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quinta-feira, 24 de julho de 2025

Risco Político

Na personalidade de cada um de nós existe um defeito ao qual somos mais propensos, uma fraqueza própria, um traço que prejudica especialmente a harmonia das nossas relações com os outros. Para uns será a cobardia, para outros os ciúmes, para alguns a indiferença ou a falta de generosidade. Da mesma forma, escreveu Aristóteles, cada sistema político tem um risco característico que habita no seu seio e ameaça fazê-lo fracassar. De acordo com o filósofo grego, no caso da democracia, esse perigo chama-se demagogia

Demagogia é uma antiga palavra grega que significa «arrastar o povo». Para Aristóteles, esta descreve uma forma de governar na qual os argumentos são substituídos por apelos aos medos, preconceitos, amores e ódios dos cidadãos. Implica abordar os debates através da linguagem dos sentimentos e impedir, inclusive, a possibilidade de uma argumentação serena sobre a ação política. Os demagogos representam-se como salvadores em momentos de crise acentuada e, se conseguirem conquistar o povo, podem mudar o rumo do regime político para derivas mais autoritárias. Foi Aristóteles quem individualizou e explicou pela primeira vez a demagogia, definindo-a como a «forma corrupta ou deteriorada da democracia». Aristóteles achava que as fórmulas através das quais os povos se organizam são mutáveis e dinâmicas, de maneira que toda a conquista se pode alcançar, mas também é reversível, estando em permanente risco. Por isso, é saudável desconfiar de quem, na contenda política, recorre às emoções primárias para ser o primeiro.

Irene Vallejo
Alguém falou sobre nós — Ensaios sobre o mundo actual, à luz da antiguidade clássica. 
Bertrand Editora, Lisboa, 2023

sábado, 5 de julho de 2025

Da (in)disciplina — Princípio da compreensão.

Pedro D’Orey da Cunha
«Um excelente decálogo — aqui apenas o princípio nº 5 — de Pedro da Cunha — que foi Secretário de Estado da Reforma Educativa, no tempo de Roberto Carneiro, (1989), que deveria ser lido com proveito por todos os professores, diretores and so on...» (José Matias Alves, na sua página do Facebook).

5. O princípio da Compreensão

Diante de um conflito, um problema disciplinar, uma perturbação, é essencial que o professor se pergunte a si mesmo, antes de mais, de quem é o problema, ou melhor, quem sofre com o problema. A estratégia adoptada depende inteiramente da resposta dada. Assim, se quem está a sofrer é a criança, esta precisa de compreensão, não de ralhete. Mas se quem sofre é o professor, ou outros alunos, então a criança não precisa de compreensão, necessita de confrontação.

Vejamos a diferença. O João trabalha animado na sua carteira durante a aula de Matemática. De repente, frustrado e raivoso, fecha o livro com barulho, põe os braços na carteira e esconde a cabeça entre os braços. A professora tem duas alternativas: ou vai ter com ele e ralha «porque distraiu os outros», ou põe-lhe a mão no ombro e diz-lhe baixinho – «este problema é difícil não é?» .Creio que não hesitaríamos em escolher a segunda alternativa. É óbvio que quem está a sofrer é o aluno, que ele simplesmente exprimiu a sua frustração, e que o que é necessário é a compreensão do professor. 

Podia afirmar sem hesitação que mais de metade dos problemas disciplinares são deste tipo. O que os alunos necessitam, não é da descompostura, nem do conselho, nem que o professor se lhes substitua. O que os alunos necessitam é da escuta do educador. Sentindo-se compreendidos e aceites, os alunos abrem-se então, enchem-se de coragem e retomam o caminho. Mas repare-se bem: compreensão não significa substituição nem desistência. O professor não se substitui o aluno, não o dirige, não lhe diz que desista, aceita-o na sua dificuldade; e é esta aceitação que dá ânimo ao aluno para autonomamente prosseguir o trabalho.
Este princípio é baseado nas teorias do psicólogo Carl Rogers, que mostrou bem o efeito terapêutico da compreensão e da escuta activa, lhe definiu bem as características e estudou os seus efeitos e aplicações. Apropriadamente, caracterizou a sua terapia como não directiva, e o seu efeito principal como promotor da autonomia do sujeito.

Infelizmente, muitos educadores aplicaram a teoria indiscriminadamente a todos os problemas, não verificando que Carl Rogers, como psicoterapeuta, tinha somente em vista os seus clientes, os quais por definição se dirigiam a ele porque sofriam ou estavam ansiosos. Nos casos em que o aluno não sofre, mas até goza com fazer sofrer os outros, quando ofende o professor, quando segue alegremente os seus impulsos, então não precisa de compreensão, precisa de confrontação, decidida, exigente, com autoridade.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Em vez de educar para a cidadania, porque não educar para a felicidade?

