substituição? Mais outras interrogações e a pedagogia no horizonte

Tema em desenvolvimento, iniciado a partir das interrogações de Isabel Calado, que tomamos a liberdade de fazer nossas, saídas da 75ª "Tertúlia Inquietações Pedagógicas".

Embora a minha preocupação, como professor, no que diz respeito à tecnologia digital, tenha ido no sentido do uso que lhe poderia dar como instrumento auxiliar do meu trabalho, de tirar o melhor partido dela, no dia-a-dia da sala de aula, hoje acho que acompanharia Isabel Calado, na sua preocupação, e estaria muito mais preocupado com o que a tecnologia pode fazer connosco, e não tanto com o que nós podemos fazer com ela

Trata-se, sem recusar o conforto que a tecnologia traz às nossas vidas, de pensar o seu uso de um modo que não nos faça seus escravos, que nos paralisa quando nos afastamos dela.

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quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Sobre os desafios que a aplicação ChatGPT e outras aplicações de inteligência artificial nos colocam


Duas versões lado a lado: a versão original em francês, e a versão portuguesa, trabalhada sobre um rascunho produzido pelo Chat GPT, antecedida de um apontamento [nota prévia], que dá conta da atenção que deve merecer-nos o uso que crianças e jovens fazem desta aplicação. Fica o convite à leitura.
 
Para aceder ao texto em pdf, com as duas versões, seguir a ligação que se segue:
"Chat GPT mata o desejo de aprender" - versão PDF >>>


***
NOTA PRÉVIA - Daniel Lousada

Como utilizador de tecnologias digitais, fui seduzido pelo Chat GPT e outras aplicações do mesmo género. Como não ser seduzido? Em segundos ele copia, de uma língua para a língua que eu pretendo, uma quantidade de páginas que me levariam largos minutos a copiar. Copia mas não traduz, dir-me-ão. Mas, não sendo tradução, é rascunho sobre o qual posso traba­lhar num trabalho de texto, que vou confrontando com o texto original. Não dispensa, portanto, o traba­lho de análise que só quem conhece minimamente as línguas em confronto é capaz de fazer, e que lhe permite atrever-se na tradu­ção. A mim, na escrita desta versão, não me dispensou do uso dos dicionários de francês, francês-português e do dicionário de sinónimos. Como não dispensa nin­guém da informação prévia que permite a pergunta sobre o assunto que a motiva. Se não sabes porque é que perguntas?”, diria João dos Santos.*

Como rascunho, a escrita que esta aplicação de inteligência artifi­cial oferece não é, assim, texto acabado, longe disso. E mesmo que as suas traduções fossem tecnicamente perfeitas (algo de que estão longe), seriam a “perfeição da máquina”, semelhante à perfei­ção da máquina do afinador de pianos: passado pela má­quina, o piano fica afinado; a afinação de cada nota está lá no lugar certo; mas, no fim, há qualquer coisa a faltar: faltam aquelas “imperfeições" que lhe dão o “tempera­mento” que o distingue como “aquele piano”. En­tão, é a vez do ouvido do afinador de pianos entrar em acção, fazendo um ajuste mínimo aqui e outro ali, até encontrar o “temperamento” certo que não está ao al­cance de nenhuma máquina. Um temperamento que, no caso da escrita, traduzo por "sabor do texto”, aquele ca­rácter que o distingue e que, muitas vezes, nos deixa adi­vinhar a identidade do seu autor. “Por vezes, para conseguir escrever, é preciso lu­tar contra a gramática”, diz Paulo Freire. Ora, a máquina não sabe lutar contra a gra­mática: limita-se a reproduzir a gramática que o progra­mador lhe deu.

Daqui a atenção que deve merecer-nos o uso que as cri­anças e os jovens fazem deste tipo de aplicações. Mas como atender aos seus usos, se formos incapazes de re­sistir àqueles que pretendem proibir a sua entrada na sala de aula?


