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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Porque é preciso romper com a ideologia do bem-estar na educação *


Uma educação emancipatória não pode fazer parte do paradigma do «desenvolvimento pessoal». Ela remete para outro paradigma, o da «superação colectiva». Este é um paradigma que surge na Carta de Stans de Pestalozzi, é desenvolvido por Korczak e Makarenko, cresce a partir do trabalho de Célestin e Élise Freinet e é trabalhado no âmbito da Pedagogia Institucional. Podem ser encontrados vestígios no movimento da Educação Nova, mas este último permanece profundamente ambivalente em relação a ela: a metáfora hortícola (Hameline, 1986) é ainda frequentemente dominante e actua como um importante obstáculo epistemológico no acesso a práticas educativas emancipatórias. Quanto ao discurso pedagógico contemporâneo, quer seja «mainstream» ou pretenda ser científico, nem sempre escapa ao naturalismo do já existente, e é, sem dúvida, um dos maiores desafios, hoje, das ciências da educação, de clarificar a importância de uma ruptura epistemológica com o paradigma do «desenvolvimento pessoal» e a ideologia do bem-estar que o acompanha.» CONTINUAR A LEITURA >>>

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quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Da pedagogia como utopia

Contrariamente ao que pensam tanto os seus apoiantes como os seus opositores, a pedagogia não combina «natu­ralmente» com as utopias. Muito pelo contrário! Quer de­finamos a pedagogia, segundo a tradição etimológica, como «acompanhamento» da criança em direcção ao pre­ceptor, quer prefiramos uma definição mais conceptual, considerando-a como uma relação necessária e provisória que visa a «emergência» de um sujeito autónomo, em am­bos os casos, o que a caracteriza é o movimento: «acompa­nhamento» ou «emergência» opõem-se, de facto, a qual­quer forma de entrincheiramento. Ser «pedagogo» é, pois, recusar o confinamento e a fatalidade, lutar contra todas as formas de prisão domiciliária e todas as formas de reprodu­ção sociológica ou mimética; é, nas palavras de Kant que definem o Iluminismo, permitir a cada um de nós «pensar por si próprio» ou, como diz Pestalozzi de forma mais radi­cal, fazer com que cada um de nós possa «fazer obra de si próprio». LER TEXTO COMPLETO >>>

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Da investigação em pedagogia

PDF DISPONÍVEL >>>

Não consigo conceber a actividade universitária como uma justaposição entre duas funções — o ensino e a in­vestigação — que, infelizmente, são reconhecidas e valo­rizadas de forma muito desigual. Para mim, não existe ape­nas um simples hífen entre as duas palavras, professor e investigador, mas uma relação consubstancial que torna cada uma das duas actividades inconcebível sem a outra. É o próprio sentido da palavra «universidade», em refe­rência a um possível — mas obviamente nunca realizado — projecto «universal» de partilha de conhecimentos en­tre os seres humanos. A investigação universitária deve es­tar imbuída da vontade de transmitir o saber, de fazer do conhecimento um meio de ligação entre as pessoas, de construir pontes entre as culturas, de dar ao maior nú­mero possível de pessoas os instrumentos necessários para compreender o mundo e de contribuir para o escla­recimento do debate público...

Não compreendo certos colegas que dizem perder tempo com os estudantes e que prefeririam dedicar-se à «inves­tigação pura». Compreendo-o tanto menos, quanto acho que o valor da investigação é testado pela capacidade de transmitir a sua abordagem e os seus resultados. O ensino desempenha, assim, um papel fundamental para o inves­tigador: é um instrumento precioso de formalização e um meio de sair do egocentrismo. O projecto de ensino abre a investigação à universalidade possível do conhecimento, tal como a exploração da investigação liberta o ensino do dogmatismo repetitivo.

Estou, evidentemente, consciente da desconfiança que ro­deia o meu trabalho de investigação na universidade. Nas ciências humanas, continuamos a depender de uma con­cepção positivista e experimental da investigação: a expo­sição de metodologias, essencialmente quantitativas, con­tinua a ser, muitas vezes, o único critério de cientificidade reconhecido. Como se a finalidade da investigação não fosse, muito simplesmente, produzir modelos — que de­vem, evidentemente, ser bem fundamentados e discuti­dos — que nos permitam compreender o mundo e agir dentro dele. Com as concepções que hoje dominam a «in­vestigação», creio que as maiores e mais reconhecidas fi­guras históricas, aquelas que fizeram progressos decisivos na educação, não teriam encontrado lugar na universi­dade: nem Jean-Jacques Rousseau, nem Jean-Gaspard Itard, nem Célestin Freinet, nem mesmo, noutros domí­nios, Sigmund Freud ou Denis Papin!

Pela minha parte, acredito na possibilidade de uma inves­tigação que combine observação e invenção, documenta­ção meticulosa e construção de propostas coerentes, re­ferência ao passado e o trabalho em associação com os professores. Não creio que o investigador deva estar numa posição de superioridade em relação aos profissionais, ao ponto de pretender dizer a verdade por eles. Os investiga­dores — pelo menos em pedagogia — devem submeter o seu trabalho ao teste da transmissão e oferecê-lo à inteli­gência colectiva. É por isso que não tenho qualquer vergo­nha de me ter comprometido no domínio da divulgação: desde que não renuncies à substância, ganhas sempre em expor-te. E eu prefiro expor-me ao julgamento do maior número possível de pessoas do que impor as minhas pre­tensões metodológicas e a opacidade do que tenho a dizer a um número restrito de pessoas, que se sentem lisonjea­das por fazerem parte do cenáculo... É obviamente mais arriscado, como é, por definição, o projecto de ensinar. Qualquer professor te dirá: ensinar nunca é um dado ad­quirido. É também por isso que me vejo neste trabalho e que gosto tanto de o fazer.

Por isso ainda dou aulas todas as semanas. É uma activi­dade que me é indispensável.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Carta a Emílio [de Rousseau]


Há mais de dois séculos que nascestes da imaginação de Jean-Jacques Rousseau. Rapidamente te tornaste uma referência e, sem dúvida, continuas a sê-lo hoje para aqueles que, como nós, acreditam que a educa­ção é a grande obra dos homens. És uma referência e, no entanto, muito poucos se dão ao trabalho de ler a tua história. Citam-te, ignoram-te ou, na maior parte das vezes, agarram-se desesperadamente a al­gumas recordações escolares, como a gravura de um famoso livro de literatura, que te mostra a admi­rar uma paisagem alpina, na companhia de um jo­vem clérigo da Saboia. Para dizer a verdade, és agora pouco mais do que um nome, uma referência e uma reverência obrigatórias para os estudantes de letras ou de filosofia. E, quando tentamos traçar os contor­nos da tua imagem, parece que, na maior parte das vezes, dás a mão a um preceptor deseperadamente sério, um argumentador incansável, que aproveita o mais pequeno acontecimento para te dar uma lição, que nunca te concede um momento de lazer ou de desatenção que ele não tenha expressamente pre­visto.

Quanto ao resto, nada de extraordinário... um cate­cismo ideológico bem conhecido: as crianças são boas, devem ser deixadas a desenvolver-se longe de influências sociais perversas, imersas na natureza au­têntica e com todas as oportunidades para estimular a sua inteligência. A ciência não se aprende na sala de aula, inventa-se em situações concretas que lhe dão sentido; o conhecimento não se transmite, im­põe-se como uma necessidade para explicar o que vemos, compreender o que sentimos e dominar o que nos dizem.

