Contrariamente ao que pensam tanto os seus apoiantes como os seus opositores, a pedagogia não combina «naturalmente» com as utopias. Muito pelo contrário! Quer definamos a pedagogia, segundo a tradição etimológica, como «acompanhamento» da criança em direcção ao preceptor, quer prefiramos uma definição mais conceptual, considerando-a como uma relação necessária e provisória que visa a «emergência» de um sujeito autónomo, em ambos os casos, o que a caracteriza é o movimento: «acompanhamento» ou «emergência» opõem-se, de facto, a qualquer forma de entrincheiramento. Ser «pedagogo» é, pois, recusar o confinamento e a fatalidade, lutar contra todas as formas de prisão domiciliária e todas as formas de reprodução sociológica ou mimética; é, nas palavras de Kant que definem o Iluminismo, permitir a cada um de nós «pensar por si próprio» ou, como diz Pestalozzi de forma mais radical, fazer com que cada um de nós possa «fazer obra de si próprio». LER TEXTO COMPLETO >>>
quarta-feira, 22 de janeiro de 2025
segunda-feira, 16 de dezembro de 2024
Liberdade pedagógica: O bem-comum dos professores?*
A diferença fundamental de cultura profissional entre as escolas do 1º. ciclo e secundárias raramente é tida em conta, se é que o é, na maior parte dos comentários sobre as escolas e sobre os «professores», incluindo os de académicos de renome ou de observadores bem informados (gestores ou activistas educativos, jornalistas especializados, etc.). Não é identificada como um elemento relevante de análise. É como se a cultura profissional do ensino secundário fosse a única que permeasse todo o sistema escolar, ou pelo menos a única legítima, identificável, referencial. No inconsciente social, o professor típico é o professor (mono)disciplinar de uma escola secundária. Este modelo esmaga todas as outras realidades, mesmo que sejam consistentes, antigas e contínuas. A unificação dos sistemas escolares, outrora institucional e socialmente segregados, teria de facto assegurado o domínio da cultura de elite do antigo liceu napoleónico sobre o conjunto do sistema, impedindo a difusão de uma cultura democrática partilhada entre os diferentes níveis.
Este tropismo do ensino secundário está, portanto, extremamente enraizado em todos aqueles que tiveram uma formação universitária ou superior, ao ponto de já não se aperceberem deste hiato ou de partilharem inconscientemente a sua filosofia elitista. A fraca capacidade pedagógica dos académicos para fazer entrar os estudantes no ensino superior está bem documentada, tal como a taxa de insucesso que caracteriza os primeiros anos da universidade em muitas disciplinas. Além disso, quando se sai do ensino superior, a memória dos professores da escola primária já desapareceu há muito tempo, ao passo que o número de professores que se encontram no ensino secundário e universitário é infinitamente maior e as suas figuras mais proeminentes. Uma das excepções, que confirma a regra, é a famosa homenagem de Albert Camus ao seu professor primário, no discurso de aceitação do Prémio Nobel da Literatura.
Outra explicação para o tropismo implícito do ensino secundário pode residir no desejo de não criar uma diferença corporativista entre os diferentes corpos docentes. Desde que os professores do ensino primário se tornaram professores (com a Lei da Educação de 1989**) e, portanto, professores de pleno direito, a crença na unidade da profissão docente, como horizonte de progresso, faz parte do credo unitário, se não mesmo uma realidade objectiva. Sublinhar hoje o fosso entre as duas culturas profissionais correria o risco [...] de ser visto como o instigador irresponsável de uma divisão interna. [...] Esta cultura tende a opor-se a uma visão «liberal» da profissão docente [...]. A noção de «liberdade pedagógica» pode assim ser posta em causa sob o pretexto de que é brandida, por razões erradas, por professores «individualistas» ou, como uma bandeira, por forças hostis ao serviço público de educação e à sua democratização.
De facto, existem várias utilizações enganadoras desta noção de liberdade pedagógica. Esporadicamente, há professores que, argumentando que têm a «sua» liberdade pedagógica, acreditam que podem isolar-se no seu antiquado magistério, recusando colaborar com os seus colegas, ou a prestar contas de escolhas ou decisões arbitrárias que fazem. Depois, há o caso sistemático dos movimentos conservadores que se opõem sistematicamente às reformas educativas democráticas e que acreditam poder esconder-se atrás da «sua» liberdade pedagógica para legitimar a sua rejeição de medidas que contradizem as suas orientações retrógradas. Por fim, há os promotores de escolas não contratuais que, a pretexto de respeitarem a «liberdade educativa das famílias», exigem que as suas escolas recebam o mesmo financiamento público que as escolas públicas.
Estas utilizações do conceito são claramente erradas. No caso da profissão de professor, a noção de liberdade pedagógica não pode justificar uma prática «solitária» e «discricionária» (uma «prática liberal» no sentido negativo). Esta visão é o oposto da sua definição fundadora. Pelo contrário, a liberdade pedagógica só assume o seu sentido profissional no espaço colectivo do trabalho docente (entre colegas e de forma organizada) e na deliberação argumentada, sob o controlo a posteriori (reforço a posteriori) de superiores hierárquicos, dotados de competências neste domínio. Reduzir a liberdade pedagógica ao exercício egocêntrico do trabalho docente é reduzi-la a uma caricatura. É o tipo de atalho utilizado por aqueles que afirmam que o «anarquismo» reina numa escola fragmentada por causa de professores «indisciplinados». Isto enfraquece perigosamente o significado político e histórico da liberdade pedagógica, que é simplesmente outro nome para a autonomia profissional dos professores face a guardiões ideológicos (dentro ou fora da escola) que são portadores de valores anti-democráticos.
A liberdade pedagógica deve, portanto, ser defendida como um bem-comum a todos os professores, independentemente do seu estatuto, do seu nível de ensino ou do contexto em que trabalham: uma liberdade republicana e liberal (no sentido positivo, dando poder de acção em troca de compromisso) que liga a autonomia profissional dos professores à sua responsabilidade individual e colectiva de defender a equidade democrática contra todas as imposições autoritárias e elitistas.
Analisando a questão da partilha de responsabilidades entre os diferentes níveis da pirâmide institucional, o psicólogo canadiano David R. Olson observava em 2003: «A preocupação com a eficiência escolar, que é uma preocupação recente, conduziu a um grave choque entre os diferentes níveis de responsabilidade, recaindo a responsabilidade final sobre os mais vulneráveis, o aluno e o professor, enquanto a responsabilidade dos níveis mais elevados do sistema educativo desaparece. Assim, os governos, em vez de se responsabilizarem por não serem capazes de proporcionar profissionais devidamente formados ou de garantir a satisfação no trabalho, essencial para reduzir a rotatividade e a demissão do pessoal (que são fundamentais para o sucesso de uma escola), tendem a centrar-se exclusivamente no desempenho dos alunos e a atribuir prémios e sanções apenas a professores e alunos. Aproximar as avaliações, concentrando-se apenas na última linha do balanço, o sucesso dos alunos, em vez de julgar separadamente a qualidade das diferentes componentes do sistema, conduz obviamente a uma redistribuição de responsabilidades da pior maneira possível...».
Para este psicólogo, esta forma de avaliar a eficácia do sistema, através de um indicador pouco adaptado à esfera de responsabilidade dos detentores do poder, permite-lhes evitar que sejam avaliadas as suas próprias competências, as de gerir eficazmente a afectação dos recursos para dirigir e organizar o sistema escolar da melhor forma possível. Ao concentrarem-se nos resultados dos alunos e dos professores, deixam na sombra os indicadores que avaliam o funcionamento operacional da instituição, que não são levados ao «debate público». Trata-se, portanto, de uma outra armadilha para os professores, que são responsabilizados por resultados e objectivos quantificados, sem poderem realmente intervir nas condições que tornam esses resultados possíveis, sob o pretexto de que isso seria da responsabilidade exclusiva dos tecnocratas superiores e da hierarquia...
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terça-feira, 10 de dezembro de 2024
Compreender o que é o aluno para melhor o apoiar no seu «ofício»
Laurent Reynaud
Olhar para um aluno de uma forma diferente pode significar encontrá-lo num contexto diferente da sala de aula. Todos nos lembramos de um passeio escolar em que certos alunos nos pareceram «diferentes» do que pensávamos que eram. Observar aulas da mesma turma numa disciplina diferente, também pode mudar essa percepção. Uma mudança de contexto não significa apenas uma mudança de local, como uma visita de estudo, mas também, talvez, uma mudança de relação. Por exemplo, colocar os alunos em posições de responsabilidade. CONTINUAR A LER >>>
terça-feira, 15 de outubro de 2024
Da investigação em pedagogia
Não consigo conceber a actividade universitária como uma justaposição entre duas funções — o ensino e a investigação — que, infelizmente, são reconhecidas e valorizadas de forma muito desigual. Para mim, não existe apenas um simples hífen entre as duas palavras, professor e investigador, mas uma relação consubstancial que torna cada uma das duas actividades inconcebível sem a outra. É o próprio sentido da palavra «universidade», em referência a um possível — mas obviamente nunca realizado — projecto «universal» de partilha de conhecimentos entre os seres humanos. A investigação universitária deve estar imbuída da vontade de transmitir o saber, de fazer do conhecimento um meio de ligação entre as pessoas, de construir pontes entre as culturas, de dar ao maior número possível de pessoas os instrumentos necessários para compreender o mundo e de contribuir para o esclarecimento do debate público...
