quarta-feira, 5 de outubro de 2022

As "Actividades de Enriquecimento Curricular" e a "balcanização" do 1º Ciclo, agora com o apoio das autarquias

Daniel Lousada

No texto «Da "Escola a Tempo Inteiro"...», publicado neste blog [LER>>], escrevi: «pessoas que nos habituamos a respeitar chegam a ministros ou presidentes de câmara e parecem perder a capacidade de pensar».

Hoje, ao ler o que o jornal local “O Gaiense” diz da posição do presidente Eduardo Vitor Rodrigues, sobre as "AEC" – Actividades de Enriquecimento Curricular – fica-me a convicção de que, se não perdeu a capacidade de pensar, perdeu certamente a vontade de fazê-lo, em matéria de educação.

«Não me vou incomodar com esta questão»  diz Vitor Rodrigues* – para de seguida acusar os professores de tentativa de contaminação dos pais, «apenas por terem de trabalhar mais duas horas, um dia por semana». Para o presidente do município de Vila Nova de Gaia como, no passado, para a ministra da educação Maria de Lurdes Rodrigues, os professores são os maus da fita, ao recusarem ver a "bondade" das propostas do seu executivo! Aligeirando a conversa, apetece dizer que é um nome, "contaminado", que a antiga ministra da educação partilha com Eduardo Vitor Rodrigues, a produzir os seus efeitos, no modo como este olha os professores!

O problema das "AEC", o seu pecado original, está na motivação que as fez nascer: manter os alunos à guarda das escolas, enquanto os pais trabalham. As actividades que oferecem para manter as crianças ocupadas, até poderiam ser de "enriquecimento" mas, integradas num modelo em tudo semelhante ao modelo escolar [incapaz de desviar as crianças da escola], são mais do mesmo que a escola já oferece**. E num modelo assim, os miúdos não têm o espaço, de que tanto precisam, para "descansar da escola". Depois, dificulta a vida das famílias que não precisam das "AEC" [que poderão ser uma minoria, admito], com alternativas eventualmente mais amigas dos seus filhos e que, com o modo como a autarquia pretende flexibilizar os horários do 1º Ciclo, ficam simplesmente sem alternativa, e o que é facultativo torna-se obrigatório. 

Não sei se o presidente Eduardo Vitor Rodrigues pensou em tudo isto! Fazendo fé nas declarações que prestou a "O Gaiense", talvez não: «No meu modelo de escola pública – diz – o modelo de flexibilização das "AEC" é um modelo integrante e devia acontecer todos os dias e não apenas uma vez por semana». Se bem citado pel' "O Gaiense", o que propõe para o 1º Ciclo [de acordo com a interpretação que faço das suas palavras], é o aprofundamento da sua "balcanização", ao defender, por esta via, a transformação de um currículo integrado, num currículo partido às fatias [com um professor para cada fatia], contribuindo, assim, para a descaracterização de um Ciclo de Ensino, que não pára de ser descaracterizado, e que tem no regime de mono-docência a sua mais valia. 

Ao lado de tudo isto, temos as vidas adiadas de quem faz das "AEC" ofício e que, através dele, desejam legitimamente chegar à profissão que escolheram. Vitor Rodrigues recorda-os quando, de acordo com "O Gaiense", diz que «os professores desta área vêem, desta forma, uma oportunidade de poderem ser colocados nos quadros». Pena que tenha apenas para lhes oferecer um trabalho precário e mal pago. Estou certo, que estes professores apreciariam ver o seu presidente de câmara a procurar, com o ministério da educação, uma saída profissional condigna, que poderia passar, por exemplo, pela sua colocação como professores coadjuvantes dos professores [generalistas] do 1º Ciclo***, para apoiá-los de acordo com as áreas que dominam, e como professores de ligação das escolas com as diferentes instituições e associações ligadas à cultura, desporto, etc., de forma a acompanhá-las num trabalho com as crianças, que não lhes dê mais escola.

Ao olhar a escola do lado de fora da escola, talvez algo me escape e esteja a ser injusto, admito. Mas o que vejo, em toda esta questão, é um confronto de interesses, onde o que menos interessa são os interesses das crianças.

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* Maria de Lurdes Rodrigues, antiga ministra da educação, a propósito a falta de professores, quando interrogada sobre como chegamos aqui, diz: «Eu não sei porque é que chegámos aqui assim. Não sei! Não quero saber! Se quer a minha opinião, não quero saber! [VER>>]. Eduardo Vitor Rodrigues diz apenas que não se vai incomodar com a questão das "AEC".

** Expressões dramática e musical, educação física e expressão plástica, são áreas que fazem parte do currículo do 1º Ciclo do Ensino Básico.

*** O professor coadjuvante não substitui o professor titular, partilha com este responsabilidades para as quais está especialmente preparado. O professor de educação especial, por exemplo, [nem sempre] presente nas salas de aula, que têm crianças com necessidades educativas especiais, coopera com o professor titular, para que estas crianças possam usufruir do maior número de interacções possível, com os seus colegas, susceptíveis de potenciar o seu desenvolvimento.   

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