Claro que sabes tudo isto perfeitamente e o que di­zemos aqui deve parecer-te trivial. O que real-mente te perguntas é por que razão te interrogamos sobre a escola e os debates que a abalaram no final do sé­culo XX. É que há uma multidão inumerável de alu­nos, do jardim de infância ao ensino secundário, que poderíamos ter abordado sobre os efeitos da escola, na sua personalidade, no seu destino social, na sua visão da existência e da humanidade... Todos teriam sussurrado as suas esperanças de ver o mundo da es­cola tornar-se uma es­cola do mundo; ter-nos-iam confidenciado o seu desejo de um pro­fessor ideal que os ou­visse, os compreen­desse e os arrebatasse com o seu entusiasmo; teriam também confes­sado a dificuldade de se emanciparem do pro­fessor admirado, de passarem sem ele, de o traírem para lhe serem fiéis. A submissão, a dependência, o sofrimento, a renún­cia, o esforço, a vontade, o desejo, o interesse, a ale­gria, o tédio, a cólera, tudo isso teria, sem dúvida, vindo à tona com a complexidade da aprendizagem.

E, no entanto, não é a eles, que tinham tanto a dizer sobre a escola, que nos dirigimos, mas a ti, que nunca lá estiveste.... É que, olha só, tu és a figura emblemá­tica da mais célebre das utopias educativas. E, numa altura em que a pedagogia é vista por alguns como o último perigo, uma ameaça para a cultura e até para a unidade da nação, sentimos que eras o mais indi­cado para nos ajudar a pensar. Há quase duzentos e cinquenta anos que andas a reflectir sobre isto, e é óbvio que tiveste muito tempo para pesar os prós e os contras.

É por isso que nos dirigimos a ti e não a Jean-Jacques. Jean-Jacques, nós conhecemos; temos todos os co­mentadores de que precisamos; todos os anos nos trazem a sua quota-parte de exegeses, cada um mais erudito do que o anterior. Mas tu és a voz muda neste caso. E nós, que falamos muito, estamos mais interessados nos mudos. É contigo que gostaríamos de perceber uma série de coisas. Porque todos os grandes princípios que hoje estão a ser contestados foram experimentados por ti ao longo dos anos. Sen­tes a pressão todos os dias, e até as mais pe­quenas consequências na tua cabeça e no teu corpo. Consi­deraste todas as objecções. Porque ninguém, mais do que tu, foi mergulhado numa situação edu­cativa simultaneamente radical e coerente.

É por isso que gostaríamos que nos ajudasses a en­contrar o caminho, através do emaranhado de dis­cursos sobre a educação, no final do século XX. Gos­taríamos que nos ajudasses a colocar as coisas em perspectiva, a seguir os truques totalitários e mistifi­cadores dos pedagogos, mas também a salvar o que, nas suas propostas, permanece «incontornável», como se diz nas gazetas de hoje. Gostaríamos de ser impiedosos com todas as tentações simplificadoras e demagógicas, não tanto em nome de um rigor inte­lectual que cada um julga possuir sozinho, mas por­que te amamos e aos teus semelhantes o suficiente para não corrermos o risco de te prejudicar. Sejamos claros: o nosso plano não é poupar-te a todos os pro­blemas e sofrimentos, var­rer o chão diante de ti como faziam os reis e os pa­pas, mas queremos que nos ajudes a distinguir o que te engrandece do que te diminui, o que te torna um ser capaz de humani­dade do que te condena à de­pendência ou à violên­cia. Como podes ver, esta é uma tarefa difícil. Mas tu vais ajudar-nos.

Quando os políticos e aqueles que os comentam, pais e avós, fabricantes de livros didácticos e fazedo­res de histórias, ligas de verdadeiros estudiosos e so­ciedades que se acreditam estudiosas, pensadores da Sobornne e da televisão… quando todos, na reali­dade dizem tudo e qualquer coisa sobre a Escola e a pedagogia, pode ser útil invocar aquele que, aos nos­sos olhos, conhece melhor o problema. Quando fa­la­mos de educação, esquecendo que falamos de pe­dras vivas, realmente precisamos de alguém que co­nheça as coisas por dentro, alguém que se tenha dado a separar o essencial do acessório, alguém que nos ajude a alinhar o pêndulo com as horas.

Emílio, volta depressa, eles enlouqueceram… sem ti é provável que nos arrisquemos a ficar loucos tam­bém

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Conhecimentos ou competências?

De cada vez que jogamos com um par de palavras de forma dicotómica, corremos o risco de simplifi­car consideravelmente as coisas, ou mesmo de as cari­ca­turar. Tentemos, contudo, definir rapida­mente estes dois ter­mos a partir do uso que lhes dou. Para mim, os conheci­mentos e as competên­cias são mediações educati­vas que permitem aos alunos, que as adquirem, es­ca­par, pelo menos par­cialmente, à violência das si­tuações físicas, psicoló­gicas e sociais que os envolvem. Umas e outras po­dem ser adquiridas de ma­neira superficial, amon­toa­das no curto prazo, para passar num exame, por exemplo; mas também po­dem ser inte­grados na di­nâmica intelectual de um sujeito e contribuir efec­tivamente para a sua eman­cipação. CONTINUAR A LER >>>

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Neurociências e Pedagogia: Um diálogo de valores

A propósito do encontro de Philippe Meirieu com Grégoire Borst

A pedagogia e as neurociências podem realmente trabalhar em conjunto? Foi esta a questão debatida a 24 de janeiro pelo pedagogo Philippe Meirieu e pelo psicólogo neurocientista Grégoire Borst, a convite do CÉMÉA DA BÉLGICA, em associação com o OBSERVATOIRE DE LA RÉSILIENCE-BORIS CYRULNIK e o INSTITUT POUR LE DÉVELOPPEMENT DE L'ENFANCE ET DE LA FAMILLE (IDEF)

GRÉGOIRE BORST e PHILIPPE MEIRIEU partilham os mesmos valores. Assim que os dois oradores foram apresentados, JEAN-FRANÇOIS HOREMANS, o mestre de cerimónias da noite, sublinhou a sua convergência: "Os nossos dois convidados são humanistas". Desde o início das suas intervenções, ambos falaram da necessidade de atribuir aos professores a responsabilidade de decidir sobre o caminho a seguir. Os professores não são executores!

Para os dois protagonistas, o papel dos investigadores é claro: fornecer um corpus de conhecimentos científicos susceptíveis de esclarecer a complexidade de cada situação singular. Se era de esperar que PHILIPPE MEIRIEU salientasse que esta reflexão se baseia em valores, não esperávamos, necessariamente, que um neurocientista fosse tão insistente neste sentido.

A preocupação com os alunos e as famílias em dificuldade, a tomada de posição sobre a necessidade da heterogeneidade, a luta contra todos os determinismos, o respeito profundo pelos professores e pela profissão complexa que exercem (com particular atenção ao trabalho no jardin-de-infância), o respeito inquestionável pelos alunos e, mais amplamente, pelas crianças e adolescentes como sujeitos, a valorização dos alunos pelo investimento no seu do progresso e a rejeição do paradigma desmoralizador da comparação social, etc. GRÉGOIRE BORST não só enuncia estes valores, como também os relaciona, sistematicamente, com os trabalhos da psicologia cognitiva.

A IMPORTÂNCIA DA METACOGNIÇÃO

GRÉGOIRE BORST deu grande importância à metacognição. Do seu ponto de vista, não é acumulando mais horas de matemática (por exemplo), e cada vez mais precocemente, no percurso escolar de um aluno, que as escolas se tornarão mais "eficientes". Pelo contrário, isso tende a aumentar a ansiedade dos alunos mais desfavorecidos. Pelo contrário, é apoiando os processos metacognitivos, desde os primeiros anos do jardim-de-infância, integrando-os nas estratégias pedagógicas adequadas a cada um.

O investigador partilha connosco o essencial do trabalho do seu laboratório, apresentando os princípios e as funções da inibição: os alunos devem aprender a resistir aos automatismos do pensamento, reconhecendo as armadilhas das situações e das rotinas que temos tendência em activar se não tivermos cuidado.

PHILIPPE MEIRIEU, por seu lado, recordou um certo número de fundamentos da educação: não basta ensinar para que os alunos aprendam; cada situação pedagógica é única e o conhecimento científico só pode contribuir para isso (a inteligência das situações continua a ser uma "arte de fazer"); o princípio da educabilidade é o principal fundamento de qualquer adulto responsável pela educação; a superação das representações espontâneas exige a imposição de um adiamento do imediatismo e a autonomia intelectual educa-se através de estratégias diversificadas.