* * *

Chat GPT mata o desejo de aprender - Alain Bentolila

Este texto é dedicado a todos aqueles que confundem "élévation" com "élevage” **


Querer saber não é sinónimo de querer aprender. Esta distância necessária entre saber e aprender está agora a ser posta em causa pelas redes sociais, que celebram a conivência em vez de explicitarem as diferenças, e já não convidam ao diálogo, mas fecham as pessoas numa “bolha". O ChatGPT insere-se nesta lógica de imensos perigos. Mas o perigo maior que representa para as nossas escolas não se resume à fraude que pode permitir, pois encontraremos sempre os meios técnicos para a evitar. A ameaça reside antes numa relação distorcida com o conhecimento. Como diz, e muito bem, Philippe MEIRIEU, "este robot de conversação, com a sua capacidade de dar respostas em tempo recorde, satisfaz o desejo de saber e mata o de­sejo de aprender". Afinal, para que serve fazer perguntas, para que serve tentar construir laboriosamente respostas se, com um simples clique, podemos mobilizar toda a inteligência do mundo para as trazer até nós com um esforço mínimo. Pedir a um robot de conversação que escreva uma declaração de amor, ou utili­zar a mesma ferramenta para dizer ao nosso  melhor amigo o quanto estamos tristes com a morte da sua mãe, tornar-se-á em breve um lugar-comum, e deixaremos de nos aperceber até que ponto este desprendimento apouca a nossa intenção, até que ponto enfraquece o nosso envolvimento.


Aprender a ler e saber ler

Muitas vezes, pensamos que se alguma criança, algum aluno, não lê, é porque não tem curiosidade alguma, ne­nhum desejo de saber. Isto nem sempre é verdade! Pelo contrário, é o frenesim, “a pressa da chegada”, que a leva a entrar em pânico e a bloquear. Saber antes de ter aprendido; saber sem se dar tempo para aprender; eis o que estas crianças desejam. Qualquer espera, qual­quer demora, imposta por um processo de aprendizagem laborioso, desmobiliza-as e pode, frequentemente, levá-las a uma raiva reprimida, que as paralisa. Na sua maioria, estes alunos, estas crianças, ar­dem de vontade de saber. Estão dispostos a fazer tudo para conquistá-lo, excepto esforçar-se por construir o seu próprio sentido a partir das escolhas dos outros. Saber, sim! Dar-se ao trabalho de aprender com rigor, não! O que os irrita até à exasperação é serem confrontados com uma actividade em que a informação não é mais orientada pe­los laços da confirmação imediata. Uma actividade que, como muito bem diz Serge Boimare, lhes impõe "um tempo de suspensão, um tempo de pausa para uma elabo­ração mínima, porque o que há para compreender não se dá de imediato”. Este "tempo suspenso", necessário à aprendizagem, pode provocar, junto da criança, dispersão e desordem. Ela experimenta-o como um vazio, uma falha, porque a dúvida e a incerteza são demasiado dolorosas para que ela possa estimular a actividade do pensamento. Em vez de sentir aquela ansiedade ligeira e normal, que surge naturalmente ao dar-se conta do que ainda não sabe, e que deveria encorajá-la a construir o seu próprio caminho, é invadida por uma frustração terrível, quando tem de fazer associações, ligações, numa palavra... investi­gar. Por outras palavras, é a impaciência de querer ver, como por magia, as imagens a formar-se na sua mente; é o desejo, praticamente impossível, de querer compreen­der sem ter feito nada para isso; é finalmente a recusa em conceder um prazo, por mínimo que seja, ao trabalho pelo saber, que explica a sua dificuldade, ou melhor, a sua dis­função cognitiva. Gostariam de sair do túnel sem precisarde tempo para escavar. Não é por incompetência ou preguiça que al­gumas crianças se recusam a ler. Não devemos resignar-nos a essa recusa com o pretexto de que não são "feitas da mesma massa que faz leitores", ou que as crianças de hoje gostam mais de jogos de vídeo do que de livros.... Enredadas que estão num universo onde reina a conivência, a passividade e a ambiguidade, habituaram-se a aceitar apenas textos cujo sentido lhes é amplamente conhecido de antemão. Por conseguinte, desconfiam de qualquer "aventura de compreensão" que possa impor a distância e convidar à critica e à argumentação.