Não compreendo certos colegas que dizem perder tempo com os estudantes e que prefeririam dedicar-se à «investigação pura». Compreendo-o tanto menos, quanto acho que o valor da investigação é testado pela capacidade de transmitir a sua abordagem e os seus resultados. O ensino desempenha, assim, um papel fundamental para o investigador: é um instrumento precioso de formalização e um meio de sair do egocentrismo. O projecto de ensino abre a investigação à universalidade possível do conhecimento, tal como a exploração da investigação liberta o ensino do dogmatismo repetitivo.
Estou, evidentemente, consciente da desconfiança que rodeia o meu trabalho de investigação na universidade. Nas ciências humanas, continuamos a depender de uma concepção positivista e experimental da investigação: a exposição de metodologias, essencialmente quantitativas, continua a ser, muitas vezes, o único critério de cientificidade reconhecido. Como se a finalidade da investigação não fosse, muito simplesmente, produzir modelos — que devem, evidentemente, ser bem fundamentados e discutidos — que nos permitam compreender o mundo e agir dentro dele. Com as concepções que hoje dominam a «investigação», creio que as maiores e mais reconhecidas figuras históricas, aquelas que fizeram progressos decisivos na educação, não teriam encontrado lugar na universidade: nem Jean-Jacques Rousseau, nem Jean-Gaspard Itard, nem Célestin Freinet, nem mesmo, noutros domínios, Sigmund Freud ou Denis Papin!
Pela minha parte, acredito na possibilidade de uma investigação que combine observação e invenção, documentação meticulosa e construção de propostas coerentes, referência ao passado e o trabalho em associação com os professores. Não creio que o investigador deva estar numa posição de superioridade em relação aos profissionais, ao ponto de pretender dizer a verdade por eles. Os investigadores — pelo menos em pedagogia — devem submeter o seu trabalho ao teste da transmissão e oferecê-lo à inteligência colectiva. É por isso que não tenho qualquer vergonha de me ter comprometido no domínio da divulgação: desde que não renuncies à substância, ganhas sempre em expor-te. E eu prefiro expor-me ao julgamento do maior número possível de pessoas do que impor as minhas pretensões metodológicas e a opacidade do que tenho a dizer a um número restrito de pessoas, que se sentem lisonjeadas por fazerem parte do cenáculo... É obviamente mais arriscado, como é, por definição, o projecto de ensinar. Qualquer professor te dirá: ensinar nunca é um dado adquirido. É também por isso que me vejo neste trabalho e que gosto tanto de o fazer.
Por isso ainda dou aulas todas as semanas. É uma actividade que me é indispensável.
quarta-feira, 9 de outubro de 2024
Pedagogia e Emancipação
Comecemos por um dos principais pensadores da educação emancipadora, Paulo Freire. Trabalhador social brasileiro, Freire começou por reflectir sobre a educação antes de se doutorar em filosofia, em 1959, sobre a relação entre educação e liberdade. Em seguida, volta-se para a educação popular, concentrando-se na alfabetização dos camponeses. Em 1964, o governo brasileiro confiou-lhe a responsabilidade por um programa nacional de educação. Essa experiência foi interrompida pela ditadura militar, que o levou ao exílio durante quinze anos. Foi neste período que produziu a maior parte das suas reflexões pedagógicas, que viriam a ter um enorme impacto, especialmente durante os anos de transição democrática no Brasil, onde se tornou praticamente o pedagogo oficial [1]. Embora tenha trabalhado apenas no contexto da educação popular, é, no entanto, um dos autores mais representativos das "pedagogias críticas", ou seja, aquelas que promovem a transformação social e estão ligadas à luta contra a opressão [2].
Para Freire, qualquer trabalho sobre a opressão começa com a busca dos seus fundamentos e de como ela funciona como sistema. Descreve isto como "consciencialização", que não se limita à tomada de consciência da sua condição de oprimido (para isso, ninguém precisa de qualquer tipo de pedagogia), mas na qual os mecanismos de opressão são explicitados. Neste sentido, esta nova consciência dirige-se tanto aos dominantes como aos dominados. Mas, ao contrário da versão neoliberal da emancipação, este trabalho não tem como objectivo permitir que os oprimidos se tornem dominantes. Pelo contrário, o objectivo da tomada de consciência é abolir todas as formas de dominação — a única condição para uma verdadeira emancipação social. É por isso que as pedagogias críticas influenciadas pelo modelo de Freire são feministas, anti-racistas e anti-capitalistas. São pedagogias libertadoras. Neste sentido, ajuda a libertar-se de todas as formas de dominação social.
Como nos lembra o prefácio de Irène Pereira, o "método" de Freire para alfabetizar os camponeses é muitas vezes confundido com a sua pedagogia, que vai muito mais longe: é uma forma de pensar a emancipação através da educação. Ao colocar a relação entre o professor e o aluno — que ele descreve como "diálogo" — no centro da sua pedagogia, Freire opõe-se à pedagogia bancária. Vista como o produto de uma situação dialógica, a aprendizagem, para Freire, implica igualdade na relação ensinante-ensinado, não tanto igualdade de conhecimentos mas igualdade de posições, no sentido em que cada um está envolvido numa relação cujo resultado, em termos de transmissão de conhecimentos, depende da qualidade do diálogo.
Neste sentido, Freire distingue-se de uma das obras fétiche dos pedagogos de vanguarda, Le Maître ignorant de Jacques Rancière. Para este filósofo, existe uma equivalência estrita de conhecimentos entre quem ensina e quem aprende. Rancière baseia a sua concepção da educação nas teorias de Joseph Jacotot, um professor do século XIX, que conseguiu ensinar francês a alunos cuja língua não compreendia, guiando-os simplesmente através de uma edição bilingue. Desta experiência, Jacotot derivou para um "método de ensino universal" baseado na ideia de que o aluno pode passar sem o professor. A partir deste sistema, Rancière deduziu que existe uma equivalência estrita entre o aluno e o professor: se este último aceitar abolir o domínio que lhe é conferido pela sua "autoridade", o seu magistério, facilitará a aprendizagem; pelo contrário, qualquer explicação é uma tentativa de dominar. A horizontalidade pedagógica, a ausência de distinção entre os que sabem e os que não sabem, é uma condição prévia para a aprendizagem e a emancipação. Neste modelo, o único papel do professor é o de consciencializar os alunos de que são capazes de aprender sem ele. Ensinar não é transmitir conhecimentos, mas utilizar a própria inteligência do professor para esclarecer o aluno. Enquanto a pedagogia tradicional revela a incapacidade dos alunos de passar sem o professor, a pedagogia antiautoritária promovida por Rancière "põe em prática a capacidade que o aluno já possui" [3]. Em suma, o professor que pretende compensar a ignorância dos seus alunos legitima o ciclo perpétuo de desigualdade que justifica a sua condição de existência como professor.
Para uma boa parte da esquerda radical, Le Maître ignorant é a bíblia da pedagogia emancipatória. Sensibiliza para a relação de dominação inerente a qualquer relação educativa e recorda-nos, com razão, a igualdade da inteligência e que "todos e todas são capazes de..."[4]. No entanto, apesar de Jacotot ter testado o seu "método de ensino universal", ele foi essencialmente experimentado num contexto universitário ultra-elitista e burguês, e foi desde o início objecto de críticas e controvérsias [5]. A sua eficácia, ou mesmo a sua transposição para um contexto de ensino de massas, da escola primária ao liceu, não é plausível, tendo em conta o que sabemos sobre as teorias da aprendizagem e o seu carácter socialmente diferenciado. Menos etérea e mais contemporânea, a pedagogia de Freire, um profissional que trabalhava com as classes populares, parece mais transponível para a resolução das relações de dominação num contexto pedagógico, precisamente porque insiste na "praxis" (acção-reflexão). Além disso, a abordagem de Freire parece permitir ultrapassar o antagonismo entre Bourdieu e Rancière [6].
Se compreendemos as críticas muitas vezes feitas a Bourdieu quanto ao peso do determinismo e do fatalismo que decorre das suas análises, não podemos acusá-lo de se ter limitado a descrever os mecanismos de dominação sem procurar remediá-los. A sua "pedagogia racional" deve ser acrescentada à lista das propostas emancipatórias [7]. Entre elas, a preocupação de reduzir a distância entre o professor e os alunos, mas também entre os alunos: em primeiro lugar, a distância social, uma vez que se pede ao professor que elimine as noções implícitas inerentes à cultura escolar”; e, em segundo lugar, a distância intelectual, uma vez que se trata de colmatar as lacunas de conhecimento entre os dois parceiros da relação educativa. O GRDS (Groupe de Recherche sur la Démocratisation Scolaire) e sociólogos da educação, como Stéphane Bonnéry e Sandrine Garcia, trabalham estas propostas em termos de "pedagogia da explicitação"[8], que deve também ser associada aos trabalhos sobre o "currículo oculto" iniciados por sociólogos como Basil Bernstein [9]. Para estes autores pioneiros sobre a relação entre as práticas linguísticas nos meios populares e a reprodução das desigualdades na escola, os métodos de ensino explícitos deveriam ser promovidos em oposição aos que eles descreviam como "invisíveis".