Em todos estes pontos, PHILIPPE MEIRIEU mostra que não existe qualquer barreira entre a pedagogia e as neurociências, mesmo que as duas abordagens possam levar à utilização de aspectos e conceitos diferentes.

HÁ NEUROCIÊNCIAS E NEUROCIÊNCIAS... 

PHILIPPE MEIRIEU destaca também as "diferentes sensibilidades". Assim, detém-se no conceito de desenvolvimento, caro a Jean Piaget. Teme  a abstenção pedagógica dos professores que esperam que o desenvolvimento faça o seu trabalho: "A pedagogia não é a arte do desenvolvimento pessoal, mas o trabalho da superação colectiva". Reitera também que não podemos reduzir um sujeito ao que observamos dele.

GRÉGOIRE BORST concorda, afirmando que o behaviorismo é uma armadilha em que podemos cair se não estivermos sempre conscientes dos seus riscos. Seguindo os passos de JEAN PIAGET, os investigadores do laboratório LaPsyDÉ (Laboratório de Psicologia do Desenvolvimento da Criança e da Educação da Universidade de Paris), de que este investigador faz parte, puderam demonstrar os importantes contributos, mas também os limites, da obra do famoso pai da epistemologia genética.

Os investigadores do seu laboratório ajudaram-nos a compreender como a concepção linear do desenvolvimento da inteligência, em etapas que se sucedem numa ordem imutável (segundo o "modelo da escada"), é uma teoria muito discutível. Em apoio a este trabalho, salientam até que ponto os erros de raciocínio podem ser tidos em conta, desde muito cedo, e que as grandes diferenças interindividuais se explicam pela capacidade, maior ou menor, de inibir os nossos automatismos e resistir às nossas rotinas.

PHILIPPE MEIRIEU prossegue nestas reservas com uma observação que pode ser resumida no facto de que "em educação, a solução não está contida no problema como a noz na sua casca, ela é o fruto da inventividade dos professores. [...] Embora, por vezes, existam remediações oportunas, as soluções pedagógicas procuram-se, inventam-se e (re)descobrem-se no património pedagógico, entre outros lugares".

A IMPORTÂNCIA DA CULTURA

Por fim, menciona os objectos culturais, fazendo referência a JEROME BRUNER, para quem a cultura dá forma ao espírito . Os conteúdos culturais não devem ser esquecidos em favor de mecanismos puramente cognitivos. Parece-me – depois de ter escutado GRÉGOIRE BORST – que esta "seta" tinha como alvo outros neurocientistas, menos preocupados com o lugar fundamental da cultura no percurso do aluno. 

Na parte final da sua intervenção, PHILIPPE MEIRIEU dirigia-se, sem dúvida, aos mesmos destinatários quando concluiu com uma preocupação: a imposição da "escola eficaz". Este paradigma utiliza os inquéritos internacionais e os seus resultados como instrumento de medida, de que reconhece o interesse algures, mas volta a chamar a atenção para a tendência destes de limitar a aprendizagem ao que pode ser observado.

Para ele, este é um sinal do comportamentalismo em que "alguns colegas estão a tropeçar". Esta visão do ser humano", diz PHILIPPE MEIRIEU, "ignora o projecto de cada um, a mobilização das pessoas através de intenções". A sua preocupação prende-se, portanto, com a deriva tecnicista, impulsionada por uma investigação centrada no que é estritamente quantificável e observável, "ignorando assim a intencionalidade em favor do comportamento".

O autor salienta igualmente as importantes diferenças que estabelece entre motivação e mobilização, sendo a primeira considerada, demasiadas vezes, como um pré-requisito da actividade e a segunda como aquilo que se pretende alcançar através desta.

UMA DISCUSSÃO EM VEZ DE UM DEBATE

GRÉGOIRE BORST esclareceu-nos sobre as funções que atribui aos instrumentos de medida, denunciando os testes institucionais (nomeadamente os nacionais), cujos resultados fornecem poucas informações úteis aos professores, uma vez que já são observáveis no quotidiano da sala de aula. Outras dimensões, como o bem-estar, a metacognição e a inibição (pensar contra si próprio), poderiam permitir prever a resiliência de um certo número de alunos e seriam úteis para os professores.

PHILIPPE MEIRIEU concluiu com uma das suas máximas: "é preciso medir com medida", e sugeriu três precauções a este respeito: não esquecer aquilo a que chama a “Jurisprudência de Binet” : os testes da escala métrica da inteligência só fazem sentido quando são bem sucedidos; é necessário distinguir e articular critérios e indicadores para fundamentar as nossas escolhas; e evitar utilizar a medição como um instrumento sistemático de comparação e de competição.

GRÉGOIRE BORST concordou, dando exemplos de práticas escolares que valorizam a comparação social, por vezes sem o conhecimento dos professores que as criaram. Alargou a questão da avaliação, insistindo sobre a variabilidade das capacidades de cada indivíduo (nomeadamente entre os 4 e os 11 anos), e o período da adolescência, que ainda anuncia mudanças profundas devido ao que chamou "uma reconfiguração completa do cérebro".

Por outras palavras, do ponto de vista cognitivo, nada é completamente certo. Estas posições não podem deixar de encantar o homem que fez do princípio da educabilidade uma das suas maiores batalhas.

Em certos aspectos, GRÉGOIRE BORST traz a sensibilidade de uma nova vaga de neurocientistas, como ALBERT MOUKHEIBER ou SAMAH KARAKI, que aceitam o seu compromisso com os valores. Isto não significa que tenham perdido o seu rigor científico. A visão cautelosa de GRÉGOIRE BORST sobre a capacidade das neurociências para transformar a educação é um lembrete bem-vindo da necessidade de trabalhar ao lado daqueles que se vêem, todos os dias, contra a parede.

Grégory Delboé


segunda-feira, 22 de julho de 2024

Que estratégias pedagógicas para um mundo-projecto? *

Versão portuguesa de Daniel Lousada

Como podemos iniciar uma verdadeira prática de Educação Ambiental, que traga o mundo às nossas vidas, traga os outros à vida no mundo e permita que o mundo seja um lugar de projectos e não apenas um mero objecto? Cinco princípios, simples, parecem-me ser o caminho a seguir: são retirados da grande tradição dos “pedagogos históricos” que tanto têm para nos ensinar, de Pestalozzi a Korczak, de Ferrer a Makarenko, de Freinet a Oury, de Maria Montessori a Germaine Tortel, de Cousinet a Paulo Freire e muitos outros...