Até onde a leitura de um poema me levou — 2

De que é feito o percurso que nos leva a uma vida feliz? De que é feito o percurso que nos leva ao exercício de uma cidadania plena? E que relação entre os dois percursos?

[...]

A relação entre o conceito de felicidade e o conceito de cidadania é evidente. Não é possível um sem o outro. Confundem-se no mesmo percurso. No entanto, dou a primazia à felicidade. Porquê? Porque a educação para a cidadania não serve de nada, sem o horizonte de uma vida feliz. LER MAIS >>>

terça-feira, 29 de abril de 2025

Preconceito de género

Até onde a leitura de um poema me levou — 1

É sabido que a literatura pode ser porta de entrada à exploração dos mais diversos temas. É possível encontrar, algures por aí, o texto que nos serve para início de conversa sobre um tema que elegemos. Por exemplo, com o poema "Não peças", de Lalla Romano (que motivou este texto), é possível abordar o estereótipo de género, que arruma as pessoas em gavetas, e que, em situações limite, pode levar a toda a sorte de preconceitos relacionados com questões de género.

Leio, então, o poema e fixo-me no último verso, ... LER MAIS >>>

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Porque é preciso romper com a ideologia do bem-estar na educação *


Uma educação emancipatória não pode fazer parte do paradigma do «desenvolvimento pessoal». Ela remete para outro paradigma, o da «superação colectiva». Este é um paradigma que surge na Carta de Stans de Pestalozzi, é desenvolvido por Korczak e Makarenko, cresce a partir do trabalho de Célestin e Élise Freinet e é trabalhado no âmbito da Pedagogia Institucional. Podem ser encontrados vestígios no movimento da Educação Nova, mas este último permanece profundamente ambivalente em relação a ela: a metáfora hortícola (Hameline, 1986) é ainda frequentemente dominante e actua como um importante obstáculo epistemológico no acesso a práticas educativas emancipatórias. Quanto ao discurso pedagógico contemporâneo, quer seja «mainstream» ou pretenda ser científico, nem sempre escapa ao naturalismo do já existente, e é, sem dúvida, um dos maiores desafios, hoje, das ciências da educação, de clarificar a importância de uma ruptura epistemológica com o paradigma do «desenvolvimento pessoal» e a ideologia do bem-estar que o acompanha.» CONTINUAR A LEITURA >>>

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quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Pedagogia e Emancipação

Disponível também em PDF >>>

Comecemos por um dos principais pensadores da edu­cação emancipadora, Paulo Freire. Trabalhador social brasileiro, Freire começou por reflectir sobre a educação antes de se doutorar em filosofia, em 1959, sobre a re­lação entre educação e liberdade. Em seguida, volta-se para a educação popular, concentrando-se na alfabeti­zação dos camponeses. Em 1964, o governo brasileiro confiou-lhe a responsabilidade por um programa nacio­nal de educação. Essa experiência foi interrompida pela ditadura militar, que o levou ao exílio durante quinze anos. Foi neste período que produziu a maior parte das suas reflexões pedagógicas, que viriam a ter um enorme impacto, especialmente durante os anos de transição democrática no Brasil, onde se tornou praticamente o pedagogo oficial [1]. Embora tenha trabalhado apenas no contexto da educação popular, é, no entanto, um dos autores mais representativos das "pedagogias críticas", ou seja, aquelas que promovem a transformação social e estão ligadas à luta contra a opressão [2].

Para Freire, qualquer trabalho sobre a opressão começa com a busca dos seus fundamentos e de como ela funci­ona como sistema. Descreve isto como "consciencializa­ção", que não se limita à tomada de consciência da sua condição de oprimido (para isso, ninguém precisa de qualquer tipo de pedagogia), mas na qual os mecanis­mos de opressão são explicitados. Neste sentido, esta nova consciência dirige-se tanto aos dominantes como aos dominados. Mas, ao contrário da versão neoliberal da emancipação, este trabalho não tem como objectivo permitir que os oprimidos se tornem dominantes. Pelo contrário, o objectivo da tomada de consciência é abolir todas as formas de dominação — a única condição para uma verdadeira emancipação social. É por isso que as pedagogias críticas influenciadas pelo modelo de Freire são feministas, anti-racistas e anti-capitalistas. São peda­gogias libertadoras. Neste sentido, ajuda a libertar-se de todas as formas de dominação social.