À sua maneira, Freinet conciliava todas estas posições quando escrevia, em maio de 1933, no seu editorial para L'Éducateur prolétarien: "Não formamos a criança: fornecemos-lhe o máximo de elementos, o máximo de instrumentos, o máximo de possibilidades para que, partindo do que ela é, no seu meio, possa atingir a realização individual e social de que é capaz. [...] O dever dos educadores não é agradar aos poderosos do momento; a nossa tarefa é outra – temo-lo afirmado sempre: é formar cidadãos conscientes. Pois bem! Levamos simplesmente o nosso papel a sério!” Não é necessário multiplicar os exemplos até ao infinito para perceber até que ponto todas estas ideias emancipatórias merecem ser trabalhadas, experimentadas e integradas na formação de professores. Porque todas elas têm um potencial emancipador, desde que se dirijam às crianças que mais precisam delas, e desde que se concentrem em quebrar todas as formas de dominação, o que é uma condição prévia para a construção de uma verdadeira igualdade e de uma escola comum. Em vez disso, estas pedagogias permanecem confinadas ao interior da investigação universitária e ao mundo militante, sob o olhar benevolente dos destruidores de escolas públicas que ocupam os ministérios do governo Macron. É, pois, urgente trabalhar no sentido de as popularizar e fazer com que sejam apropriadas por outras correias de transmissão — enquanto esperamos por melhores dias.
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[1] Ler o prefácio d’Irène Pereira à Paulo Freire, La Pédagogie des opprimés, Agone, 2021.
[2] Ler Laurence De Cock et Irène Pereira (dir.), Les Pédagogies critiques, op. cit.
[3] Jacques Rancière, “Sur le maître ignorant “, Multitudes.net.
[4] Infelizmente, o slogan “Todos podem” também foi cooptado por neoliberais e neurobeatos. Stanislas Dehaene, autor em 2007 da popular obra Les Neurones de la lecture é a figura de proa desta neurobeatitude. (...): "A longo prazo, o seu sonho seria unificar as ciências sob a bandeira de um cognitivismo capaz de produzir nada mais nada menos do que uma teoria global do cérebro, mas também dos diferentes aspectos da actividade humana – direito, economia, política, etc. – com base na hipótese de que as leis que actuam nos processos cerebrais se encontrariam, em particular, nas realizações sociais". Não poderia haver expressão mais clara da vontade de contornar o factor social na luta contra as desigualdades educativas. Sob a capa da filantropia, o grande capital, ajudado por políticos e cientistas sem escrúpulos, tenta influenciar reformas educativas baseadas no ideal empresarial. Esta visão individualista, dificilmente compatível com a escola pública, enfrenta uma grande oposição, pelo menos por parte dos professores [Laurence de Cock, À l’école du scientisme et de la neurobéatitude – um dos capítulos do livro que que faz parte este texto: École publique et émancipation sociale].4. Eva Codognet et Guillaume Tremblay, «Joseph Jacotot, pédagogue radical, 1770-1840», Democratisation-scolaire.fr, 3 février 2020. 4. Eva Codognet et Guillaume Tremblay, «Joseph Jacotot, pédagogue radical, 1770-1840», Democratisation-scolaire.fr, 3 février 2020.
[5] Eva Codognet et Guillaume Tremblay, «Joseph Jacotot, pédagogue radical, 1770-1840», Democratisation-scolaire.fr, 3 février 2020
[6] Charlotte Nordmann, Bourdieu/Rancière. La politique entre sociologie et philosophie, Amsterdam, 2006. 7 Pierre Bourdieu et Jean-Claude Passeron, Les Héritiers…, op. cit., p. 114.
[8] Stéphane Bonnéry (dir.), Supports pédagogiques et inégalités scolaires, La Dispute, 2015 ; Sandrine Garcia et Anne-Claudine Oller, Réapprendre à lire. De la querelle des méthodes à l’action pédagogique, Seuil, 2015.
[9] Basil Bernstein, Langage et classes sociales. Codes socio-linguistiques et contrôle social, Minuit, 1975.
sexta-feira, 1 de março de 2024
Pedagogia: em busca de um tempo presente de alegria de viver
Práticas
Sabemos bem que a obra de Proust não relata o percurso de quem procura o que perdeu, mas que se apresenta como a criação literária de um mundo sensível. Da mesma forma, a pedagogia não trata o tempo como algo que deve ser racionalizado para não ser desperdiçado. Molda um tempo de subversão das instituições escolares. Abre a possibilidade de um outro mundo, um tempo presente de alegria de viver, um tempo de poder supremo sobre o trabalho.
O tempo perdido é o de um presente sem desejo, LER MAIS >>>
quarta-feira, 16 de agosto de 2023
Da relação Currículo/Pedagogia
O processo pedagógico tem de realizar, no ponto de chegada, o que no ponto de partida não está dado – diz Dermeval Saviani [1] –. Referindo-se, por exemplo, à questão da igualdade. A cultura de que as crianças são portadoras à entrada da escola é da maior importância do ponto de vista escolar, enquanto ponto de partida. Não é, porém, esta cultura que vai determinar o ponto de chegada do trabalho pedagógico.
Por isso – defende Michael F. Young [2] – deve distinguir-se currículo e pedagogia, uma vez que se relacionam de modo diferente com o conhecimento escolar e com o conhecimento do quotidiano que os alunos levam para a escola. O currículo deve excluir o conhecimento quotidiano dos estudantes, ao passo que esse conhecimento é um recurso para o trabalho pedagógico dos professores. Os estudantes não vão para a escola para aprender o que já sabem.
Do conhecimento do quotidiano [como ponto de partida], ao conhecimento escolar [como ponto de chegada], está a ideia de viagem defendida por António Nóvoa [3]: Só nos educamos se sairmos do nosso lugar. Educar não é fechar as crianças na sua cultura; é permitir que as crianças façam uma viagem, conheçam o mundo todo. Educar é libertar. E libertar é fazer uma viagem.
Daniel Lousada
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[2] O futuro da educação na sociedade do conhecimento, in Revista Brasileira, V.16, nº 48 Set-dez: p. 609-623.
[3] A importância do território na educação, in Educação & Participação, Youtube, 2017.
segunda-feira, 31 de outubro de 2022
Pedagogo é aquele que faz sair de casa
O conceito de pedagogo é formado por duas palavras gregas: pais [criança] e ago, que significa conduzir [con-ducere] ou colocar em movimento. Portanto, o pedagogo acompanha a criança, conduz a criança, coloca-a em movimento [é por isso que em francês se diz que o professor dá um “curso” (com significado de aula), e não profere um “discurso”, pois o “dis” é um elemento privativo que indica aqui o cessar do movimento do “curso”, ao passo que o “curso” aponta a suspensão do discurso, o colocar em movimento]. E isso deve ser entendido primeiramente como um deslocamento – e, portanto, como o acompanhar em um caminho, uma via, e a mais importante era a via em direcção à escola. Tratava-se, tanto para o pedagogo quanto para a criança, de deixar a casa (oikos) para ir para os locais de exercício (…) e de estudo. (…) Partindo dessa imagem, poder-se-ia dizer que o pedagogo faz sair de casa, mas de um modo que adoça a saída e, portanto, a exposição para a criança. (…)
É por essa razão que o pedagogo está crucialmente ligado a uma viagem para fora, é a via do professor que compartilha a via da criança. E essa viagem, segundo Michel Serres, consiste em deixar o lugar do nascimento [do latin nasci, que quer dizer “nascer”, e que está ligado à noção de natureza], isto é, deixar o ventre da mãe, mas também a sombra projectada pela casa do pai e pela paisagem da criança. (…) E Serres acrescenta que durante essa passagem muitas coisas mudam. O escravo se transforma de algum modo em professor, e a via transforma-se em escola (…).
domingo, 23 de outubro de 2022
Educação escolar: Entre a civilização e a barbárie
Situamos Francisco Ferrer no seu tempo e recordamos que, nesse tempo, fazia-se ainda a distinção entre educação e instrução. Imaginamos então Ferrer como alguém à frente do seu tempo, a recusar o acto de instruir fora do acto maior de educar. Porque a escola que tem a ilusão de que apenas instrui e deixa a responsabilidade de educar nas mãos da “vida privada”, arrisca-se, sem disso se dar conta, a educar para a barbárie. E no entanto, escreve-se por aí, com tanta insistência, em tantos “sítios” dedicados à educação e ensino, que «a família deve educar para que a escola possa ensinar!». Talvez que esta insistência não seja mais que um desabafo de quem não vê reconhecido o seu trabalho e reivindica o apoio que não tem! Talvez! Mas mesmo assim não conseguimos evitar a provocação, numa pergunta: E se a família não educa, a escola desiste e não ensina?
A escola educa e ao educar instrui. A escola instrui e ao instruir educa. Mas para que possa educar ao instruir, precisa conhecer o sentido educativo da instrução que oferece. E aqui sobressai a importância de uma abordagem educativa por competências[2].
