segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A experiência de Summerhill: Esperar que surja o desejo de aprender. Um beco sem saída

Philippe Meirieu
Phillipe Meirieu
n "Pédagogie des lieux communs aux concepts clés. Paris, ESF Éditeur
Versão portuguesa de Daniel Lousada
[também disponível em PDF >>>]

Embora a Escola de Summerhill tenha sido criada em 1921, o trabalho ali desenvolvido só foi conhecido fora das fronteiras de Inglaterra na década de 1960. O meio peda­gógico da “Escola Activa”, os pedagogos que se interessa­vam pelo movimento libertário e pela difusão das teorias psicanalíticas, em matéria educativa, conheciam a existên­cia da escola sediada em Sulfolk, mas a maioria desconhe­cia as suas práticas e apenas se referiam a ela de uma forma muito genérica. 

Em 1966, apareceu uma pequena obra do fundador de Summerhill, Alexander Neill, que ilustra o que estava em jogo naquele empreendimento: o objectivo consistia em permitir que as crianças aprendessem e se desenvolves­sem livremente, através da prática colectiva de autoges­tão. Com efeito, Neill considerava que as obrigações esco­lares e sociais tradicionais eram contraproducentes: ao impor às crianças aquisições mecânicas e superficiais, afas­tadas das suas preocupações, fomentava-se a hipocri­sia e a mentira; favorecia-se o caminho individualista e o sucesso a qualquer preço, em prejuízo das aprendizagens profundas, assentes na investigação e na cooperação. 

Tudo isto fazia eco das teorias bem conhecidas, então, da “Escola Activa”, na linha seguida pela Escola de Roches. Era apenas um pouco mais radical, pois Neill não vacilava em arrasar os tabus educativos em matéria de sexuali­dade, tabus que, em seu entender, apenas dissimulam frustrações e agressividade inúteis. 

Neill alcança o seu momento de glória em 1970, quando não se havia ainda esfumado a explosão libertária de 1968: a publicação de “Libres enfants de Summerhill” [cri­anças li­vres de Summerhill] tem o efeito de uma bomba. Numa série de capítulos ilustrados, com muito humor, Neill des­creve a sua escola. É mais do que evidente que o autor não se sente confortável com o estilo dos tratados de pedago­gia e, de facto, nem se dá ao trabalho de fazer uma expo­sição sistemática dos seus princípios e práticas. Mas o qua­dro é sugestivo quanto baste, para que muitos vejam nele uma proposta alternativa original. Madeleine Chapsal, es­critora e jornalista, co-fundadora do L’Express, escreve en­tão nesse semanário, que não é, no entanto, nada afecto às especulações libertárias: «Porque é tão rara uma experi­ên­cia tão positiva, tão necessária numa época em que todo o sistema de ensino, de um ponto ao outro da cadeia, do jardim-de-infância à universidade, mostra o seu fra­casso

Como vemos a retórica indestrutível do “Fracasso do sis­tema” já estava presente. E vemos sobretudo, que Sum­merhill – sem dúvida devido à natureza simpática e ao mesmo tempo desarticulada da proposta – apresenta-se como uma alternativa institucional a ter em conta, uma alterna­tiva em que o educador resolve o problema do desejo de aprender da maneira mais simples do mundo: esperando com tranquilidade, sem intervir, que o desejo se manifeste de forma espontânea… 

Na realidade, Neill assenta as suas propostas numa profis­são de fé, ingenuamente rousseauniana: 
«A minha mulher e eu decidimos abrir uma escola, na qual daríamos aos alunos a liberdade de expressão. Para fazê-lo, devíamos renunciar a toda a disciplina, a toda a direc­ção, a todas as sugestões, a toda a moral precon­cebida, a toda a educação religiosa fosse ela qual fosse. Alguns dis­seram que eramos muito corajosos, mas, na verdade, não precisámos de coragem. Do que preci­sá­mos, já tínha­mos: a crença no facto de que a cri­ança não é má, mas boa».[1] 

Neste sentido, Neil estava convencido de que «o excesso de agressividade de que falamos, nas crianças oprimidas, não é senão um forte protesto contra o ódio que lhes é di­rigido», e crê que insistir, como fazem os psicólogos e edu­cadores, na necessidade de exercer as inevitáveis pressões, para controlar esta agressividade, é um erro: «Não é possí­vel treinar um cão de caça quando este está preso a cade­ado. Como tão pouco, em psicologia humana, se pode enunciar teorias dogmáticas sobre uma humanidade prisi­oneira do seu ódio desde há várias gerações».[2] 