O desejo de ensinar deve encontrar o desejo de aprender

Amanhã, como todos os dias, cada professor abrirá aporta da sua sala de aula, para encontrar aí cerca de vinte "filhos de alguém", alguns dos quais sem saberem exatamente por que estão ali e outros que prefeririam estar noutro lugar. Cada um deverá deixar à entrada à entrada as dúvidas que o atormentam, as suas esperanças, frequentemente frustradas, para todas as manhãs renovar o "voto do professor": Nenhum de vós sairá da sala de aula como entrou. Todos vós tereis aprendido coisas que vos são desconhecidas mas, acima de tudo, tereis compreendido coisas que mal sabeis existir, e assim sabereis pensar com mais liberdade e discernimento. Mas esta vontade magistral de formar a inteligência de cada aluno, de maneira singular, deve encontrar neles o desejo de aprender, porque, a menos que fracasse na sua função essencial, a escola não pode desinteressar-se da força que faz aproximar a mensagem da criança e das motivações que a levam a acolhê-la. São essas virtudes de curiosidade e coragem que estão hoje em perigo, e são elas que a escola e a família devem transmitir às crianças, ao mesmo tempo como um desafio e uma promessa. Pais e professores devem acompanhá-las, da pesquisa à descoberta, da regra reconhecida à regra aplicada, para que aceitem o esforço intelectual e o domínio emocional que lhes permitirão dissipar as trevas e, assim, merecer que a sua inteligência interprete livremente o conhecimento sem traí-lo. É nossa responsabilidade mostrar-lhes que o desconhecido é um desafio que devem enfrentar, aceitando que o prazer do conhecimento não é mais do que um justo retorno ao seu investimento intelectual. Ensinar as crianças a valorizar o esforço porque ele traz promessas de um maior poder sobre o mundo é, sem dúvida, a melhor defesa que podemos construir contra a tentação irresistível de se render ao CHAT GPT.

Se, como eu, acreditas que o propósito do ser humano é o desejo de descoberta, a curiosidade de compreender, é o apetite pela investigação, a alegria do intercâmbio entre seres humanos, então não te deixes encantar pelas proezas do CHATGPT, que pretende disponibilizar toda a inteligência do mundo aos teus filhos, organizada de acordo com critérios que eles desconhecem, e tratada com algoritmos aos quais eles nunca terão acesso. Em vez disso, presta atenção aos "porquê pai, porquê mãe, porquê professora?" que uma criança te dirige; como um apelo para olhar e questionar o mundo juntos. Desprezar esse apelo, enviado da inteligência de uma criança à tua inteligência, é o mesmo que dizer-lhe que as suas perguntas legítimas não valem um momento de reflexão partilhada. Na escola e em casa, devemos-lhe esse momento de suspensão, em que o adulto se diferencia da máquina, para responder com amor, como ninguém mais responderia, porque ela é o que é, e tu és o que és. Em resumo, na escola e em casa, fala uma e outra vez ainda..., ouve uma e outra vez novamente, discute, argumenta, conta histórias; e... Olha, olhos nos olhos, essa criança. Aprende a manter o seu olhar que te questiona, que às vezes te avalia e, na maioria das vezes, te implora que lhe assegures que ela não é um fardo, mas o sujeito de uma relação que não dispensas.

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A qualidade dos re­sultados obtidos com os assistentes artifici­ais inteligentes de­pende criticamen-te da qualidade da in­formação que lhes fornecemos  - a esti­mulação” (António Dias de Figueiredo, in Jornal de Letras, 29 de Novembro a 12 de De­zembro, 2023).

** Uma dedicatória cheia de ironia que se perderia numa tradução literal. Enquanto “Élévation" está relacionado com elevar ou levantar algo, "élevage" tem a ver com criação ou reprodução de animais.  Assim quem confunde “Élévation” com “élevage” não iria além da percepção que o significante lhe dá. Não seria, portanto, capaz de distinguir a acção de ajudar alguém a “elevar-se”, da acção de reprodução e criação de animais.