  1. Fazer tudo sem fazer nada": era o lema de Rousseau. Os pedagogos chamam-lhe “organizar o ambiente”. “Não nos ocupamos das pessoas, ocupamo-nos do ambiente, dos dispositivos, estruturamos o espaço e o tempo”, diz Makarenko. A nossa reflexão, neste domínio, continua a ser insuficiente, e os professores são demasiado idealistas: fixados nos conteúdos, indiferentes às condições em que estes são transmitidos. A este respeito, podemos, legitimamente, ficar chocados com a falta de trabalho sobre a organização do próprio ambiente escolar, incluindo, por vezes, por aqueles que afirmam ensinar educação ambiental. O próprio ambiente escolar é, demasiadas vezes, abandonado. Não falamos da reflexão sobre a arquitectura escolar, que está ainda a dar os primeiros passos. Nem sequer mencionemos o facto de que, por exemplo, as autoridades locais, responsáveis pela construção das escolas, não disporem de um caderno de encargos nacional, que imponha um mínimo de exigências pedagógicas. Sem esquecer o facto de que, em muitos casos, qualquer educação ambiental será imediata e totalmente contrariada pelo próprio ambiente escolar, que viola as regras estabelecidas. As crianças não salvarão o planeta se não as colocarmos num ambiente escolar onde possam compreender a interacção entre o homem e o ambiente, experimentar a ligação entre o privado e o público e ter espaços onde possam aprender não a “desfrutar” da natureza, mas a viver com ela.
  2. Trabalhar com: este é um segundo princípio pedagógico essencial. Trabalhar com as crianças tal como elas são, e não como gostaríamos que fossem. Claro que preferíamos que elas estivessem já educadas, mas elas não estão educadas – isso é connosco! E temos de “lidar” com crianças concretas, crianças que têm uma história, um passado, condicionamentos e problemas, que estão muitas vezes marcadas pela vida. Temos de “ir em frente”, não nos resignarmos, mas pegar nelas onde estão e acompanhá-las, trabalhar com elas para as levar mais longe. Édouard Claparède definiu como lema da Maison des Petits que fundou em Genebra: “A escola onde as crianças não fazem o que querem, mas querem o que fazem”. Não se trata, portanto, de abandonar as exigências da educação, bem pelo contrário, mas de fazer com que os educadores tomem as crianças onde elas se encontram, para as ajudar a progredir. As crianças estão num “mundo-objecto”... cabe-nos a nós, na sala de aula, criar situações educativas que lhes permita experimentar um “mundo-projeto”.
  3. Fazer “como se” para fazer de facto: fazer “como se” as crianças fossem capazes quando ainda não o são... Esta é a grande dificuldade que confronta todo o educador. Uma criança não é, por definição, um ser livre e responsável; mas o papel do educador é antecipar razoavelmente o futuro, para o fazer acontecer. Antecipar o suficiente, para que a criança perceba o desafio e o supere. Não antecipar demasiado, para além do que é possível, para evitar o desânimo. Desta forma, ao trabalharmos em conjunto, para lançar desafios, que permitam às crianças superarem-se a si próprias e avançarem, estaremos, gradualmente, a permitir-lhes fazer o que não sabiam e não conseguiam fazer. É uma bela alternativa ao comportamentalismo, desde que mantenhamos a preocupação de permitir o aparecimento de comportamentos responsáveis, de respeito pelos outros e pelo meio ambiente, mas recusando, como método educativo, o adestramento.
  4. Fazer coisas aqui para aprender a fazer coisas noutro lugar: esta é a questão central da “transferência”. A educação ambiental coloca, claramente, a questão da transferência. De facto, as limitações do modelo behaviorista residem, precisamente, no facto de ignorar a questão da transferência. Porque o que eu aprendo a fazer mecanicamente aqui, se não o compreender, se não o souber projectar noutro contexto, só o poderei fazer aqui, exactamente nas mesmas condições, e logo que o professor vire as costas, logo que o tempo de escola acabe, tudo o que aprendi será totalmente inútil. A educação ambiental deve, portanto, interessar-se particularmente pela transferência, e ter os meios para o fazer, porque trabalha precisamente sobre os contextos; e a transferência é precisamente uma “métrica dos contextos”: variamos os limites, aproximamos e afastamos as fronteiras do mundo, para nos compreendermos, progressivamente, no mundo. A educação ambiental consiste em ensinar os alunos a situarem-se num determinado espaço e num determinado tempo, começando pela própria sala de aula, pelo bairro, pela cidade, por uma zona rural, e depois alargar progressivamente as suas observações, regressando regularmente ao ponto de partida, verificando a coerência do “sistema”, antes de avançar em mais explorações.
  5. Trabalhar em conjunto: a cooperação escolar é, na minha opinião, um princípio fundamental da educação ambiental. Para mim, não pode haver uma verdadeira educação ambiental sem a aplicação persistente de uma abordagem pedagógica cooperativa, sem aprender a trabalhar em conjunto, em que o sucesso não se faz em detrimento dos outros, mas com eles. Onde aprendemos com eles enquanto eles aprendem connosco. Onde descobrimos o prazer de aprender juntos. Porque o conhecimento não é um bem de consumo. No mundo comercial, quanto mais se tira de algo, menos sobra; quanto mais se dá, menos se tem. No domínio do conhecimento, é o contrário: quanto mais se dá, mais se domina o próprio conhecimento, mais se partilha e mais rico se fica! Uma bela prefiguração do que poderia ser um mundo onde o desenvolvimento se baseia na solidariedade, que beneficia todos! Temos de aprender, com os nossos alunos, que a informação partilhada é uma informação enriquecida, mesmo que isso signifique que já não posso exercer o poder sozinho. E sobre este plano todos nós temos muito a progredir nas nossas instituições mútuas. A informação é, demasiadas vezes, entendida como uma oportunidade para exercer poder. É verdade que quem partilha a informação renuncia a algumas das suas prerrogativas. Mas, de um ponto de vista pedagógico, quem sabe partilhar informação, na realidade, sabe também multiplicar o que diz e o que faz; deste modo, entra na lógica da verdadeira cooperação, a do desenvolvimento solidário.

Conclusão

Em suma, a educação ambiental não é, evidentemente, uma disciplina marginal ou uma matéria suplementar, que se possa acrescentar aos programas escolares, acrescentando uma hora aqui ou outra ali. A educação ambiental, tal como tentei apresentar-vos, é uma educação para a responsabilidade e para a cidadania planetária e, como tal, é o próprio exercício, no domínio educativo, desse “princípio de responsabilidade”, em relação ao futuro, que o filósofo Hans Jonas transformou na pedra de toque da nossa moral colectiva.

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* in "Éduquer à l’environnement : pourquoi? Comment? Du monde-objet au monde-projet”, pp. 16-19. LER >>>

quarta-feira, 22 de maio de 2024

ESCOLA: Sobre a ideologia das boas práticas

Philippe Meirieu

Existe o desejo de reforçar o poder dos professores, na condição de que o seu comportamento seja rigoro­samente controlado. Daí, também, a tentação de desenvolver, sis­tematica­mente, a sua função, neutralizando, ao máximo, a pessoa.

Ora, é exactamente isso que a ideologia das “boas práticas” promove, suge­rindo que, finalmente, temos as receitas milagrosas de uma profissão que os humanos vêm tacteando há séculos. É também isso que os adeptos da Edu­cação Baseada em Evidências procuram alcançar, hoje em dia, em todo o mundo: apoiados em investigações nas áreas da psicologia cognitiva e das neurociências, ao experimentar, em laboratório, diferentes métodos de en­sino, registando e comparando dados de avaliações de todo o tipo, afirmam ser capazes de desenvolver protocolos com vocação universal, e querem prescrever, a todos os professores do ensino básico, as ferramentas que es­tes devem usar para ensinar os seus alunos a ler e contar, mas também para fixar a sua atenção, memorizar ou organizar-se.

Poder-se-ia pensar que, estas tentativas de padronização pedagógica, dizem apenas respeito ao 1º. Ciclo, e aos “conhecimentos fundamentais”, que são percebidos – erradamente – como simples e mecânicos. Mas elas vão para além disso: o que estamos agora a ver, não será o desenvolvimento, em alta veloci­dade, de uma infinidade de projectos, para disponibilizar a todos, graças à tecnologia digital, entre outras ajudas, plataformas com vídeos para, supos­tamente, facilitar todo o conhecimento possível, à distância?

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[Requer pedido de acesso ao livro - versão portuguesa não comercial]  

domingo, 5 de maio de 2024

Falemos de educação e bem comum, de avaliação, exigência e excelência.

Na educação, tal­vez mais do que em qualquer outro lugar, a soma dos interesses individuais não produz o bem comum.

O modelo de competição (assente na conquista de interesses individuais, a qualquer preço) está de tal forma difundido entre nós, que é difícil imaginar que a excelência e a perfeição possam estar ao alcance de todos.

Reservamos o acesso à excelência àqueles e àquelas que foram sujeitos a uma selecção draconiana e se impuseram acima dos outros, ou até mesmo contra os outros.

Receio que pensemos ser exigentes porque somos selectivos. Abandonamos a exigência para que o processo de selecção funcione.