Como nos lembra o prefácio de Irène Pereira, o "mé­todo" de Freire para alfabetizar os camponeses é muitas vezes confundido com a sua pedagogia, que vai muito mais longe: é uma forma de pensar a emancipação atra­vés da educação. Ao colocar a relação entre o professor e o aluno — que ele descreve como "diálogo" — no cen­tro da sua pedagogia, Freire opõe-se à pedagogia ban­cária. Vista como o produto de uma situação dialógica, a aprendizagem, para Freire, implica igualdade na relação ensinante-ensinado, não tanto igualdade de conheci­mentos mas igualdade de posições, no sentido em que cada um está envolvido numa relação cujo resultado, em termos de transmissão de conhecimentos, depende da qualidade do diálogo.

Neste sentido, Freire distingue-se de uma das obras fétiche dos pedagogos de vanguarda, Le Maître ignorant de Jac­ques Rancière. Para este filósofo, existe uma equi­valên­cia estrita de conhecimentos entre quem ensina e quem aprende. Rancière baseia a sua concepção da educação nas teorias de Joseph Jacotot, um professor do século XIX, que conseguiu ensinar francês a alunos cuja língua não compreendia, guiando-os simplesmente através de uma edição bilingue. Desta experiência, Jaco­tot derivou para um "método de ensino universal" base­ado na ideia de que o aluno pode passar sem o profes­sor. A partir deste sistema, Rancière deduziu que existe uma equivalência estrita entre o aluno e o professor: se este último aceitar abolir o domínio que lhe é conferido pela sua "autori­dade", o seu magistério, facilitará a aprendizagem; pelo contrário, qualquer explicação é uma tentativa de domi­nar. A horizontalidade pedagó­gica, a ausência de distin­ção entre os que sabem e os que não sabem, é uma con­dição prévia para a aprendi­zagem e a emancipação. Neste modelo, o único papel do professor é o de consci­encializar os alunos de que são capazes de aprender sem ele. Ensinar não é transmitir conhecimentos, mas utilizar a própria inteligência do professor para esclarecer o aluno. Enquanto a pedago­gia tradicional revela a inca­pacidade dos alunos de pas­sar sem o professor, a peda­gogia antiautoritária promo­vida por Rancière "põe em prática a capacidade que o aluno já possui" [3]. Em suma, o professor que pretende compensar a ignorância dos seus alunos legitima o ciclo perpétuo de desigualdade que justifica a sua condição de existência como profes­sor.

Para uma boa parte da esquerda radical, Le Maître igno­rant é a bíblia da pedagogia emancipatória. Sensibiliza para a re­lação de dominação inerente a qualquer rela­ção educa­tiva e recorda-nos, com razão, a igualdade da inteligên­cia e que "todos e todas são capazes de..."[4]. No entanto, apesar de Jacotot ter testado o seu "método de ensino univer­sal", ele foi es­sencialmente experimen­tado num contexto universitá­rio ultra-elitista e burguês, e foi desde o início objecto de críticas e controvérsias [5]. A sua eficácia, ou mesmo a sua transposição para um contexto de ensino de massas, da escola primária ao li­ceu, não é plausível, tendo em conta o que sabemos so­bre as teorias da aprendizagem e o seu carácter social­mente diferenciado. Menos eté­rea e mais contemporâ­nea, a pedagogia de Freire, um profissional que traba­lhava com as classes populares, parece mais transponí­vel para a resolução das relações de dominação num contexto pedagógico, precisamente porque insiste na "praxis" (acção-reflexão). Além disso, a abordagem de Freire parece permitir ultrapassar o anta­gonismo entre Bourdieu e Rancière [6].

Se compreendemos as críticas muitas vezes feitas a Bourdieu quanto ao peso do determinismo e do fata­lismo que decorre das suas análises, não podemos acusá-lo de se ter limitado a descrever os mecanismos de dominação sem procurar remediá-los. A sua "peda­gogia racional" deve ser acrescentada à lista das propos­tas emancipatórias [7]. Entre elas, a preocupação de re­du­zir a distância entre o professor e os alunos, mas tam­bém entre os alunos: em primeiro lugar, a distância so­cial, uma vez que se pede ao professor que elimine as noções implícitas inerentes à cultura escolar”; e, em se­gundo lugar, a distância inte­lectual, uma vez que se trata de colmatar as lacunas de conhecimento entre os dois parceiros da relação educa­tiva. O GRDS (Groupe de Re­cherche sur la Démocratisation Scolaire) e sociólogos da educação, como Stéphane Bonnéry e Sandrine Garcia, trabalham estas propostas em termos de "pedagogia da explicitação"[8], que deve também ser associada aos tra­balhos sobre o "currículo oculto" iniciados por sociólo­gos como Basil Bernstein [9]. Para estes autores pioneiros sobre a relação entre as práticas linguísticas nos meios populares e a reprodução das desigualdades na escola, os métodos de ensino ex­plícitos deveriam ser promovi­dos em oposição aos que eles descreviam como "invisí­veis".