 

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

ChatGPT, uma aplicação de inteligência artificial, que não é possível ignorar, nem é sensato descartar


O maior perigo do ChatGPT não está na fraude que ele pode permitir, mas na sensação que dá de estarmos a falar com um humano e que inverte completamente o sentido da relação educacional - diz Philippe Meirieu -. Ele fornece respostas objectivas imediatas, dispensando, assim, a dinâmica do questionamento. Promove certezas que aprisionam o pensamento... Vai totalmente contra o que se espera de um professor: suscitar interrogações que libertam de preconceitos.

Philippe Meirieu, ao reconhecer a legitimidade das preocupações dos professores que temem que esta aplicação isente os seus alunos dos trabalhos de investigação e de escrita, defende (até por isso) que se traga o ChatGPT para a sala de aula, incentivando o estudante a formular perguntas de diferentes formas, para comparar respostas, confrontando-as com as respostas dos manuais e enciclopédias. De certa forma, promove-se a utilização das sugestões destes dispositivos como rascunhos, sobre os quais há que fazer todo um trabalho de identificação das proposições menos claras, deslizes semânticos, erros grosseiros até, que levam a mal entendidos que é necessário corrigir. Algo semelhante à tradução para português, realizada pelo ChatGPT, que acompanha a versão original de Philippe Meirieu, publicada pelo “Le Monde”, e que CONVIDAMOS AGORA A LER>>> 

terça-feira, 10 de outubro de 2023

A Pedagogia e o Digital: ferramentas para decidir

1. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que a horizontalidade das trocas que promovem não exclua a procura da verdade.

2. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que o imediatismo que elas promovem não exclua  a exigência da pausa que permite a reflexão.

3. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que  a educação tenha como objectivo ajudar os alunos a ingressar no simbólico.

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É preciso fazer uma pergunta simples que, por si só, nos pode permitir identificar algumas chaves para a acção quo­tidiana, que ao mesmo tempo nos ajuda a focarmo-nos no que importa: em que condições o uso das tecnologias digi­tais nas escolas pode contribuir para o desenvolvimento do pensamento?

1. A utilização das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que o carácter hori­zontal das trocas que elas favorecem não exclua a procura da ver­dade. A tecnologia digital, através da Internet e de todos os instru­mentos de comunicação "em tempo real" que ela permite, modificou radicalmente o acesso à informação. Qualquer estudante, da escola primária à universidade, tem acesso instantâneo a um manancial de dados. A investiga­ção docu­mental, outrora confinada ao mundo abafado das bibliote­cas e dos centros de documentação, está agora à distância de um clique, a partir de qualquer lugar, sem re­quisitos es­peciais. Os motores de busca são consultados sis­tematica­mente e abrem uma quantidade fabulosa de docu­mentos de todos os tipos: textos digitalizados, fotografias e vídeos, textos de arquivo e peças noticiosas. Tudo isto dá a im­pres­são de que o conhecimento está a tornar-se acessível a to­dos, e que cada estudante está ao mesmo nível face ao acesso à “cultura”.

É claro que raciocinar assim é ignorar o paradoxo que está no cerne de todas as políticas culturais, já apontado por Bourdieu no seu estudo sobre os museus: o simples au­mento da oferta aumenta as desigualdades porque se apoia na procura daqueles que têm o capital simbólico, para de­se­jar apropriar-se dos bens culturais assim oferecidos. E tanto mais que, no caso da Internet, ignoramos também a natureza da "investigação" que aquela oferta permite.

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sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Digital e Modernização Educativa

A propósito de "Educação, reforma do ensino e fim dos livros em papel", publicado em >>>

A utilização do digital na sala de aula, não define, por si só, a modernidade dos processos de trabalho praticados, embora haja quem defenda que instrumentos mais evoluídos possam ser factor determinante na mudança para práticas de trabalho mais eficazes.