Apoiado nas suas convicções, Neill deixa que as crianças que recebe na sua escola sigam as aprendizagens que lhes são propostas, em total liberdade. Alguns – que de acordo com Neill estão deformados pelo “ensino tradicional” – ne­gam-se a assistir às aulas. Ninguém os recrimina nem obriga a apresentar-se. Ninguém tenta, tão pouco, con­vencê-los da necessidade ou interesse de aprender o que quer que seja. Um caso extremo, é uma criança que não participa de nenhuma actividade, durante vários anos, e abandona Summerhill, aos 17 anos, sem saber ler! Mas a maioria deles, uma vez que vivem livres num ambiente sem obrigações, voltam-se naturalmente para a leitura, a ma­temática, a carpintaria e a geografia. E então entre­gam-se a elas por inteiro, sem nenhum limite:
«Tom, de 8 anos, estava sempre a bater-me à porta para perguntar-me: “Diz-me, que posso fazer hoje?”. Não que­ria dizer-lhe nada. Seis meses mais tarde, se alguém pro­curava o Tom, podia encontrá-lo no seu quarto rodeado de papéis. Passava horas a desenhar mapas geográficos. Um dia, um professor de uma faculdade de Viena visitou Sum­merhill. Conheceu o Tom e fez-lhe um monte de per­gun­tas: “Interroguei o seu pequeno Tom sobre geografia e ele falou-me de lugares que me eram desconhecidos por completo”».

A partir do momento em que uma criança manifesta o de­sejo de aprender, seja o que for, Neill não só deixa que mergulhe no que elegeu – com a consequência possível de não dormir o suficiente – como também lhe faculta toda a ajuda técnica possível, em especial através de lições indi­viduais intensivas. Tanto assim que encontramos, nos seus textos, junto a violentos ataques à “Escola tradicional”, uma crítica virulenta aos métodos pedagógicos que procu­ram dourar a pílula, para que as crianças a consigam dige­rir melhor.
 

Além disso, denúncia o uso do jogo e de todos os artifícios que têm como objectivo tornar os saberes atractivos, de forma artificial, para os quais, segundo a sua opinião, há que esperar que a criança os acolha espontaneamente. E para os quais – de forma milagrosa – quase todas as crian­ças de Summerhill, se voltam espontaneamente! 

Fica por explicar, mesmo que minimamente, esse milagre, es­pecialmente se não nos resignarmos a deixar que a ale­a­toriedade de situações individuais oriente a aprendiza­gem. Bruno Bettelheim, que estudou exaustivamente o “caso Summerhill” e a quem não se pode acusar de hosti­lidade relativamente a Neill, levanta a ponta do véu: afirma que «Summerhill é uma boa escola», mas reco­nhece, no entanto, que isso não se deve à qualidade da sua pedagogia. Se a maior parte das crianças acaba por querer aprender, é, simplesmente – diz Bettelheim –, por­que «Neill é um tipo formidável e porque faríamos qual­quer coisa para obter a sua estima e afecto».[3] Com efeito, se o compreendemos bem, Neill não praticava a absten­ção educativa mais do que para recuperar em sedução o que havia abandonado em exigência! Mantinha, assim, a dependência que procurava abolir, permitindo ao mesmo tempo a intervenção do carácter fundamentalmente in­justo e inevitavelmente selectivo dos fenómenos de iden­tificação. 

Portanto, é impossível limitarmo-nos a esperar que o de­sejo espontâneo de aprender apareça, pois corremos o risco de virar as costas à pedagogia e ao seu projecto fun­dador: transmitir a todas as crianças os saberes necessá­rios ao seu desenvolvimento social e cidadão. E no en­tanto, mesmo quando Summerhill parece algo que ficou num passado distante, esta tentação reaparece, de vez em quando. Ela é até, implicitamente, um dos lugares mais co­muns da vulgata pedagógica: a criança é, por natureza, um ser curioso, desperto a tudo, desejoso de aprender desde que nasce, que pede apenas que se lhe dê acesso aos sa­beres mais elaborados e, por isso mesmo, não recusa ne­nhum esforço…, pelo menos enquanto os pais não tenham matado esse desejo, por falta de jeito, ou enquanto a insti­tuição escolar, com as suas pressões, não acabe por con­trariar esta disposição espontânea![4] Em "Nascido para aprender", título de uma obra de Hélène Trocmé-Fabre, que se baseia nas "ciências cognitivas", a criança estaria, de certa forma, destinada a desenvolver os conhecimentos necessários à sua educação, de acordo com uma dinâmica que só teríamos de acompanhar, de forma benevolente. 