Podemos, por exemplo, ensinar história, passando apenas às crianças e jovens uma colecção de factos. Ao ensinar desta forma, conseguimos, talvez, pessoas instruídas! Mas só educamos se, no decurso do processo, as ajudarmos a ser melhores pessoas. Educamos, então, não em função de um futuro que não controlamos, depois de passado o tempo de vida na escola [porque não há como preparar alguém para vida que terá num futuro a 20 anos de distância], mas para o dia-a-dia vivido na sala de aula, na forma como convocamos a história [e outros saberes], na procura da compreensão do caminho que temos caminhado e dos caminhos que temos para caminhar. A ideia de uma “educação para a vida” não pode deixar de estar presente, obviamente. Mas se não conseguirmos, pela nossa acção, que as crianças e jovens que nos são confiados sejam boas pessoas hoje, não sei se o conseguirão ser no futuro! Daqui decorre «a proposta de que os conteúdos de ensino deveriam ser definidos em relação a práticas sociais cruciais para a vida dos cidadãos, mais do que num retomar de conhecimentos pré-definidos»[3].
Valores e atitudes não são conteúdos de um programa que se passem “de cátedra”, através de formas tradicionais de ensino: são competências sociais que decorrem dos modelos de organização educativa em que se inscrevem. Mas a “gramática da escola” [aquela da tradição, que separa a educação da instrução] não se cansa de nos empurrar para o trivial, o “palpável” [a colecção de factos referidos atrás] que, pela sua “clareza”, nos dispensa de pensar. Então, torna-se necessário um olhar moderno sobre as competências sociais, para que, ao procurar integrá-las no currículo escolar, estas possam ser aprendidas e mantidas por toda a vida e não, como tem acontecido até hoje, revividas apenas em discursos, num espaço de tempo curto, ao serviço exclusivo dos fetiches daqueles que não entendem muito, nem de competências, nem da sua avaliação.
Do conjunto de saberes que a escola oferece, Philippe Perrenoud fala dos saberes como recursos [recursos “internos”, nas suas palavras]: os saberes que, uma vez guardados, nos ajudam a viver; aqueles saberes «que o indivíduo tem dentro de si, que, de uma certa maneira, estão registados na memória, incluindo a “memória do corpo”»[4]. Saberes que orientam os nossos gestos, na relação que temos com o mundo, diríamos de um modo automático ou quase, que não precisam de grandes reflexões ou de serem reflectidos de todo, porque já foram reflectidos por nós, ou por interposta pessoa, no decurso do processo que os incorporou em nós. No entanto, sabemos, com Le Boterf, que «a competência não é um estado, e sim um processo»[5], e que a desactualização do saber que a sustenta faz parte, inevitavelmente, da sua natureza. Diz-se, então, a propósito, que as competências não são nem objectivos nem transversais: objectivos foram os conhecimentos adquiridos, desejavelmente transversais, que as sustentam.
[1] Ferrer Y Guàrdia. Escuela Moderna: páginas para la história, Barcelona, Publicaciones de la Escuela Moderna, 1912: p. 22.
[3] Olivier Rey in Notas críticas ao livro de Philippe Perrenoud “A escola deve preparar para a vida” [LER MAIS>>>].
[4] Philippe Perrenoud. “Desenvolver competências ou ensinar Saberes? A escola que prepara para a vida”. Porto Alegre, Penso Editora Lda, 2013: p. 46.
[5] Le Boterf, G. De la compétence: essai sur un attracteur étrange. Paris, Les Éditions d’organisation, 1994: p. 17.
[6] Por exemplo, revisitar e desconstruir saberes que induzem certos tipos de comportamento, alguns saídos de uma certa cultura tradicional popular: “Olho por olho, dente por dente”, “Só quem é duro se dá ao respeito”, …
quarta-feira, 20 de julho de 2022
São os discursos dos Teórico-Práticos da Acção Educativa, que marcam a História da Pedagogia
Philippe Meirieu, in "Dictionaire inattendu de pédagogie", ESF, Paris, 2021: pp. 16-22
Versão portuguesa de Daniel Lousada
DISPONÍVEL TAMBÉM EM PDF >>>
O que é um pedagogo?
À pergunta "O que é a pedagogia?", Jean Houssaye responde definindo "o pedagogo" como "um pratico-teórico da acção educativa. Ele procura combinar teoria e prática com base na sua própria acção, para obter uma conjunção perfeita de uma e outra, numa tarefa que é ao mesmo tempo indispensável e impossível na sua totalidade (caso contrário, seria a negação da pedagogia). Existe, de facto, um fosso irredutível entre a teoria e a prática: a prática escapa sempre, em certa medida, à teoria (não pode ser reduzida aos entendimentos teóricos que temos dela), e a teoria também excede sempre, em certa medida, a prática (é sempre possível produzir outros discursos teóricos sobre esta ou aquela acção). É nesta 'lacuna' (que tanto separa como une) que a pedagogia é 'feita'".
São os discursos, assim produzidos, pelos prático-teóricos da acção educativa, que marcam a história da pedagogia, tais como, entre outros: as Memórias do Doutor Itard, que lutou meses a fio para tentar educar Victor de l'Aveyron, quando todos os estudiosos da época concordaram que ele era um "idiota nato"; a Carta de Stans, na qual Pestalozzi, um "cidadão honorário da República Francesa", conta como conseguiu educar as crianças miseráveis e agressivas de uma aldeia devastada pelo exército do Directório. O Poema pedagógico, no qual Makarenko conta por que razão, na colónia de Gorki, que fundou pouco depois da revolução bolchevique, teve de recusar aos seus educadores, o acesso aos arquivos das crianças aí internadas, para que não as "prendessem no seu passado"; Como amar uma criança, de Janusz Korczak, autor da primeira "Declaração dos Direitos da Criança", que explica como, nos seus orfanatos, introduziu os contratos que permitiram a emergência da liberdade; A criança maravilhada, onde Germaine Tortel descreve os alunos do jardim-de-infância a aceder, colectivamente, a uma expressão artística cada vez mais exigente; A educação pelo trabalho, onde Célestin Freinet "volta à escola dos sábios da sua aldeia", para apresentar uma educação "que parece ser a solução futura para os problemas dramaticamente urgentes da preparação das jovens gerações"; e ainda, A criança, onde Maria Montessori combina conhecimentos médicos e biológicos, reflexões filosóficas e experiências pedagógicas, para abordar, em pequenos passos, as questões vivas da educação infantil.
O que caracteriza o empreendimento pedagógico?
Os textos mais emblemáticos, mais representativos, deste estranho "género literário", misturam testemunhos e profissões de fé, referências científicas e fugas poéticas, conhecimentos filosóficos e prescrições técnicas. São obras de um mundo longe dos tratados académicos reconhecidos pelo conhecimento universitário, mas que, no entanto, deixaram vestígios duradouros nas instituições e práticas educativas e, ainda hoje, podem ser fonte de inspiração para os seus leitores. De facto, o leitor é directamente confrontado com esta "fábrica" de pedagogia que Jean Houssaye evoca. Descobre pessoas que, como ele, têm de lidar com crianças que são frequentemente indisciplinadas, mas que devem acompanhar para que compreendam o mundo e contribuam para a sua renovação. Ele vê estas mulheres e homens, como ele, confrontarem-se com contradições, a hesitarem entre uma atitude atenta de esperar, para ver, e uma impaciência voluntarista, navegam à vista a fim de evitar tanto a resignação como a manipulação, e tentam, ao mesmo tempo, indicar a direcção a seguir enquanto treinam para a autonomia.
É por isso que nenhum tratado, por muito bem documentado que esteja, pode dar conta desta experiência educativa: ela só pode ser partilhada. E deve ser partilhada. Para compreender o que nos está a acontecer. Para que não pensemos que somos os primeiros a encontrar-nos um dia num beco sem saída. Para que não passemos as nossas vidas a sentir-nos culpados. E não acusar todo o mundo de nos terem lançado em dificuldades insuperáveis... Devemos caminhar com aqueles que, apanhados neste dilema, não ficam a excomungar os seus adversários, usando e abusando das caricaturas habituais: "tirano" ou "laxista", "autoritário" ou "demissionário", "conservador de mente estreita" ou "pedagogista inveterado"! Precisamos de tentar compreender como e porquê Montessori, Freinet e tantos outros não se podem enquadrar nestas categorias, como e porquê conseguiram escapar à crispação neurótica sobre um dos dois pólos da tensão constitutiva do empreendimento educativo, sem alternar, numa oscilação psicótica, entre um e outro. Precisamos de sentir a importância desta questão e de olhar de perto para as diferentes doutrinas pedagógicas que podermos agarrar.
O que é uma doutrina pedagógica?
Porque - como terás compreendido - a pedagogia não é uma ciência. Quanto mais a investigação nas ciências da educação deva ser científica, tanto mais as práticas pedagógicas não podem, nem devem sê-lo. As "práticas educativas científicas" garantiriam, obviamente, a sua eficácia, mas à custa da inscrição indivíduos a quem seria então negado o seu estatuto de sujeitos. Passaríamos, então, de um processo educativo para um processo de fabrico de que resultaria, a longo prazo, a concretização das piores previsões da ficção científica. Digamos, então, que a pedagogia é uma "teoria prática", como Émile Durkheim a definiu, ou, melhor ainda, uma "arte de fazer", segundo a bela expressão de Michel de Certeau.