Temos de ajudar as crianças a competir consigo mesmas para se ultrapassarem, e não com os outros para esmagá-los.

Falta à escola uma visão educativa alargada. A escola é a única institui­ção por onde passam todas as crianças. Como tal, não creio que seja possível isentá-la da sua função educativa. Porque a própria instrução, por mais pura que seja, é sempre realizada num quadro que transmite valores. Os exercícios escolares não são neutros.

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segunda-feira, 1 de abril de 2024

A ESCOLA

Philippe Meirieu
Este texto é a introdução de Philippe Meirieu ao livro "L'école e son miroir", que escreveu com Jean-Bertrand Pontalis, em jeito de conversa [Éditions Jacob-Duvernet, 2011 - trad. D.L.]

De que falamos quando falamos de escola? Estamos realmente certos do que sabemos? Não será este um assunto no qual estamos demasiado envolvidos para pretender ser [cientificamente] objectivos? Isto porque a escola é, ao mesmo tempo, o lugar para onde íamos quando éramos criança e para onde mandamos os nossos filhos. A escola é a imagem amarelecida que recordamos com saudade e a última reportagem da tv sobre violência escolar. É para nós e para os nossos filhos o lugar da alegria de aprender e da angústia de não saber. São os olhos que brilham quando recebem uma boa nota e aquela pressão no estômago no dia do exame. A escola é também uma máquina imensa - a maior empresa portuguesa - e o quotidiano frequentemente muito distante das generosas declarações de intenções dos políticos. A escola é o bem comum da república, o lugar onde se cruzam histórias singulares e imprevisíveis. É objecto tanto das nossas raivas e esperanças colectivas como o depósito das nossas ambições familiares.

Há sempre duas escolas. E se temos tanta dificuldade em falar delas no debate público é porque, quando alguém fala de uma, respondemos sempre a falar da outra: a quem se refere à escola da sua saudade, responde aquele que sublinha a novidade radical da situação actual; ao pai que afirma que a escola não pode ignorá-lo, responde o professor que teme a usurpação das suas prerrogativas; ao defensor da cultura humanista desinteressada, responde o contribuinte que exige uma boa gestão dos fundos públicos e o "controlo dos resultados". Não há escola sem o seu espelho: simultaneamente o mesmo e o seu oposto; de frente e de costas; da direita para a esquerda; da esquerda para a direita... Sem limites no espelho, a escola forja o seu reflexo, o seu duplo.

É preciso, portanto, sair deste efeito de "mise en abyme"[*] - patético ou irrisório, depende - para reinscrever a escola no nosso "mundo comum". Um empreendimento árduo, sem dúvida, tal a dificuldade em escapar de oposições caricaturais. Mas empreendimento de salvação pública, humilde e persistente.

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[*] Mise en abyme é um termo francês que costuma ser traduzido como "narrativa em abismo", usado pela primeira vez por André Gide ao falar sobre as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si. É uma técnica que consiste em inserir uma obra dentro de si mesma, criando um efeito de reflexão infinita. Essa técnica é frequentemente utilizada na literatura, nas artes visuais e no cinema para explorar a noção de representação e autoreferência.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

ChatGPT, uma aplicação de inteligência artificial, que não é possível ignorar, nem é sensato descartar


O maior perigo do ChatGPT não está na fraude que ele pode permitir, mas na sensação que dá de estarmos a falar com um humano e que inverte completamente o sentido da relação educacional - diz Philippe Meirieu -. Ele fornece respostas objectivas imediatas, dispensando, assim, a dinâmica do questionamento. Promove certezas que aprisionam o pensamento... Vai totalmente contra o que se espera de um professor: suscitar interrogações que libertam de preconceitos.

Philippe Meirieu, ao reconhecer a legitimidade das preocupações dos professores que temem que esta aplicação isente os seus alunos dos trabalhos de investigação e de escrita, defende (até por isso) que se traga o ChatGPT para a sala de aula, incentivando o estudante a formular perguntas de diferentes formas, para comparar respostas, confrontando-as com as respostas dos manuais e enciclopédias. De certa forma, promove-se a utilização das sugestões destes dispositivos como rascunhos, sobre os quais há que fazer todo um trabalho de identificação das proposições menos claras, deslizes semânticos, erros grosseiros até, que levam a mal entendidos que é necessário corrigir. Algo semelhante à tradução para português, realizada pelo ChatGPT, que acompanha a versão original de Philippe Meirieu, publicada pelo “Le Monde”, e que CONVIDAMOS AGORA A LER>>> 

terça-feira, 10 de outubro de 2023

A Pedagogia e o Digital: ferramentas para decidir

1. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que a horizontalidade das trocas que promovem não exclua a procura da verdade.

2. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que o imediatismo que elas promovem não exclua  a exigência da pausa que permite a reflexão.

3. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que  a educação tenha como objectivo ajudar os alunos a ingressar no simbólico.

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É preciso fazer uma pergunta simples que, por si só, nos pode permitir identificar algumas chaves para a acção quo­tidiana, que ao mesmo tempo nos ajuda a focarmo-nos no que importa: em que condições o uso das tecnologias digi­tais nas escolas pode contribuir para o desenvolvimento do pensamento?

1. A utilização das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que o carácter hori­zontal das trocas que elas favorecem não exclua a procura da ver­dade. A tecnologia digital, através da Internet e de todos os instru­mentos de comunicação "em tempo real" que ela permite, modificou radicalmente o acesso à informação. Qualquer estudante, da escola primária à universidade, tem acesso instantâneo a um manancial de dados. A investiga­ção docu­mental, outrora confinada ao mundo abafado das bibliote­cas e dos centros de documentação, está agora à distância de um clique, a partir de qualquer lugar, sem re­quisitos es­peciais. Os motores de busca são consultados sis­tematica­mente e abrem uma quantidade fabulosa de docu­mentos de todos os tipos: textos digitalizados, fotografias e vídeos, textos de arquivo e peças noticiosas. Tudo isto dá a im­pres­são de que o conhecimento está a tornar-se acessível a to­dos, e que cada estudante está ao mesmo nível face ao acesso à “cultura”.

É claro que raciocinar assim é ignorar o paradoxo que está no cerne de todas as políticas culturais, já apontado por Bourdieu no seu estudo sobre os museus: o simples au­mento da oferta aumenta as desigualdades porque se apoia na procura daqueles que têm o capital simbólico, para de­se­jar apropriar-se dos bens culturais assim oferecidos. E tanto mais que, no caso da Internet, ignoramos também a natureza da "investigação" que aquela oferta permite.

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sexta-feira, 3 de março de 2023

A propósito da competição no Mundo Académico

Depois de conhecer quer o mundo político quer o mundo académico, acho que posso dizer que este não tem como dar lições de moral ao primeiro. Em ambos os mundos, a rivalidade mimética, descrita por René Girard, faz estragos. Desde que emerge, o lider é objecto de sentimentos ambivalentes: elogiamo-lo e apoiamo-lo, enquanto que, ao mesmo tempo, preocupamo-nos com o poder que ele pode acumular. Os militantes e discípulos, que o reconhecem, admiram-no, mas os que estão mais perto dele querem imitá-lo e ao mesmo tempo ocupar o seu lugar. Assim, como não há dirigente político sem um acólito arrivista que, depois de viver à sombra do seu chefe, não esteja disposto ao que quer que seja para ocupar o seu lugar, também já não há director universitário sem um ambicioso subalterno, que acabe por achar que pode ser um bom líder. É que cada ser humano identifica-se sempre com alguém que admira - é desta forma que progride - até que, um belo dia, dá-se conta de que é seu igual e entra numa luta feroz para ocupar o seu lugar. E, quando há dois candidatos para um só posto, temos a batalha no horizonte: os protagonistas preparam as armas, e cada um escolhe o seu lado. A menor faísca incendeia a pólvora.