À sua maneira, Freinet conciliava todas estas posições quando escrevia, em maio de 1933, no seu editorial para L'Éducateur prolétarien: "Não formamos a criança: for­necemos-lhe o máximo de elementos, o máximo de ins­trumentos, o máximo de possibilidades para que, par­tindo do que ela é, no seu meio, possa atingir a realiza­ção individual e social de que é capaz. [...] O dever dos educadores não é agradar aos poderosos do momento; a nossa tarefa é outra – temo-lo afirmado sempre: é for­mar cidadãos conscientes. Pois bem! Levamos simples­mente o nosso papel a sério!” Não é necessário multi­plicar os exemplos até ao infinito para perceber até que ponto todas estas ideias emancipatórias merecem ser trabalhadas, experimenta­das e integradas na formação de professores. Porque to­das elas têm um potencial emancipador, desde que se dirijam às crianças que mais precisam delas, e desde que se concentrem em quebrar todas as formas de domina­ção, o que é uma condição prévia para a construção de uma verdadeira igualdade e de uma escola comum. Em vez disso, estas pedagogias permanecem confinadas ao interior da investigação uni­versitária e ao mundo mili­tante, sob o olhar benevolente dos destruidores de es­colas públicas que ocupam os mi­nistérios do governo Macron. É, pois, urgente trabalhar no sentido de as po­pularizar e fazer com que sejam apropriadas por outras correias de transmissão — en­quanto esperamos por me­lhores dias.


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[1] Ler o prefácio d’Irène Pereira à Paulo Freire, La Péda­gogie des opprimés, Agone, 2021.

[2] Ler Laurence De Cock et Irène Pereira (dir.), Les Péda­gogies critiques, op. cit. 

[3] Jacques Rancière, “Sur le maître ignorant “, Mul­ti­tu­des.net.

[4] Infelizmente, o slogan “Todos podem” também foi cooptado por neoliberais e neurobeatos. Stanislas Dehaene, autor em 2007 da popular obra Les Neurones de la lecture é a figura de proa desta neurobeatitude. (...): "A longo prazo, o seu sonho seria unificar as ciências sob a bandeira de um cognitivismo capaz de produzir nada mais nada menos do que uma teoria global do cérebro, mas também dos diferentes aspectos da actividade humana – direito, economia, política, etc. – com base na hipótese de que as leis que actuam nos processos cerebrais se encontrariam, em particular, nas realizações sociais". Não poderia haver expressão mais clara da vontade de contornar o factor social na luta contra as desigualdades educativas. Sob a capa da filantropia, o grande capital, ajudado por políticos e cientistas sem escrúpulos, tenta influenciar reformas educativas baseadas no ideal empresarial. Esta visão individualista, dificilmente compatível com a escola pública, enfrenta uma grande oposição, pelo menos por parte dos professores [Laurence de Cock, À l’école du scientisme et de la neurobéatitude – um dos capítulos do livro que que faz parte este texto: École publique et émancipation sociale].4. Eva Codognet et Guillaume Tremblay, «Joseph Jaco­tot, pédagogue radical, 1770-1840», Democra­tisa­tion-scolaire.fr, 3 février 2020. 4. Eva Codognet et Guillaume Tremblay, «Joseph Jaco­tot, pédagogue radical, 1770-1840», Democra­tisa­tion-scolaire.fr, 3 février 2020. 

[5] Eva Codognet et Guillaume Tremblay, «Joseph Jaco­tot, pédagogue radical, 1770-1840», Democra­tisa­tion-scolaire.fr, 3 février 2020

[6] Charlotte Nordmann, Bourdieu/Rancière. La poli­tique entre sociologie et philosophie, Amsterdam, 2006. 7 Pierre Bourdieu et Jean-Claude Passeron, Les Hé­ri­tiers…, op. cit., p. 114. 

[8] Stéphane Bonnéry (dir.), Supports pédagogiques et in­égalités scolaires, La Dispute, 2015 ; Sandrine Garcia et Anne-Claudine Oller, Réapprendre à lire. De la querelle des méthodes à l’action pédagogique, Seuil, 2015. 

[9] Basil Bernstein, Langage et classes sociales. Codes so­cio-linguistiques et contrôle social, Minuit, 1975.