Se olharmos agora, mais de perto, o discurso pedagógico, descobrimos que esta "arte de fazer" articula três pólos de uma forma original: um pólo das finalidades - que podem ser teológicas, filosóficas ou políticas; um pólo de conhecimentos - que diz respeito à aprendizagem e ao desenvolvimento da criança, do seu ambiente sociológico ou das suas estruturas cognitivas; e finalmente, um pólo de práticas constituído por um conjunto de propostas em termos de métodos e instrumentos. O pedagogo actua sempre de acordo com um projecto, mobiliza conhecimentos e utiliza ferramentas. E, qualquer que seja o 'ponto de entrada' escolhido, a sua acção só é possível se conseguir manter estas três dimensões juntas, lucidamente, da melhor forma possível.
Além disso, estas dimensões estão sempre presentes em todos os discursos sobre educação, mesmo que algumas pessoas, por vezes, finjam esquecê-las: É o caso, por exemplo, dos defensores da "escola eficaz" ou da “política baseada na evidência”, que desqualificam a reflexão filosófica e política sobre a educação, considerando-a "ideológica", acreditando que estão assim a livrar-se do pólo das finalidades para basear as práticas educativas em “dados comprovados”. Mas esta desqualificação é em si mesma ideológica, e o cientismo é de facto, aqui, uma opção amarrada a finalidades de uma escola que pretende servir o sucesso individual quantificável, reduzido ao domínio de competências estandardizadas. Dificilmente, também, podemos passar sem conhecimentos, porque se a filosofia não prestar atenção ao trabalho sobre a criança e as condições da sua educação, só pode desenvolver prescrições gerais, ou mesmo evoluir para um pensamento mágico, dando a entender que a repetição obstinada de objectivos é suficiente para garantir a sua realização. Finalmente, a pedagogia também não pode prescindir de propostas concretas, caso contrário corre o risco de cair num discurso puramente "intencional" e de deixar os educadores completamente desamparados face às dificuldades que encontram.
Devemos, portanto, precaver-nos contra as três derivas que ameaçam a pedagogia: a deriva cientifica, que pretende deduzir práticas a partir de conhecimentos fisiológicos, psicológicos ou sociológicos e se recusa a perguntar: "Que crianças queremos formar, transmitindo que cultura e que valores, e para que sociedade?; A deriva prescritiva, que exige que os profissionais implementem certos métodos em certas instituições, ao mesmo tempo que contornam os conhecimentos fornecidos pelas ciências humanas sobre as condições da educação. E a deriva teorista, que não quer comprometer-se com a questão das práticas e recusa qualquer proposta de acção, arrastando-se numa neutralidade virginal.
Uma "doutrina pedagógica" é, por assim dizer, uma configuração particular de finalidades, conhecimentos e ferramentas, que consegue estabilizar-se ao encontrar uma possível coerência entre estes três componentes. Uma coerência que torna esta configuração aceitável, sem a tornar num sistema homogéneo, que se imporia ao excluir qualquer debate. Porque os valores que queremos promover, os factos que atestamos e os instrumentos que propomos, têm registos heterogéneos de legitimidade: os valores são legitimados pela reflexão filosófica e política, os factos pelas manifestações elaboradas pelas "ciências positivas" e os instrumentos o que torna possível a transformação da realidade. Os valores pertencem ao domínio do desejável, os factos ao da verdade científica e os métodos ao da eficácia pragmática. Que tudo isto é coerente e constitui, num dado momento, uma doutrina pedagógica, que podemos utilizar para educar os nossos filhos é, de certa forma, milagrosa...
Uma pedagogia dentro da pedagogia?
Aqui temos uma definição estabilizada do pedagogo - aquele que procura reunir a teoria e a prática da educação -, uma possível identificação do que caracteriza o empreendimento pedagógico - o trabalho sobre a tensão fundadora entre transmissão e emancipação - e uma estabilização aceitável do que constitui uma doutrina pedagógica - a articulação coerente de finalidades, conhecimentos e práticas.
Poderíamos provavelmente deixar as coisas assim. No entanto, isto seria esquecer que tudo o que acabo de afirmar aqui constitui, em si mesmo, um discurso pedagógico. E que este discurso - tão heterogéneo e composto como todos aqueles que citei - não pode de forma alguma reivindicar uma posição de superioridade. Não posso de forma alguma reivindicar qualquer 'objectividade científica' que me colocaria em posição de decidir sobre a verdadeira e falsa sub specie æternitatis [1]. Sou um pedagogo, menos prestigiado e menos realizado do que todos aqueles que estudei. Ofereço ao leitor apenas pontos de vista discutíveis, experiências a serem questionadas, perspectivas a serem discutidas. Para que o leitor, numa salutar mise en abyme [2], possa, por sua vez, construir a sua própria pedagogia.
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[1] O termo sub especie aeternitatis (latim, “sob o aspecto da eternidade”) foi consagrado por Spinoza para designar a necessidade do que é eterno (aeternitas), em contraste com a contingência de coisas e eventos temporais que têm duração.
[2] Expressão usada pela primeira vez por André Guide ao falar sobre as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si.
domingo, 12 de setembro de 2021
É necessário, urgente, fazer regressar às escolas os pedagogos e a pedagogia
António Nunes
Leio em Apple & Jungck que «a intensificação leva os professores a seguir por atalhos, a economizar esforços, a realizar apenas o essencial para cumprir a tarefa que têm entre mãos; obriga os professores a apoiar-se cada vez mais nos especialistas, a esperar que lhes digam o que fazer».* Mas dar ou vender aulas, qual vendedor dedicado a passar informação por catálogo, não chega para que alguém se pense e se diga professor.
Sustentada na pedagogia, a profissão de professor tem uma semântica própria que, construída ao longo de séculos, nos foi deixando exemplos fabulosos da parte seus melhores, na promoção dos valores, do conhecimento e das competências que lhe dão corpo.
Desligada da reflexão pedagógica, a profissão de professor cai num «processo de depreciação da experiência e das capacidades adquiridas ao longo dos anos […], a qualidade cede o lugar à quantidade. [...] Perdem-se competências colectivas à medida que se conquistam competências administrativas. Finalmente, é a estima profissional que está em jogo, quando o próprio trabalho se encontra dominado por outros actores»,* obcecados por uma educação que imaginam científica.
Reivindiquemos ser autores [não apenas actores] na profissão que escolhemos.
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* APPLE, Michael & JUNGCK, Susan. "No hay que ser maestro para enseñar esta unidad: la enseñanza, la tecnologia y el control en el aula”. Revista de Educación, 291, 1990, pp. 149-172
quinta-feira, 9 de setembro de 2021
Desaprender: divagações a propósito d'«o vício de explicar»!
Daniel Lousada
Leio Vergílio Ferreira e dou comigo a divagar sobre a expressão, “Levei quarenta anos a explicar coisas aos alunos. Ficou-me assim o vício de explicar, mesmo o inexplicável. Precisava agora de outros quarenta anos para desaprender a explicação do que expliquei”.[1] Talvez que Vergílio Ferreira, ao dizer «... quarenta anos para desaprender...», o dissesse com a consciência de quem sabe que a cultura profissional, onde nos deixamos cristalizar, sem disso nos darmos conta, é um instrumento poderosíssimo de resistência à busca de outros caminhos![2] Ou talvez o que disse não fosse mais do que o desabafo de um professor desencantado, não sei. E nas divagações em que me encontro, centro-me nas três palavras que marcam esta confissão [uma espécie de desejo?] do autor de “Aparição”: vício, explicar e desaprender.
Desaprender é palavra que traz a dimensão psicanalítica com que a pedagogia nos convida a encarar o nosso lugar na profissão.[3] Desaprender é desfazer o que aprendemos, não é esquecer: é um acto de vontade e não um acto involuntário da memória. Mesmo admitindo a palavra esquecer no conceito de desaprender, quando muito ela será um esquecer que não é esquecimento que quer.[4] Até porque não esqueço, só porque quero, o que aprendi sobre “rios”, mas querendo desaprendo de seguir rio abaixo até ao mar, questionando se é razão bastante aquela [a da corrente] que me impele a navegar, sempre, rumo à mesma foz. Digo, então, que desaprender vai mais naquele sentido de quem nos diz “esquece”, não como conselho para largar da memória o que aprendemos [bem pelo contrário], mas para activar lembranças na busca daquilo que nos bloqueia, nos amarra na corrente, indiferentes a outras escolhas que tenhamos por que optar!
Volto a Vergílio Ferreira e releio: “desaprender a explicação do que expliquei”. E interrogo-me: o que explico diariamente na aula, faço-o consciente da força da minha explicação, como método de ensino? Ou porque, ficando-me apenas «o vício de explicar, mesmo o inexplicável», já não dou conta do sentido a que me prende a “corrente” que me faz navegar? Sendo o vício sinónimo de dependência, talvez que o vício de explicar nos tenha desviado da conjugação de outros verbos, porventura daquele que lhe está mais próximo, não pelo sentido, mas pela etimologia: implicar.[5] É certo que, se o aluno não entende, é preciso explicar. Mas como fazer entender quem não está implicado?
“O essencial é saber ver / ... / Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),/ Isso exige um estudo profundo, / Uma aprendizagem de desaprender. / ... / Procuro despir-me do que aprendi, / Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, / e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, /... /”.[6]
Se quero acompanhar um aluno, vê-lo e entendê-lo no seu modo de aprender, não tenho mais do que desaprender o modo de ensinar que aprendi [naquele modo de aprender que me ensinaram],[7] e procurar aprender de novo, agora com ele, implicado com ele, para que ele possa aprender comigo também. A explicação, não fazendo agora mais parte de um vício, até pode estar presente, só que numa relação marcada por outros tons: sem deixar de partir de uma geometria vertical [aquela que caracteriza a relação professor-aluno[8]] adquire os traços de horizontalidade das relações que vêem o sujeito que aprende como ser autónomo, que se implica na sua própria formação, longe da passividade de quem apenas ouve.