A universidade reproduz este cenário de uma maneira tão regular e caricatural que, para um observador externo, assemelha-se a uma bela comédia.  Desde o interior, por outro lado, as situações são patéticas, de tão ridículo que se revela a disfarce intelectual (ver epistemológico) destes conflitos, à luz das disputas entre pessoas, que acabam a odiar-se de tanto que se parecem, preferindo, cada um, consagrar a sua energia a liquidar os seus iguais, em vez de se defenderem de inimigos comuns.

Sem dúvida que, tal como os meus colegas, participei neste jogo mortal, representando, talvez algumas vezes, o meu papel neste espectáculo. Não é fácil escapar à mecânica da identificação mimética, tanto mais quanto os espectadores se deliciem de antemão com ela. É muito difícil escapar desta armadilha. Manter uma relação de admiração, sem competição, com um colega é um milagre. Mas eu tive essa sorte: desde o meu primeiro trabalho em ciências da educação que leio Daniel Hameline, e até hoje tenho beneficiado do diálogo que mantenho com ele. Durante muito tempo ensinou filosofia da educação na universidade de Genebra e publicou numerosas obras. Pouco tempo depois da defesa da minha primeira tese, de cujo júri fez parte, convidou-me a escrever um livro, que prefaciou, dirigido a professores. Desde então não tem deixado de apoiar-me. Nunca houve qualquer rivalidade entre nós, pelo contrário: é com prazer que reconheço nele o meu professor. Estou consciente de que não poderei adquirir a sua cultura filosófica e pedagógica, nem tão pouco aceder à sua mestria nas obras de Bach. Tão pouco qualquer intenção de imitação: temos feito escolhas, em grande medida opostas, no que respeita à relação com as instituições; ele manteve uma estudiosa discrição quando eu optei por uma desordenada intervenção mediática. Enfim, competição nula; sei que, escreva o que escrever ou diga, ele irá sempre um passo à frente; e será capaz assinalar-me os pontos mais frágeis e mostrar-me o que procurar para chegar mais longe.

Reconheço que há algo de antiquado nesta relação, mas aceito sem dificuldade: saber-se imperfeito e querer relacionar-se com alguém que nos ajuda a avançar não é, de forma alguma, um acto de subjugação; bem pelo contrário, é um acto profundamente libertador. Reconhecer no outro uma autoridade intelectual que nos supera impede que nos cristalizemos numa atitude de auto-satisfação. Dedicar-lhe uma discreta amizade permite abrigar a esperança de que as relações humanas podem prescindir de calculismos medíocres, ciúmes idiotas e vinganças mesquinhas. E isto não é pouca coisa. Provavelmente, é até fundamental a quem aspire ser pedagogo, quer dizer, um modesto "acompanhante" de crianças e jovens.

in "Ce que l'école peut encore pour la démocracie", Éditions Autrement (Excerto do Capitulo 6 - Les mésaventures de la dialectique - da edição digital)
Versão portuguesa de Daniel Lousada

sábado, 19 de novembro de 2022

Da criança que apenas quer saber à criança que deseja aprender

In "Ce que l'école peut encore pour la démocracie - Deux ou trois choses que je sais (peut-être) de l'éducation e de la pédagogie", Autrement, Paris, 2020.
Versão portuguesa de Daniel Lousada [também disponível em pdf >>>]

Não estou certo de que a criança que eu fui tenha saboreado espontaneamente o desejo de aprender. Sem ofensa àqueles entusiastas que se espantam com a infância curiosa e ávida de conhecimento, acho que o desejo de aprender é uma construção lenta e complexa, em grande parte dependente do empreendimento educativo.

Naturalmente que toda a criança deseja ter tudo e tudo saber, não tenho qualquer dúvida sobre isso. Deste ponto de vista, o nascimento representa um trauma do qual ela levará algum tempo – às vezes até toda a vida – a recuperar. Primeiro ela precisa de aceitar que não terá, ou dificilmente terá, satisfação imediata: ela tem fome e frio, pede o olhar da sua mãe e o colo do seu pai, mas apesar do carinho que estes sentem por ela, às vezes estão ocupados com outros afazeres. Ela é obrigada a esperar e, ao esperar, descobre que não é o centro do mundo. E que a frustração faz parte da sua vida. Mas é uma frustração que se transforma numa satisfação mais intensa quando recebe a atenção que deseja. É, portanto, uma frustração que precisa de aprender a viver como uma promessa. Porque é na descoberta do prazer da espera que se encontra a fonte do desejo. Um desejo que não acaba na sua realização, porque guarda a memória da espera e mantém aberta a possibilidade do imprevisto. Um desejo que rompe com a exigência caprichosa da posse imediata e torna possível a transição criadora do “ter” ao “ser”, quando se renuncia à voracidade do tudo de imediato para se tornar disponível ao que nem sempre é possível ser dado, ao que poderá acontecer sem estar já previsto. Quando desistimos de nos identificarmos com o que temos para alcançar o que está para além de nós.

Os adultos têm, neste domínio, o dever imperioso do acompanhamento. Cabe-lhes ser o rosto da promessa que permite à criança transformar as suas frustrações em esperança: «Não podes ter tudo porque desejas. Mas é o desejo que te faz crescer se, pelo desejo, conseguires escapar da subjugação aos teus impulsos. É o desejo que te levará, um dia, a procurar um significado para a tua existência num lugar que não o da tua família». Metabolismo libertador se é que existe: permite emancipar-se dos seus próprios caprichos e resistir aos apelos publicitários da sociedade de consumo. Permite-nos desfrutar daquilo que nos faz humanos por excelência: o adiamento da acção e a suspensão da voracidade consumista, a disponibilidade para a alteridade, a abertura ao pensamento.

E, tal como têm o dever de ajudar as crianças a libertarem-se da tirania do ter, os adultos têm também o dever de as ajudar a emanciparem-se da “ditadura do saber”. Porque se a criança não quer aprender espontaneamente, ela quer certamente saber. Desvendar o mistério das suas origens, com certeza. Mas também, bem depressa, os mistérios do universo. Não é de surpreender, portanto, que ela, desde muito cedo, repita incansavelmente “porquê?” sem realmente se aventurar muito no “como?”. É que o “porquê” exprime a sua necessidade de encerramento, atesta a sua vontade de ter uma explicação que a preencha e, portanto, extinga a sua procura. Funciona no mesmo registo do capricho: “Tudo já”. Dispensa tanto a aprendizagem como o capricho procura dispensar a espera, que o acto de aprender exige. Quer uma explicação definitiva, pois o capricho exige a posse imediata.

Crescer é, portanto, assumir a própria incompletude e partir rumo ao desconhecido. Crescer é renunciar ao saber desligado do trabalho de aprender. É recusar dar-se por satisfeito com explicações superficiais totalizantes. Significa, de uma vez por todas, romper com os sistemas que apoiam os porquês que descartam o como.

Ora, crescer é talvez mais difícil hoje do que em qualquer tempo passado. Em primeiro lugar, porque a incerteza dos nossos destinos individuais e colectivos torna-nos cada vez mais vulneráveis aos vigaristas das certezas absolutas. Em segundo lugar, porque à simplificação dos dogmas juntaram-se todo o tipo de teorias da conspiração: Ambos, frequentemente construídos sobre a mesma lógica de “bode expiatório”, afirmam abraçar a "verdade" sem qualquer reflexão ou investigação, entregando-se ao pensamento caprichoso das certezas inquestionáveis. Preenchem a nosso pensamento e, ao preenche-lo, fazem-nos seus escravos ao esconder de nós qualquer falha que os possa questionar.

Escusado será dizer que todo este pensamento mágico é amplamente ajudado pelo fantástico desenvolvimento das “próteses tecnológicas” de hoje: instrumentos automatizados conectados em rede, aplicativos digitais e “motores de busca” – terrível oximoro! – de todo o tipo: «Sobretudo, não faças perguntas sobre o seu funcionamento! É magia! Temos todas as respostas, só precisas de fazer as tuas perguntas». Porquê aprender, de facto, quando basta um treino de curta duração no "manuseamento intuitivo" destes dóceis servidores, que colocam a omnipotência na ponta dos nossos dedos, para aceder, ao ritmo frenético dos algoritmos e das redes sociais, a todos os saberes [mas não ao conhecimento] do mundo?