Não é pela fraca utilização do digital na sala de aula que Portugal tem, eventualmente, uma educação do século XIX, mas porque a organização do trabalho de aprendizagem dos alunos tem evoluído muito pouco desde então. Atualizando o que Freinet e Salengros escreveram em "Modernizar a Escola" (1960), um instrumento do século XIX também é do século XXI se responder aos seus desafios [*] O livro, só por ser digital, não melhora a qualidade da aprendizagem e do ensino, se não se ensinarem os alunos (e, já agora, os professores) a tirar partido de todas as suas potencialidades. Mais ainda, se não for garantida a qualidade do digital para todos os utilizadores, qualquer que seja o seu poder económico (coisa que a pandemia revelou não ser fácil de garantir), as desigualdades tendem a aprofundar-se. Enquanto não se garantir a qualidade do digital para todos, não se metam em "guerrinhas" com o livro em papel.

Já no que diz respeito aos instrumentos de escrita, enquanto estes não permitirem uma escrita à mão igual ou superior, NÃO SE METAM COM O PAPEL. Pelo menos com as crianças do ensino básico.

Daniel Lousada

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[*] Ler a propósito, "Inovação ou o jia visto pintado com outras cores?" >>>

terça-feira, 3 de outubro de 2023

O digital veio para ficar e ficou mesmo [ponto]

Algum dia, em nome da preservação do ambiente, ou de qualquer outra causa, que não vislumbro, num futuro que não sei como será, cenário de ficção científica, apocalíptico talvez, o livro em papel será objecto de museu!

Vem isto a propósito do debate sobre os usos e abusos da utilização dos instrumentos digitais na escola, que me traz o desconforto de estar na presença de um de­bate sem rumo e sem foco. Elege-se o smartphone como inimigo e, de re­pente, não é só este dispositivo que está em causa, mas to­dos os dispositivos electrónicos, como supor­te da in­forma­ção em geral, e do texto em particular. Somos o oito ou oi­tenta, vamos do endeusamento do digital à sua diaboliza­ção, com uma rapidez surpreendente (efeito de “Maria vai com as outras”, que nos dispensa da capacidade de pen­sar?).

Até há bem poucas semanas, quando se fa­lava dos perigos associados ao digital, não era o seu uso, em geral, que era posto em causa, mas o seu uso sem con­trolo. Agora, dizem-nos que “a simples proximidade de um telemóvel é capaz de distrair os estudantes (...), prejudicar a gestão da sala de aula (...) e pôr em risco a interacção humana”, como que a admitir que o trabalho na sala de aula (se de trabalho se pode falar, nestas condições) se desenrola em roda livre [1].

O que caracteriza a escola como espaço educativo, é o con­trolo do trabalho de aprendizagem que nele se realiza. Não se vai para a escola para usar os instrumentos de trabalho (digitais ou quaisquer outros), à vontade do fre­guês, sem critérios ou sem qualquer objectivo educativo no horizonte. En­tão, a questão está em saber em que condi­ções, e por quem, esse controlo é exer­cido. Aliás, como dizia António Nunes, no programa Antena Aberta, a propósito da entrada, na es­cola, das tecnologias de infor­mação e comu­nicação, “há momentos em que a voz é importante e as ca­netas estão paradas [2]. Ora, é precisamente ao professor que compete gerir estes momentos: decidir sobre os tempos em que os smartphones estão ligados ou desligados. Não acho, assim, pelo que se diz e escreve, que seja um problema que resulte da proximidade dos alunos com estes dispositivos, mas da dificuldade, ou mesmo da incapacidade, que grande parte dos professores sente, em gerir aqueles tempos. Conse­quência de uma autoridade (a sua), que a cada dia sentem que estão a perder e pensem que, desta forma, ela possa ser restau­rada? [3]

Se da presença dos smartphones, na sala de aula, se pode dizer que le­vanta, em muitos casos, problemas difíceis de gerir, já da substituição dos manuais escolares, em papel, pelos correspondentes digi­tais, não vejo que problemas possa trazer. Os ta­blets que suportam os manuais esco­lares permitem o acesso a conteúdos que não queremos que se­jam acessíveis aos nossos alunos? Fácil: bloqueie-se o seu acesso nesses dispo­sitivos; façamo-los dispositivos dedica­dos à leitura de manuais es­colares e de mais informação re­lacionada com eles.

