segunda-feira, 20 de julho de 2020

A professora Isa não é leitora?

A propósito da vergonha alheia de Raquel Varela


Daniel Lousada [ Disponível também em PDF >>> ]


A professora Isa, como professora do 1º Ciclo, “ensina” muitas artes: expressão plástica, musical, matemática, história, ciências... e, claro, português. Duvido que alguém possa gostar de tudo isto por igual.

«Não sou leitora. Nunca fui muito de ler livros»[*], responde quando lhe perguntam o que andava a ler. Quer dizer que se afasta dos livros como se estes fossem repelentes? Não, diz tão só que procura entretimento noutras leituras ou noutras artes. E, curiosamente, embora diga não ser leitora, também diz gostar de livros: «Os livros infantis são muito importantes para mim, (...). Em casa, na pequena biblioteca que tenho, e na escola, passaram a ser um grande contributo para o meu trabalho». Afirma inclusive, uns parágrafos acima, que está «a estudar para tirar uma pós-graduação em "livro infantil"». Ora, isto não se consegue sem leitura e sem escrita. Donde que alguma coisa terá de ler. Mas ao ler a entrevista e, a seguir, os comentários violentos, que se escreveram sobre ela, centrados unicamente numa resposta infeliz, esquecendo tudo mais, fica-me a impressão de estar na presença de "leitores de letras gordas".

Conheço professores que, não gostando de grandes leituras, ligam-se à leitura pelo desejo de saber. E conseguem passar este desejo aos seus alunos, como só muito poucos conseguem! Outros, do mundo universitário, confessam que as suas leituras acontecem em função das aulas que têm para dar e dos projectos de escrita [de artigos, coisas de carreira] que têm em mãos: a leitura amarrada, não ao prazer de ler, mas ao propósito de uma escrita utilitária. Outros ainda, grandes leitores(as), são incapazes de fazer gostar seja do que for – Entre os primeiros e estes últimos, prefiro seguramente os primeiros, pela seriedade com que encaram a profissão.

CLARO QUE GOSTAR DO QUE SE ENSINA AJUDA: dispensa-nos o trabalho de fazer de conta que gostamos! Sim, fazer de conta! E até nem é muito complicado fazê-lo com crianças deste nível de ensino: basta saber ler e investir na construção de uma personagem que adora ler o que está a ler. Pode, depois, acontecer a dificuldade em discorrer sobre a qualidade literária da obra, mas isso é irrelevante neste nível de ensino. Durante a minha carreira tive de ler e dar a ler livros que não gostava, e li-os aos meus alunos, como se os adorasse, tão convincentemente, que alguns quiseram levar o livro, para repetir a leitura em casa! Nalguns casos [poucos, confesso] deixei-me entusiasmar pelo seu entusiasmo, e dei por mim a gostar do que lia!

Há confissões que só devem fazer-se no confessionário! E, Infelizmente para a professora Isa, os jornais não são confessionários, nem lhes compete perguntar ao entrevistado se acha mesmo do seu interesse partilhar esta ou aquela informação. Eles iam lá perder a oportunidade de partilhar esta confissão, destacando-a das demais em letras gordas. Enfim, coisas de quem, ingenuamente, se enreda nestas redes e deixa que a visibilidade do seu trabalho o transforme em curiosidade mediática.

Já agora, eu nunca gostei de algoritmos, nem de raízes quadradas [estas já nem sei mesmo como se fazem], mas isso não me impediu de ser competente no seu ensino, quando ensinava.

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[*] Esta citação foi partilhada, pela historiadora Raquel Varela, da seguinte forma: "A professora de português – já vimos não ser de português – (...) deu uma entrevista ao Expresso este fim de semana onde diz que nunca gostou de ler, cito". Obviamente, não citou coisa nenhuma. De nunca gostei de ler a nunca fui muito de ler livros, há uma distância enorme: eu que nunca fui muito de copos, gosto muito de um bom copo, principalmente se a acompanhar uma boa conversa entre amigos – Apetece dizer que até os melhores se deixam contaminar pela mentalidade facebook.

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