Mas, não estaremos a confundir aqui o “desejo de Apren­der” com o “desejo de saber”? Ninguém duvida de que as crianças desejam saber: querem saber quais são as suas origens e como obter satisfação dos adultos que a ro­deiam. Querem saber como obter boas notas e passar no exame. Querem saber como participar num debate com amigos ou como utilizar um dispositivo electrónico. Mas prefeririam não ter de aprender tudo isso. Em primeiro lu­gar, porque a aprendizagem sempre se nos apresenta como uma perda de tempo, sobretudo quando alguém pode efectuar a tarefa por nós. Depois, porque todo o pro­gresso técnico consiste, precisamente, em permitir-nos fa­zer, em cada dia, menos esforço, para obter o resultado pre­tendido, sem ter de compreender como, nem saber o que se passa “debaixo do capô”. 

É isto, precisamente, que está em jogo na pedagogia es­colar, o ponto em que se produz a ruptura com o “desejo natural da criança”: na sala de aula, trata-se de passar do “desejo de saber” – desejo de eficácia no curto prazo, gui­ado pela preocupação de obter satisfação com o menor esforço possível – ao “desejo de aprender”, que exige dar-se tempo para explorar o desconhecido, que choca com a estranheza inevitável dos saberes novos, que aceita o es­forço sem a perspectiva de remuneração imediata…, a fim de aceder ao prazer – nunca de todo garantido quando nos lançamos nesta empresa – que procura a inteligibili­dade dos seres e das coisas. Trata-se, pois, de adiar a “ló­gica produtiva[5] para se confrontar com o gozo de pensar. E isto não tem nada de natural; pelo contrário, fazem falta conteúdos exigentes, situações estruturadas,… e a mediação de um professor que, pode dizer-se, faz falta à escola.



[1] A afirmação da “bondade natural” do homem” de Rousseau só é válida no “estado natural”, e esse “estado natural” não é uma etapa histórica determinada, mas uma hipótese filosófica que representa, de algum modo “o homem, abstracção feita de influências sociais nefastas que perturbam o seu desenvolvimento”. Assim concebida, a “bondade natural do homem” é uma espécie de “marca original” [independente do todo o “princípio” histórico] e inseparável, para Rousseau, do princípio de “perfectibilidade”, que podem alcançar os seres humanos mediante a educação. Rousseau não considera, com efeito, que “a criança seja boa”, mas que tem em si essa potencialidade e que graças à educação emancipadora, é possível, portanto, fazê-la aceder ao estado de sujeito, e permitir-lhe construir uma sociedade democrática no âmbito do contracto social.

[2] Na realidade, Neill recusa as análises de Freud sobre a agressividade e prefere, pelo contrário, as de Wilhelm Reich sobre o carácter decididamente positivo da “pulsão de vida”.

[3] Mais ainda: «As mudanças que Neill produz nos seus alunos, ao estarem assentes na identificação, só têm êxito com aqueles que podem identificar-se com ele. E muitos podem fazê-lo simplesmente, porque ele é o homem mais extraordinário que conhecem. Mas se um homem de menos estatura tentar aplicar a sua ingénua filosofia…  será o caos, porque o conceito que Neill tem de humanidade é incorrecto, mesmo quando esse conceito o inspira até ao ponto de fazê-lo alcançar coisas extraordinárias» [Bettelheim e outros, 1972: 90-91].

[4] Veja-se Menès (2012). A autora explica que, enquanto sujeito, a criança é movida por desejos, entre eles, o desejo de aprender. Os adultos podem alimentar esse desejo mediante um diálogo que inspire confiança ou facilitando a sua relação com o ambiente. Também podem “anestesiá-lo” não respondendo nunca a esse desejo ou bem, pelo contrário, esgotá-lo “sobrestimando-o” permanentemente.

[5] Demonstrei, em 2010, até que ponto a "lógica produtiva", dominante no campo económico e social, onde é legítima, sempre ameaçou a sala de aula e colocou muitos alunos em risco de serem marginalizados da aprendizagem [o que favorece apenas aqueles que são mais dedicados e que já conhecem a satisfação da aprendizagem]. Esta é a principal razão pela qual a escola não pode imitar "a oficina".

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