Bastou a Sué­cia travar às quatro rodas, na digitalização dos ma­nuais escola­res para que, entre nós, se levantasse um coro de vozes a reivindicar idêntica decisão. Como se, o livro em papel, só consiga entrar na sala de aula através do ma­nual escolar... Esquece-se que, o que se passou na Suécia, foi o resultado de uma soma de excesso, que valeria a pena analisar, não vá começarmos nós, agora, a soma de outros excessos mas de sentido contrário [4].

Para mim e para outros como eu, que gostam de livros, o manual escolar é um “livro” que não é livro. É coisa da es­cola, um instrumento de trabalho que, sendo bem feito (seja qual for o seu formato), poderia ser ligação a outros livros, esses sim, a merecerem ser lidos ou consul­tados. Além do que, o livro digital (e-book) também é li­vro, e são cada vez mais as editoras que, a par da edição em pa­pel, apostam neste formato. Pela parte que me toca, con­fesso, são mais os livros que compro, hoje, neste formato do que em papel. Leio-os, nos dispositivos dedicados à sua lei­tura, com o mesmo prazer ou desprazer, de­pendendo do conte­údo, excepto no ecrã de um pc.

Claro que, dir-me-ão, “sentes o mesmo prazer a ler e-books, porque passaste pelo livro em papel antes de chegar a eles. Quer dizer, construíste uma relação com os livros, que trans­por­tas agora para o digital; ao lê-los, na tua cabeça está, de certa forma, um livro”. E é verdade, ou acho que é verdade: o desenvolvimento do gosto pela leitura de um livro faz-se também da relação (afectiva), que conseguimos estabelecer com o objecto que suporta o texto. Quem gosta de ler tam­bém gosta de livros. Quem gosta de livros também gosta de ler. Os miú­dos precisam de estar rodeados de livros para que possam relacionar-se com eles. Se não estão em casa, deveriam estar na escola, na sala de aula. 

O manual esco­lar digital só é concorrente do livro em papel se deixarmos que seja. Na Sué­cia, quiseram que o digital fosse con­cor­rente do analógico. E ele fez o que lhe compe­tia: deu cabo da concorrência! Porque deixa­ram que desse! Agora fazem marcha atrás, num processo em tudo seme­lhante, mas em sentido contrário, respei­tando, suposta­mente, as conclu­sões da "ciência". Temo que se esqueça que, em edu­cação, nem tudo (para não dizer nada) é científico; o que acontece, nesta área, tem em conta as ciências, certamente (da educação e outras), mas a sua aplicação não é científica, é pedagógica: uma acção inserida na busca do sentido do acto educativo, na sua relação com os instrumentos pedagógicos que melhor o servem [5]. Valeria a pena, certa­mente, trazer a voz dos pe­dagogos para o debate.

Estranho mundo, este em que vivemos. Valorizamos o digital nas nossas vidas, mas não sabemos (nem procuramos saber) o que fazer para ajudar as nossas crianças e jovens a usá-lo de uma forma saudável! Apetece dizer, com Philippe Meirieu, “Velho devaneio filosófico: reduzir o mundo àquilo que podemos pensar dele ou àquilo que per­cebemos dele. E, para ter a certeza de lá chegar, fazê-lo en­trar in­teiri­nho no nosso campo de visão...” [6].

Entretanto, chegam-me notícias que dão conta de escolas que proíbem os smartphones nos recreios, aparentemente com a adesão dos miúdos: “Foi quase como se tivesse auto­rização para brincar” [7].

O recreio é um daqueles espaços que, embora na escola, é um espaço, de certa forma, sem controlo. Não é sobre estes espaços que escrevo. É sobre o uso dos dispositivos digitais em espaços controlados, que me atrevo a pensar. E que só neles é possível aprender a usá-los de forma sau­dável. Por­que se não há um espaço onde as crianças possam apren­der, elas aprendem, de qualquer forma, em qualquer es­paço, correndo o risco de aprender mal: no recreio, por exemplo. Nestes espaços, não con­tro­lados, e só nestes, que, tantas vezes, nem vigiados são, admito que o uso destes dispositivos possa ser vedado, não sem antes procurar que a decisão seja vista como legítima, aos olhos de todos quantos serão afetados por ela.