É assim que as nossas crianças – ou pelo menos aquelas que não tiveram a sorte de ter uma comitiva de adultos a inculcarem-lhes o desejo de aprender – lutam por entender a teimosia dos seus professores: elas são convidadas a sacrificar actividades, das quais obtêm satisfação imediata, em favor de exercícios intelectuais que parecem ter sido inventados por professores sádicos, com o único propósito de verificar a sua capacidade de realizar tais exercícios. Prometem-lhes para mais tarde uma vaga satisfação, se conseguirem integrar-se no mercado de trabalho. Mas essa é uma satisfação que permanece bastante distante e, se quisermos ser honestos, cada vez mais aleatória. Então, por que não cingir-se a algumas competências transmitidas empiricamente por corporações sociais e a algumas representações resumidas, que lhes fornecem as chaves para ler um mundo agora reduzido a um cenário de jogo de computador? Porquê dar-se ao trabalho de aprender, fazendo operações que as máquinas, cada vez mais “androidizadas”, farão sempre mais rápido e melhor do que nós? Porquê "abrir o capô" e tentar compreender como funciona o motor quando tudo o que precisa é da chave de ignição? Porquê preocupar-se com conhecimentos geográficos, históricos, económicos ou filosóficos, quando tem um terminal digital miniaturizado no seu bolso que pode responder a tudo? Porquê ler e documentar, questionar e confrontar as suas posições com as dos outros, quando é muito mais confortável acampar num qualquer dogma, com o qual se identifica e que, partindo deste, pode decidir sobre tudo sem nunca ter examinado nada?

Existe um metabolismo decisivo que o adulto deve acompanhar a fim de ajudar as crianças a escapar do comportamento infantil, que lhes é próprio, do saber sem compreender: é necessário, de facto, que estas consigam encontrar mais prazer no pensamento assente na tentativa e erro do que na opinião certa não construída por elas. Precisam de descobrir que existe mais satisfação na busca da precisão, da justiça e da verdade, do que na afirmação presunçosa de uma doutrina. Precisam de encontrar o prazer de enfrentar o obstáculo que as obriga a examinar, investigar e reflectir, em vez de se esquivarem a ele com trejeitos desdenhosos ou procurar destruí-lo em ataques de raiva. Trata-se de um metabolismo lento e complexo que requer situações estimulantes e o acompanhamento de adultos exigentes, um metabolismo que, gradualmente, transforma a "criança que apenas deseja saber" num "sujeito que procura aprender". Um metabolismo que permite protegê-las da maldição das certezas absolutas, que raramente são suas.

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A experiência de Summerhill: Esperar que surja o desejo de aprender. Um beco sem saída

Philippe Meirieu
Phillipe Meirieu
n "Pédagogie des lieux communs aux concepts clés. Paris, ESF Éditeur
Versão portuguesa de Daniel Lousada
[também disponível em PDF >>>]

Embora a Escola de Summerhill tenha sido criada em 1921, o trabalho ali desenvolvido só foi conhecido fora das fronteiras de Inglaterra na década de 1960. O meio peda­gógico da “Escola Activa”, os pedagogos que se interessa­vam pelo movimento libertário e pela difusão das teorias psicanalíticas, em matéria educativa, conheciam a existên­cia da escola sediada em Sulfolk, mas a maioria desconhe­cia as suas práticas e apenas se referiam a ela de uma forma muito genérica. 

Em 1966, apareceu uma pequena obra do fundador de Summerhill, Alexander Neill, que ilustra o que estava em jogo naquele empreendimento: o objectivo consistia em permitir que as crianças aprendessem e se desenvolves­sem livremente, através da prática colectiva de autoges­tão. Com efeito, Neill considerava que as obrigações esco­lares e sociais tradicionais eram contraproducentes: ao impor às crianças aquisições mecânicas e superficiais, afas­tadas das suas preocupações, fomentava-se a hipocri­sia e a mentira; favorecia-se o caminho individualista e o sucesso a qualquer preço, em prejuízo das aprendizagens profundas, assentes na investigação e na cooperação. 

Tudo isto fazia eco das teorias bem conhecidas, então, da “Escola Activa”, na linha seguida pela Escola de Roches. Era apenas um pouco mais radical, pois Neill não vacilava em arrasar os tabus educativos em matéria de sexuali­dade, tabus que, em seu entender, apenas dissimulam frustrações e agressividade inúteis. 

Neill alcança o seu momento de glória em 1970, quando não se havia ainda esfumado a explosão libertária de 1968: a publicação de “Libres enfants de Summerhill” [cri­anças li­vres de Summerhill] tem o efeito de uma bomba. Numa série de capítulos ilustrados, com muito humor, Neill des­creve a sua escola. É mais do que evidente que o autor não se sente confortável com o estilo dos tratados de pedago­gia e, de facto, nem se dá ao trabalho de fazer uma expo­sição sistemática dos seus princípios e práticas. Mas o qua­dro é sugestivo quanto baste, para que muitos vejam nele uma proposta alternativa original. Madeleine Chapsal, es­critora e jornalista, co-fundadora do L’Express, escreve en­tão nesse semanário, que não é, no entanto, nada afecto às especulações libertárias: «Porque é tão rara uma experi­ên­cia tão positiva, tão necessária numa época em que todo o sistema de ensino, de um ponto ao outro da cadeia, do jardim-de-infância à universidade, mostra o seu fra­casso

Como vemos a retórica indestrutível do “Fracasso do sis­tema” já estava presente. E vemos sobretudo, que Sum­merhill – sem dúvida devido à natureza simpática e ao mesmo tempo desarticulada da proposta – apresenta-se como uma alternativa institucional a ter em conta, uma alterna­tiva em que o educador resolve o problema do desejo de aprender da maneira mais simples do mundo: esperando com tranquilidade, sem intervir, que o desejo se manifeste de forma espontânea… 

Na realidade, Neill assenta as suas propostas numa profis­são de fé, ingenuamente rousseauniana: 
«A minha mulher e eu decidimos abrir uma escola, na qual daríamos aos alunos a liberdade de expressão. Para fazê-lo, devíamos renunciar a toda a disciplina, a toda a direc­ção, a todas as sugestões, a toda a moral precon­cebida, a toda a educação religiosa fosse ela qual fosse. Alguns dis­seram que eramos muito corajosos, mas, na verdade, não precisámos de coragem. Do que preci­sá­mos, já tínha­mos: a crença no facto de que a cri­ança não é má, mas boa».[1] 

Neste sentido, Neil estava convencido de que «o excesso de agressividade de que falamos, nas crianças oprimidas, não é senão um forte protesto contra o ódio que lhes é di­rigido», e crê que insistir, como fazem os psicólogos e edu­cadores, na necessidade de exercer as inevitáveis pressões, para controlar esta agressividade, é um erro: «Não é possí­vel treinar um cão de caça quando este está preso a cade­ado. Como tão pouco, em psicologia humana, se pode enunciar teorias dogmáticas sobre uma humanidade prisi­oneira do seu ódio desde há várias gerações».[2] 

Apoiado nas suas convicções, Neill deixa que as crianças que recebe na sua escola sigam as aprendizagens que lhes são propostas, em total liberdade. Alguns – que de acordo com Neill estão deformados pelo “ensino tradicional” – ne­gam-se a assistir às aulas. Ninguém os recrimina nem obriga a apresentar-se. Ninguém tenta, tão pouco, con­vencê-los da necessidade ou interesse de aprender o que quer que seja. Um caso extremo, é uma criança que não participa de nenhuma actividade, durante vários anos, e abandona Summerhill, aos 17 anos, sem saber ler! Mas a maioria deles, uma vez que vivem livres num ambiente sem obrigações, voltam-se naturalmente para a leitura, a ma­temática, a carpintaria e a geografia. E então entre­gam-se a elas por inteiro, sem nenhum limite:
«Tom, de 8 anos, estava sempre a bater-me à porta para perguntar-me: “Diz-me, que posso fazer hoje?”. Não que­ria dizer-lhe nada. Seis meses mais tarde, se alguém pro­curava o Tom, podia encontrá-lo no seu quarto rodeado de papéis. Passava horas a desenhar mapas geográficos. Um dia, um professor de uma faculdade de Viena visitou Sum­merhill. Conheceu o Tom e fez-lhe um monte de per­gun­tas: “Interroguei o seu pequeno Tom sobre geografia e ele falou-me de lugares que me eram desconhecidos por completo”».