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[1] In «Pensar». Lisboa, Livraria Bertrand, 1992: p.178.
[2] Cristalizados, corremos o risco de nos deixarmos ficar na rotina, contribuindo pouco para o avanço da profissão, da sua cultura, portanto.
[3] Pergunto-me, se esta não será uma importante dimensão a contemplar em qualquer programa de formação de professores.
[4] Desaprender é a acção contrária de aprender; não é bem esquecer, se bem que, com o tempo, o esquecimento possa acabar por resultar da acção de desaprender. O português do Brasil tem uma palavra que os dicionários de português europeu não contemplam: desaprendizagem – significa abrir espaço em nossas mentes para novas aprendizagens, eliminar modelos mentais que nos fecham para aprender o novo; ou então um convite a ver melhor o que aprendemos: desaprendendo reaprendemos. De certa forma, trata-se de recuar no trajecto, que o pensamento traçou.
[5] Explicar [explicare: desdobrar, desenrolar, estender] e implicar [implicare: dobrar em volta de, enrolar, envolver] derivam do verbo latino plicare, que significa dobrar.
[6] «Guardador de rebanhos» (excertos), in Alberto Caeiro. (Fernando Pessoa) Poesia. Lisboa, Assírio & Alvim, 2001: p.58 e 82.
[7] Dito assim, «não tenho mais do que...», até parece que digo que é fácil. Mas NÃO É.
[8] Se assim não for não é da relação professor-aluno que tratamos: um professor não perde o poder que tem, apenas porque decide larga-lo da mão a favor do aluno.
domingo, 13 de junho de 2021
Da Pedagogia aos pedagogos
Os conhecimentos, uma vez que se transmitem entre seres humanos, são indissociáveis da relação que permite a sua transmissão. Digamos que, num primeiro momento, podemos chamar a esta transacção pedagogia. Deste ponto de vista, a pedagogia não é, contrariamente à representação que habitualmente damos como certa, um simples veiculo, que transportaria o conhecimento de um individuo até ao outro; ela é o que une dois sujeitos a um objecto numa configuração singular, que determina largamente o uso, em si mesmo, do conhecimento. Porque um veículo pode ser mais ou menos rápido e potente, pode conter mais ou menos objectos e ser mais ou menos atractivo, mas o que é transportado é indiferente ao veículo, não mudando nem a natureza dos objectos transportados, nem a forma como se enviam ou recebem. Mas, em matéria de transmissão de conhecimentos, as modalidades da transacção mudam tudo. Todos o experimentámos já, e os alunos vivem-no diariamente.
Se a transacção assenta numa ameaça (uma sanção ou privação de afecto) o metabolismo da aprendizagem não produz conhecimentos «objectivos» novos, mas apenas um conhecimento que se inscreve numa relação de submissão, um conhecimento que coloca a criança numa relação de obediência ao outro, que só será mobilizado, com facilidade, perante uma nova ameaça. Do mesmo modo, se a transacção assenta na identificação com o outro, ou na sedução, há a forte probabilidade da mesma criança se apropriar do conhecimento, numa relação de dependência face à imagem idealizada que tem do transmissor. Supondo que o dito transmissor, por uma ou outra razão, venha a decepcioná-la, o que foi transmitido poderá ficar comprometido.
Pelo contrário, se a transacção se constrói a partir de um questionamento partilhado e uma descoberta formalizada, o conhecimento poderá ser metabolizado como objectivado: quem aprende será, ao mesmo tempo, mais sábio e mais autónomo: mais autónomo porque mais sábio e mais sábio porque mais autónomo. Com efeito, a autonomia não é uma capacidade «abstracta», independente dos conhecimentos adquiridos; constrói-se através de e com os conhecimentos, sempre que estes sejam transmitidos numa transacção emancipadora, que responda aos problemas que o professor soube partilhar, e a partir dos quais colocou recursos, explicações, obras à disposição do sujeito.
Assim, qualquer que seja a actividade de transmissão – seja familiar ou escolar, se desenvolva num clube ou num museu, diante de um computador, de um espectáculo ou de um livro – ela comporta uma dimensão propriamente pedagógica, que é preciso identificar e cujos desafios e efeitos devem ser analisados. Na sala de aula, o mais pequeno gesto tem, em si mesmo, um alcance educativo, diz algo do que se constrói enquanto relação com o saber e, num sentido mais amplo, do que se perfila como tipo de ser humano e de sociedade.
O filósofo Henri Bergson – que não podemos chamar, de ânimo leve, de «pedagogista» – explicava com prazer, a importância que atribuía à forma de corrigir testes: começava sempre pelas notas piores e tinha o cuidado de comentar cada teste, destacando os seus aspectos positivos; depois, à medida que as notas iam melhorando, começava com as críticas, até chegar às melhores dos quais destacava os erros mais graves. O aluno que falhava na sua dissertação, não ficava tão desanimado, uma vez que tinha visto reconhecido o que tinha feito bem, enquanto que aquele que tinha tido boa nota, via as suas insuficiências como algo a melhorar. Desta forma, tanto um como o outro encontravam-se em condições de progredir: o primeiro apoiado nos seus pontos fortes, o segundo desafiado a trabalhar as suas imperfeições.
Este episódio, um pouco antigo, tem o mérito de realçar que nada no acto de ensinar é independente de um projecto pedagógico explícito ou implícito. Não há transmissão pura, nem aula, em que os conhecimentos circulem numa relação ética consistente, que não antecipe o futuro nem prefigure o mundo. Ninguém pode negar, como a própria Hannah Arendt defendia, a necessidade de «transmitir o mundo». Isto implica, evidentemente, questionar conteúdos e métodos. Mas responder a perguntas como «o que ensinar?» e «como?», não nos dispensa de fazer a pergunta fundadora: que futuro construímos para os nossos filhos, através da forma como vivemos com eles o acto de transmissão, em si mesmo? Neste sentido, não seria rigoroso dizer de um professor que «ele não tem pedagogia». Há sempre uma pedagogia mesmo que pareça discutível, irresponsável, ineficaz ou que a rotulemos de tradicional, mas que é preciso olhar de perto, se queremos tentar compreender o que se joga na sala de aula.
Por conseguinte, a pedagogia está presente em toda a transmissão, mesmo coextensiva com esta última: a forma como os adultos organizam, vivem e usam as instituições educativas, para garantir o vínculo entre gerações, remete-nos sempre para escolhas as quais, evidentemente, temos todo o interesse em encarar de frente, para aprofundá-las e compreender o que está em jogo, assumi-las ou recusá-las.
«Obedecemos sempre a uma teoria, mesmo aqueles que se queixam de teorias. Quem não tem uma de qualidade, reconhecida, apoiada em estudos, segue talvez, sem o saber, uma pouco credível, que, não sendo objecto de reflexão ou crítica, não é sequer necessário concordar com ela mesma», escrevia já Henri Marion no seu Dictionnaire de pédagogie et d’instruction primaire,.. [3]
Mas se bem que haja sempre pedagogia na transmissão, é sempre de uma pedagogia que se trata. Por vezes esta pedagogia leva-nos a uma doutrina bem identificada, permitindo-nos falar de «pedagogia socrática», «pedagogia Freinet», «pedagogia Montessori» ou, mesmo, «pedagogia institucional». Outras vezes, trata-se de um conjunto de convicções e práticas mais ou menos precisas, que derivam quer de uma tradição («como a aula dialogada») quer de uma inovação da moda («como a aula invertida»), com frequência, uma e outra tão pouco analisadas e questionadas.
Pessoalmente creio que a compreensão, por parte dos actores sociais, do que «fabricam» diariamente, constitui um incentivo decisivo para avançar, ao mesmo tempo, até um maior profissionalismo e exercício da cidadania. Assim, é melhor que vejamos o que está em jogo e que, desta forma, possamos contribuir para inscrever a sua actividade no debate democrático, necessário à construção do bem comum. No entanto, não deixo de ter em conta os riscos que correm os profissionais, quando se aventuram por este caminho, porque a instituição prefere, com frequência, os executores que se colocam ao serviço da «máquina», aos que teimam em querer colocar a máquina ao serviço dos seres humanos. Desta forma proletarizamo-nos, no sentido estrito da palavra: tal como a máquina obrigava, durante a revolução industrial, a trabalhar por turnos, com o objectivo de rentabilizar o investimento, a «máquina-escola» exige, hoje em dia, que se sirva escrupulosamente os seus objectivos, utilizando sistematicamente os métodos científicos e preenchendo meticulosamente as suas tabelas de Excel.
Digamo-lo claramente: a falta de cultura pedagógica dos nossos responsáveis institucionais, a ignorância da história das doutrinas educativas, por uma boa parte dos professores, o retrocesso ou mesmo o desaparecimento total da reflexão pedagógica da formação inicial e contínua dos professores, permitiu que a «máquina-escola» imponha, no seu conjunto, procedimentos cada vez mais estandardizados, em nome da sujeição aos resultados, da lealdade institucional e da verdade científica. As classificações internacionais ditam a sua lei de ferro: a escola deve preparar os alunos para que estes estejam conforme as classificações que estes testes apontam; e os professores estão acima de tudo ao serviço deste objectivo. A evidence-based policy não se discute.