E já agora, uma provocação, ou nem tanto: porque não vedar o uso do smartphone no espaço familiar, pelas mesmas razões com que se pretende proibir o seu uso na escola?

DISPONÍVEL em PDF >>>


[1] Onde o smartphone põe em risco a interacção humana, não é na sala de aula, onde é utilizado como instrumento de trabalho. O risco ocorre em espaços sociais não controlados, e em espaços familiares que os usa como “amas”.

[2] “Computadores na escola: quais os aspectos positivos e quais as des­vantagens”. Programa passado, em simultâneo, na TSF e na RTP2, em No­vembro de 2012.

[3] “O verdadeiro problema não é o declínio da autoridade, é o facto de se colocar em rivalidade as autoridades entre si no seio do próprio processo educativo (...). Aquilo que está verdadeiramente em causa não é restau­rar a autoridade mas de torná-la legítima aos olhos daqueles que estão sujeitos a ela, não só a fim de que a aceitem mas também de que a respeitem” (Philippe Meirieu, in O mundo não é um brinquedo, Porto, edições ASA, 2066: p. 28).

[4] O recuo da Suécia é algo mais complicado do que o simples processo de voltar atrás na digi­talização dos manuais escolares. Porque não é ape­nas a digitalização dos manuais que está em causa. Avançaram tão rapi­damente, e de um modo tão radical, neste proces­so de digitalização do ensino, que chegaram ao ponto de trocar não só o livro em papel pelo e-book, mas também de apostar na irradicação do papel, trocando-o pelo pixel, o que levou ao uso do teclado como instrumento privilegiado de escrita.

[5] "Viver é resolver problemas. É isso que é decisivo" - diria Karl Popper, se fosse chamado ao debate - "O mundo põe problemas à vida. Ao mesmo tempo a vida é o pressuposto do problema (...) e as teorias que colocamos ao mundo são tentativas de resolução de problemas". E não é pelo facto de ser retirado do espaço onde ele se manifesta que um problema deixa de ser problema.

[6] Philippe Meirieu, O mundo não é um brinquedo, Porto, Edições ASA, 2006: p.199.

[7] In Público on-line: 1 de Outubro, 2023.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Compreender a utilização do digital pelos jovens

Bruno Devauchelle
Versão condensada em português de Luís Goucha
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No início deste século, quando começamos a inquirir sobre este fenómeno, constatamos que, mesmo nos meios mais desfavorecidos, todos os jovens procuravam o acesso aos meios informáticos e à internet. Quase todos, de um modo ou de outro, estavam regularmente em contacto com estas tecnologias.

Hoje, quando se fala de fractura digital e info-exclusão, esquecemos que o acesso à informática e a utilização destes meios são não só uma marca social mas também um fenómeno de aculturação e, mais importante, de inserção social.

Tudo passa, inicialmente, por uma prática individual e, depois, pela comparação e trocas entre pares. Quando questionados sobre como é que tinham desenvolvido as suas capacidades na utilização do tratamento de texto e envio de mensagens, estes jovens responderam sempre: desenrascámo-nos! Um entusiasmo motivador, mas sobretudo uma aculturação, que não passava pelo domínio das técnicas, mas antes de tudo pela compreensão do que está em jogo: a exclusão social, na maior parte das vezes. Então partiam, simplesmente, à procura, sem bússola, da escola, pelo menos.

As redes sociais digitais estão aí, os smarttphones generalizaram-se, o acesso à web democratizou-se. E, no entanto, parece desconhecermos o tipo de relação que os jovens têm com a sociedade, através dos meios digitais. Multiplicam-se as análises acusatórias, enquanto que, ao mesmo tempo, a indústria e o comércio, percebem perfeitamente as forças e as fraquezas deste estado de coisas: por um lado, a atracção por estes objectos e, por outro, a fraca resistência a um consumo generalizado [publicidade, manipulação] que relativiza não só as técnicas, como também as suas múltiplas utilizações.