A partir do momento em que uma criança manifesta o de­sejo de aprender, seja o que for, Neill não só deixa que mergulhe no que elegeu – com a consequência possível de não dormir o suficiente – como também lhe faculta toda a ajuda técnica possível, em especial através de lições indi­viduais intensivas. Tanto assim que encontramos, nos seus textos, junto a violentos ataques à “Escola tradicional”, uma crítica virulenta aos métodos pedagógicos que procu­ram dourar a pílula, para que as crianças a consigam dige­rir melhor.
 

Além disso, denúncia o uso do jogo e de todos os artifícios que têm como objectivo tornar os saberes atractivos, de forma artificial, para os quais, segundo a sua opinião, há que esperar que a criança os acolha espontaneamente. E para os quais – de forma milagrosa – quase todas as crian­ças de Summerhill, se voltam espontaneamente! 

Fica por explicar, mesmo que minimamente, esse milagre, es­pecialmente se não nos resignarmos a deixar que a ale­a­toriedade de situações individuais oriente a aprendiza­gem. Bruno Bettelheim, que estudou exaustivamente o “caso Summerhill” e a quem não se pode acusar de hosti­lidade relativamente a Neill, levanta a ponta do véu: afirma que «Summerhill é uma boa escola», mas reco­nhece, no entanto, que isso não se deve à qualidade da sua pedagogia. Se a maior parte das crianças acaba por querer aprender, é, simplesmente – diz Bettelheim –, por­que «Neill é um tipo formidável e porque faríamos qual­quer coisa para obter a sua estima e afecto».[3] Com efeito, se o compreendemos bem, Neill não praticava a absten­ção educativa mais do que para recuperar em sedução o que havia abandonado em exigência! Mantinha, assim, a dependência que procurava abolir, permitindo ao mesmo tempo a intervenção do carácter fundamentalmente in­justo e inevitavelmente selectivo dos fenómenos de iden­tificação. 

Portanto, é impossível limitarmo-nos a esperar que o de­sejo espontâneo de aprender apareça, pois corremos o risco de virar as costas à pedagogia e ao seu projecto fun­dador: transmitir a todas as crianças os saberes necessá­rios ao seu desenvolvimento social e cidadão. E no en­tanto, mesmo quando Summerhill parece algo que ficou num passado distante, esta tentação reaparece, de vez em quando. Ela é até, implicitamente, um dos lugares mais co­muns da vulgata pedagógica: a criança é, por natureza, um ser curioso, desperto a tudo, desejoso de aprender desde que nasce, que pede apenas que se lhe dê acesso aos sa­beres mais elaborados e, por isso mesmo, não recusa ne­nhum esforço…, pelo menos enquanto os pais não tenham matado esse desejo, por falta de jeito, ou enquanto a insti­tuição escolar, com as suas pressões, não acabe por con­trariar esta disposição espontânea![4] Em "Nascido para aprender", título de uma obra de Hélène Trocmé-Fabre, que se baseia nas "ciências cognitivas", a criança estaria, de certa forma, destinada a desenvolver os conhecimentos necessários à sua educação, de acordo com uma dinâmica que só teríamos de acompanhar, de forma benevolente. 

Mas, não estaremos a confundir aqui o “desejo de Apren­der” com o “desejo de saber”? Ninguém duvida de que as crianças desejam saber: querem saber quais são as suas origens e como obter satisfação dos adultos que a ro­deiam. Querem saber como obter boas notas e passar no exame. Querem saber como participar num debate com amigos ou como utilizar um dispositivo electrónico. Mas prefeririam não ter de aprender tudo isso. Em primeiro lu­gar, porque a aprendizagem sempre se nos apresenta como uma perda de tempo, sobretudo quando alguém pode efectuar a tarefa por nós. Depois, porque todo o pro­gresso técnico consiste, precisamente, em permitir-nos fa­zer, em cada dia, menos esforço, para obter o resultado pre­tendido, sem ter de compreender como, nem saber o que se passa “debaixo do capô”. 

É isto, precisamente, que está em jogo na pedagogia es­colar, o ponto em que se produz a ruptura com o “desejo natural da criança”: na sala de aula, trata-se de passar do “desejo de saber” – desejo de eficácia no curto prazo, gui­ado pela preocupação de obter satisfação com o menor esforço possível – ao “desejo de aprender”, que exige dar-se tempo para explorar o desconhecido, que choca com a estranheza inevitável dos saberes novos, que aceita o es­forço sem a perspectiva de remuneração imediata…, a fim de aceder ao prazer – nunca de todo garantido quando nos lançamos nesta empresa – que procura a inteligibili­dade dos seres e das coisas. Trata-se, pois, de adiar a “ló­gica produtiva[5] para se confrontar com o gozo de pensar. E isto não tem nada de natural; pelo contrário, fazem falta conteúdos exigentes, situações estruturadas,… e a mediação de um professor que, pode dizer-se, faz falta à escola.



[1] A afirmação da “bondade natural” do homem” de Rousseau só é válida no “estado natural”, e esse “estado natural” não é uma etapa histórica determinada, mas uma hipótese filosófica que representa, de algum modo “o homem, abstracção feita de influências sociais nefastas que perturbam o seu desenvolvimento”. Assim concebida, a “bondade natural do homem” é uma espécie de “marca original” [independente do todo o “princípio” histórico] e inseparável, para Rousseau, do princípio de “perfectibilidade”, que podem alcançar os seres humanos mediante a educação. Rousseau não considera, com efeito, que “a criança seja boa”, mas que tem em si essa potencialidade e que graças à educação emancipadora, é possível, portanto, fazê-la aceder ao estado de sujeito, e permitir-lhe construir uma sociedade democrática no âmbito do contracto social.

[2] Na realidade, Neill recusa as análises de Freud sobre a agressividade e prefere, pelo contrário, as de Wilhelm Reich sobre o carácter decididamente positivo da “pulsão de vida”.

[3] Mais ainda: «As mudanças que Neill produz nos seus alunos, ao estarem assentes na identificação, só têm êxito com aqueles que podem identificar-se com ele. E muitos podem fazê-lo simplesmente, porque ele é o homem mais extraordinário que conhecem. Mas se um homem de menos estatura tentar aplicar a sua ingénua filosofia…  será o caos, porque o conceito que Neill tem de humanidade é incorrecto, mesmo quando esse conceito o inspira até ao ponto de fazê-lo alcançar coisas extraordinárias» [Bettelheim e outros, 1972: 90-91].

[4] Veja-se Menès (2012). A autora explica que, enquanto sujeito, a criança é movida por desejos, entre eles, o desejo de aprender. Os adultos podem alimentar esse desejo mediante um diálogo que inspire confiança ou facilitando a sua relação com o ambiente. Também podem “anestesiá-lo” não respondendo nunca a esse desejo ou bem, pelo contrário, esgotá-lo “sobrestimando-o” permanentemente.

[5] Demonstrei, em 2010, até que ponto a "lógica produtiva", dominante no campo económico e social, onde é legítima, sempre ameaçou a sala de aula e colocou muitos alunos em risco de serem marginalizados da aprendizagem [o que favorece apenas aqueles que são mais dedicados e que já conhecem a satisfação da aprendizagem]. Esta é a principal razão pela qual a escola não pode imitar "a oficina".