Ora, justamente, numa democracia, se há algo que é preciso fazer com a educação e a pedagogia é discuti-las. São por excelência objectos de discussão, já que determinam, e muito, o nosso futuro. São objectos políticos no sentido mais nobre do termo. No entanto, para discutir pedagogia falta ainda compreender como se constroem os seus discursos e os seus modelos. Pois bem, quando analisamos, com um pouco de rigor, a história das doutrinas pedagógicas, vemos que, de Jean-Baptiste de la Salle, inventor das classes homogéneas e do modelo simultâneo, a Carl Rogers, promotor de um ensino não directivo, assente nos princípios da psicologia de Lewin, passando por Makarenko, que depois da revolução bolchevique instituiu na colónia Gorki, um sistema de socialização assente na rotação sistemática de tarefas e funções, ou por último Claparède, fundador do Institut Jean-Jacques Rousseau de Genebra e autor em 1921 de L’École sur mesure, todos os sistemas pedagógicos articulam, sistematicamente, três elementos: por um lado, as finalidades teológicas, filosóficas ou políticas; por outro, os conhecimentos disponíveis sobre a criança e seu desenvolvimento, sobre as aprendizagens e sobre as condições de socialização; e por último, as propostas práticas, institucionais ou instrumentais.
O que complica as coisas é que estes três elementos são, ao mesmo tempo, absolutamente necessários e totalmente heterogéneos entre si. Sempre educamos para alguma coisa, apoiando-nos nos conhecimentos que permitem ter controlo sobre o real, em instituições e com técnicas capazes de dar as mãos ao seu projecto, como dizia Pestalozzi, que durante toda a sua vida procurou encarnar, com o seu método, a filosofia do seu mestre Jean-Jacques Rousseau. Não obstante, se bem que estes três elementos devam constituir uma configuração coerente, pertencem a registos distintos, que dispõem de sistemas de legitimação radicalmente diferentes: as finalidades remetem-nos para uma reflexão sobre os valores, sobre os conhecimentos e dados estabilizados pela investigação e as práticas para uma criatividade instrumental. Devemos, portanto, sobre todas as propostas pedagógicas, perguntarmo-nos, ao mesmo tempo, sobre a sua coerência interna e sobre a validade dos elementos que configuram de forma original.
De facto, existem «pedagogias» que se limitam a justapor finalidades e práticas sem estudar, aplicando os conhecimentos de que já dispomos, se as suas práticas são as adequadas para atingir as suas finalidades.
Queremos, por exemplo, formar para a solidariedade e fraternidade (finalidades importantes) através da colaboração. Para isso, recorremos ao trabalho de grupo e à elaboração de projectos colectivos, organizamos viagens de estudo, criamos uma página web, praticamos teatro e jogos colectivos, e até promovemos comunidades de crianças em autogestão. Mas estamos realmente seguros, de que estas actividades promovem uma autêntica colaboração? De facto, a psicologia ensina-nos que para que todos contribuamos para o progresso colectivo, é preciso que o grupo possua uma rede de comunicação «homogénea», que cada um tenha algo a trazer aos demais e que o trabalho colectivo não se possa realizar sem a implicação de todos; que o funcionamento do grupo tenha sido desenhado de forma a que ninguém possa assumir o poder indevidamente, e que ninguém fique afastado ou encerrado num papel secundário de autómato. A generosidade das intenções não garante, por si só, a eficácia do dispositivo; é preciso que este seja concebido e regulado, em função do que sabemos sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente, das interacções entre pares, da relação entre os objectivos de aprendizagem de cada um e a tarefa a realizar por todos. [4]
Sabemos bem, por exemplo, desta aliança entre, por um lado, um radicalismo ideológico que transforma a luta contra as desigualdades de acesso ao conhecimento, num princípio absoluto e, por outro, a busca sistemática, em todas as áreas, de todas as manifestações possíveis destas desigualdades. Em nome de uma solidariedade legítima com as classes populares, procuramos por todo o lado, graças à «sociologia crítica», o factor, por mínimo que seja, que possa aumentar ou deixar que perdure a injustiça; podemos identificá-lo na economia, na organização escolar, nos estereótipos transmitidos por programas e manuais, e, claro, nas próprias práticas pedagógicas, elas mesmas, suspeitas de falta de lucidez, neste domínio. E com razão, evidentemente. Nunca se é suficientemente lúcido, em tudo o que constitui um entrave ao primeiro dos direitos da criança: o direito à educação. Bourdieu – ou mais precisamente uma interpretação «bourdieusarde» de Bourdieu – desenvolve, com enorme eficácia, uma retórica de denúncia, assente em estatísticas implacáveis ou terríveis estudos de caso. O perigo está, então, em conjugar radicalismo com impotência: «Não mudar nada antes de tudo mudar», denunciava já nos anos 60, o discípulo de Freinet e fundador da «pedagogia institucional» Fernand Oury. Porque, instalar-se na postura de revolucionário conservador, é definitivamente bastante cómodo. Queremos uma «mudança de lógica» da sociedade e da instituição escolar. Exigimos «meios que rompam radicalmente com a política de austeridade e que permitam o desenvolvimento do serviço à altura das ambições da república». Negamo-nos a «inclinarmo-nos ante os ditames tecnocráticos de uma administração totalmente convertida às virtudes do neoliberalismo». E não temos a mínima tolerância com aqueles que procuram, todos os dias, criar alguns espaços de emancipação possível. A doutrina não tem apelo: entre a ilusão e a válvula de segurança, os militantes pedagógicos não fazem mais do que reforçar um sistema que precisa, pelo contrário, ser combatido passo a passo.
E aqui estão os profissionais esmagados entre finalidades, tão generosas como gerais, e conhecimentos científicos, tão indiscutíveis como implacáveis. Por último restam aqueles que afastando toda a reflexão sobre as finalidades fingem poder basear as práticas pedagógicas somente em dados científicos.
O cientificismo, essa velha ilusão… mesmo que acreditemos estar na vanguarda da modernidade. A crença naïf na omnipotência da ciência tem as suas origens nas fantasias mais arcaicas. No século XIII, por exemplo, Frederico II de Hohenstaufen, à frente do poderoso Sacro Império Romano Germânico, rodeou-se dos maiores sábios da época, para resolver um problema que, em sua opinião, era decisivo na educação das crianças: qual era a sua «língua natural»? Que língua falariam, de forma espontânea, se nenhum adulto lhe dirigisse a palavra, se nenhum condicionamento social interviesse no seu desenvolvimento? Retirou os recém-nascidos a várias mães e colocou-os à responsabilidade de amas, que os criaram com máscara e foram proibidas de pronunciar qualquer palavra que fosse, diante delas. Mas o príncipe não pôde averiguar qual era a «língua materna» do homem, porque os bebés, assim tratados, com total carência de afectividade e relações, morreram muito rapidamente….
Embora, evidentemente, a ninguém ocorra reproduzir semelhante experiência, o homem continua fascinado pela ideia de chegar ao conhecimento das «leis naturais da criança» [5] e de que, uma vez descoberto o seu funcionamento mental, seria possível prescrever, com certeza total, os métodos que permitiriam o seu desenvolvimento óptimo. No século XIX foi a frenologia que encarnou esse projecto, com os desvios racistas e eugénicos que já conhecemos. [6] Na década de 1920, vimos, de vez em quando, esta perspectiva no que se denominou de «psicopedagogia», apoiada principalmente nos trabalhos de Piaget, e que propõe uma visão prototípica da aprendizagem, ocasionalmente chamada «construtivismo». Piaget descreveu o desenvolvimento da inteligência, colocando em destaque procedimentos mentais regidos por um duplo processo de assimilação (o sujeito incorpora a exterioridade) e acomodação (o sujeito transforma-se, nesta relação, com o real). Segundo ele, graças a este processo, o sujeito passa de um estado ao outro e pode, progressivamente, construir conhecimentos novos. Mas o que procurava Piaget era o que denominou o «sujeito epistémico», quer dizer, o «sujeito em estado puro», na sua «estrutura mental universal». Ninguém pode censurar que o procurasse e que realizasse toda uma série de observações e experimentações, para neutralizar, precisamente, os factores contingentes, diferentes conforme os sujeitos e os contextos nos quais cresciam. No entanto era – e continua a ser – muito arriscado apoiar-se somente nos seus trabalhos, para criar práticas pedagógicas, nas quais inevitavelmente, intervêm dimensões afectivas e socias, relacionais e institucionais. Seria confundir uma metodologia científica perfeitamente legítima, que isola deliberadamente certas determinantes, com a realidade na sua complexidade; seria fazer ontologia com a epistemologia, sem ter em conta os factores que foram omissos, de forma sistemática, nem os valores aos quais não se deu direito de entrada. Por este motivo, sem dúvida, a psicopedagogia foi mais objecto de ensino para os alunos das «escolas normais» (de magistério), que não transformou, significativamente, as práticas pedagógicas. [7]
Esquecida a psicopedagogia, chega a neuropedagogia! Se acreditarmos no que nos diz esta nova disciplina será possível, graças aos conhecimento dos mecanismos cerebrais, que todas as crianças acedam à aprendizagem, até mesmo determinar o seu comportamento, em áreas tão decisivas para a construção da sua personalidade, como a atenção, a motivação, a criatividade, o sentido de responsabilidade, etc. As neurociências, na medida em que permitiriam construir uma autêntica ciência da «vida mental» [8], proporcionar-nos-iam, desta forma, os meios para estimular e estruturar a actividade neuronal, susceptível de modificar o estado mental ou afectivo da criança, tudo em função do que queiramos desenvolver nele. Sempre a mesma fantasia: passar do conhecimento dos mecanismos «naturais» à prescrição sistemática de boas ferramentas, para ensinar e aprender. Ignorar a questão das finalidades em favor de um cientificismo superficial!