O professor enfrenta jovens para quem a utilização dos meios digitais são uma banalidade. Está perante duas linhas de força: as imposições dos programas oficiais, e as competências demonstradas por eles. O fosso entre estas duas realidades, tantas vezes falado, revela a incapacidade da escola em abandonar “o modo de cumprir” os programas, as regras oficiais, nem sempre de acordo com as necessidades dos alunos.

Em 2010, um programa francês [Curiosphère], já desaparecido, dava conta da nova vida relacional introduzida pelo uso do telemóvel, e das questões que isso colocava à escola. Dez anos depois, constatamos a ausência de transformações, ou de decisões políticas, para além da inquietante proibição de utilização de equipamentos pessoais, nos estabelecimentos de ensino, por clara falta de visão – Resultado, apenas, da agitação mediática à volta do digital entre os jovens, feita a partir de notícias espectaculares [especulativas, na maior parte dos casos], realçando o lado negativo do seu uso, evocando como verdade, para apoiar a análise, uma ou outra investigação científica, que deveria ser, apenas, ideias a discutir.

Foi preciso o confinamento desta Primavera, para nos confrontarmos de novo com a relação entre as práticas digitais dos jovens e o mundo escolar. Se muitos educadores reivindicam a escola como um lugar de interacção e de construção social, esquecem-se quase sempre de perguntar “mas como?”, tendo em conta o contexto e as práticas sociais. Com os meios digitais, as pessoas e em particular os jovens [categoria que de forma nenhuma é homogénea] desenvolveram novas formas de construção da sua sociabilidade. Ora, a sociedade que se construiu com esta escola, instituiu formas de relacionamento social que nunca tiveram em conta estas transformações [O choque do confinamento foi um parêntesis e um revelador do que se passava]. Para se levarem em conta estas novas transformações, vai ser preciso aprofundar a maneira como os jovens, as crianças, as famílias, utilizam estes meios no seu quotidiano. Da mesma maneira que os professores devem ser convidados a melhor conhecer os seus alunos, no modo como estes se projectam, através dos dispositivos tecnológicos que utilizam.

Falta, muitas vezes, a atitude de observação e analise colectiva baseada em referências fundamentadas, mesmo que discutíveis. Ora, neste domínio, a pedagogia da controvérsia é uma óptima base de trabalho para pais e professores.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A pedagogia e o digital: em que é que ficamos?

Philippe Meirieu

Versão portuguesa [condensada] de Luís Goucha

Assistimos, com um misto de preocupação e sensação de impotência, a um processo de desinstitucionalização da escola. Em poucos anos, passámos de uma escola institucional e estável, para uma “lógica de serviço”, onde cada um surge, conforme lhe apetece, com o que lhe apetece, esquivando-se da mínima contrariedade. Se, antigamente, se entrava na escola como quem entra num teatro, hoje entra-se na escola como numa sala de estar, em que a televisão está ligada e, se o programa não agrada, tiramos o comando ao vizinho e mudamos de canal. Num contexto assim, estruturar um colectivo é quase impossível. LER MAIS >>>

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Paremos de vez de endeusar o digital

Philippe Meirieu
Versão portuguesa de Luís Goucha [PASSAR AO TEXTO EM PDF >>>]

Nesta entrevista, Philippe Meirieu reflecte sobre a profunda crise que se abateu sobre a escola, sobre as dificuldades sentidas pelos alunos menos privilegiados, e antecipa os problemas da futura recuperação…

quarta-feira, 20 de maio de 2020

A tecnologia... A bênção dos homens!

António Nunes
«A humanização da tecnologia ao serviço da aprendizagem»! A sério?
Estes "modernistas de circunstância", sempre atentos às oportunidades de um qualquer COVID, têm esta tendência de se enredar nestes delírios, ligando a humanidade a tudo, até mesmo à tecnologia, a um robot, talvez, assim ao jeito de quem diz: olha só…, como é tão humano!