Como destacava o filósofo Emmanuel Fournier, «as representações neurocientíficas insinuam-se-nos. Infiltram-se na nossa linguagem e condicionam o nosso pensamento. Desde então, na nossa forma de falar, já não procuramos o prazer, mas as hormonas que nos dão esse prazer. São os nossos lóbulos frontais que planificam os nossos actos, os nossos circuitos da emoção que dão cor às nossas vidas com alegria, etc. E deixamos que esta linguagem pense por nós, com tanta naturalidade, que nos colocamos nas suas mãos com a maior das inocências. Quem ousaria revelar-se contra a sua gramática? [9]
Eficácia é a palavra-chave para aqueles vêem na neuropedagogia uma forma de revolucionar o sistema escolar e que nos deixa antever perspectivas assustadoras. Assim, acreditando no médico e especialista em inteligência artificial Laurent Alexandre, «a era da ideologia pedagógica está a chegar ao seu fim, para dar lugar à prova estatística do «learning analytic». A aprendizagem converte-se numa autêntica ciência, apoiada na observação da estrutura do cérebro e dos seus modos de resposta. O sistema irá sair da idade das manualidades para a idade da tecnologia […]. O aparecimento de gravadores cerebrais não invasivos, baratos e capazes de medir continuamente numerosas constantes, permitirá relacionar estes dados com as nossas características cognitivas, para optimizar o ensino» [10]. Desta forma, segundo ele, poderemos aceder, rapidamente, a um conhecimento preciso das características cognitivas, afectivas e sociais de um indivíduo, a partir da análise de seu telemóvel. E esboça o seguinte: bastará distribuir, o mais depressa possível, tabletes e telemóveis entre as crianças, e a «inteligência artificial dos gigantes informáticos permitirá determinar, com grande precisão, as melhores características pedagógicas para cada aluno». Rapidamente, poderemos desenvolver o neuromarkting sistemático e vender programas de ensino e educação – mesmos de reeducação – aos pais e, desta forma, cada criança poderá «beneficiar» de um «ensino estritamente personalizado» e dispensar-se de ir à escola, porque pode trabalhar, todo o dia, diante de seu monitor ligado a um computador gigante, provavelmente nas ilhas Caimão, para poder fugir aos impostos… Bom, como Alexandre, confiemos que os GAFA [11] não fiquem com o monopólio de semelhante tecnologia. Convencido de que não é possível travar o progresso da tecnologia, o seu desejo é que a educação pública se transforme, o mais depressa possível, num «viveiro de start-ups inovadoras», para que os nossos filhos não tenham uma «educação made in Califórnia, em 2040» [12].
No seu livro La guerre des intelligences. Comment l’intelligence articielle va révolutionnar l’éducation [13], Laurent Alexandre vai, todavia, mais longe: afirma que a escola é «uma tecnologia obsoleta e prevê a sua industrialização» e «robotização». E explica: «No fim, a escola encarregar-se-á mais de gerir cérebros do que transmitir conhecimentos». É verdade que o êxito mediático de Laurent Alexandre e o seu estatuto de cronista, em vários meios de comunicação social, não fazem dele especialista em previsões, reconhecidas pela comunidade científica, mas parece representativo de uma violação de fronteira que, a verificar-se, seria, no mínimo, preocupante. De facto, em sua opinião, perante o «confronto de inteligências» hoje aberto, os estados deveriam utilizar as «biotecnologias do desenvolvimento cognitivo», mobilizar todos os recursos do neuro-aumento, para combater as desigualdades genéticas, e melhorar, sistematicamente, o coeficiente intelectual dos nossos filhos: «a escola transformar-se-á transhumanista e será considerado normal modificar os cérebros dos alunos, utilizando toda a panóplia de tecnologias possíveis» … No entanto, Laurent Alexandre teme que a hibridização de computador e cérebro nos leve até um «transhumanismo radical» - «a saída do cérebro para fora de si mesmo», a sua «automatização completa» até ao ponto de ser possível descarregá-lo» - e, para evitá-lo, sugere que se substitua o lema francês Liberdade, Igualdade e Fraternidade pelos três pilares da nossa humanidade, segundo ele: «preservar os nossos corpos de carne e osso», «salvar a nossa individualidade» e «deixar espaço para ao acaso». Pois, fiquemos então tranquilos! Ele, que acaba de explicar-nos que a nostalgia, que tenta travar o crescimento das neurotecnologias e da neuroeducação, são equiparáveis a um sindicato de ferradores que, em, 1905, tentou opor-se à introdução do automóvel, aceita traçar linhas vermelhas, para que possamos conservar a nossa dignidade! Dignidade, um conceito, ainda assim, mais antigo que o sindicato de ferradores! Talvez um sinal de uma ruptura possível com a ilusão cientificista do progresso infinito, pela ciência?
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[1] Immanuel Kant, Réflexions sur l’éducation (1776-1787), Paris, Vrin, 1993.
[2] Hannah Arendt, «La crise de l’éducation», La Crise de la cuture (1967), París, Gallimard, «Folio», 1989.
[3] Publicado sob a direcção de Ferdinand Buisson no tempo em que foi criada a Escola da República francesa. Ferdinand Buisson, Dictionnaire de pédagogie et d’instruction primaire, edição compliada por Patrick Debois e Philippe Meirieu, Paris, Robert Laffont, «Bouquins», 2017, p. 694.
[4] Dediquei os meus primeiros trabalhos científicos a esta questão, mostrando o carácter altamente ambíguo das práticas de grupo não reguladas: cf. Philippe Meirieu, Apprendre en groupe?, tomo I: Itinéraire des pédagogies de group, tomo II: Outils pour apprendre en groupe, Lyon, Chronique sociale, 1984.
[5] Les Lois naturelles de l’enfant é o título da obra de sucesso de Céline Alvarez publicada em 2016, pelas edições Les Arènes.
[6] A frenologia é uma teoria proposta pelo neurologista austríaco Franz Joseph Gall (1757-1828), sobre a localização das funções cerebrais e a correlação entre a forma do crâneo e as características das pessoas (está na origem, por exemplo, da teoria do criminoso nato). A obra principal de Gall viria a ter o título (traduzindo para português), Anatomia e fisiologia do sistema nercoso em geral e do cérebro em particular, com observações sobre a possibilidade de reconhecer várias disposições intelectuais e morais do homem e dos animais pela configuração da sua cabeça.
[7] O grupo francês de educação nova (GFEN) falaria de auto-socio-construção dos conhecimentos. Inscrito numa intenção política forte (Todos somos capazes!), apoiando-se nos trabalhos de Henry Wallon e propondo situações de aprendizagem centradas na génesis do saber, diferencia-se da psicopedagogia tradicional e propõe uma pedagogia coerente. E aqueles que, como eu trabalham, nas situações problema, tomam de empréstimos alguns elementos de Piaget e colaboradores, mas sobretudo de Vygotsky (a zona de desenvolvimento proximal) e de Bachelard (o conceito de obstáculo), esforçando-se por articulá-los à volta do conceito de projecto – proveniente da educação nova –, por inscrever-se numa finalidade de transmissão/emancipação. Ao procurar realizar uma tarefa, ao mesmo tempo difícil e acessível, o sujeito deve encontrar um objectivo-obstáculo que, graças a um conjunto de recursos, poderá superar e, de seguida, transferir à sua própria iniciativa. (Philippe Meirieu, Apender sim, mas como?, Porto Alegre Artmed 2002).
[8] Stanislas Dehaene, Vers une science de la vie mental, Paris, Collège de France/Fayard, 2014 e Le Code de la conscience, Paris, Odile Jacob, 2014.
[9] Le cerveau, gage de bonne éducation?, conferência de Emmanuel Fournier no colóquio L’Aventure des neurosciences», Angers, 2 de Junho de 2015.
[10] Laurent Alexandre, L’Éducation doit libérer ses innovateurs, L’express, 18 de Outubro de 2017, p. 22.
[11] Acrónimo de "Google Amazon Facebook Apple".
[12] Pode estar tranquilo! De acordo com o artigo de Caroline de Malet, no Le Figaro, de 10 de Abril de 2018 (Como a Inteligência Artificial está a penetrar no mundo da educação), as Start-ups francesas, aliadas, por vezes, de grandes editoras – como Hachett e – e relacionadas com grupos internacionais – como Hnewton –, trabalham com afinco, na implementação de assistentes pedagógicos, que propagam, a partir da análise do funcionamento cognitivo de cada aluno e graças à inteligência artificial, conteúdos e estratégias de aprendizagem personalizados. Segundo dizem, a tecnologia está preparada. É apenas uma questão de vontade e de investimento».
[13] Paris, Jean-Claude Lattès, 2017.