sexta-feira, 28 de outubro de 2022

"RECOMEÇAR"

Hoje, por diversas razões, apeteceu-me retomar as minhas “escritas” que tinha interrompido por algum cansaço de cacofonias e a necessidade de controlar a impulsividade que sentia para comentar os “excessos” da (des)informação…

Tive a sorte de me “cruzar” com a excelente crónica de Tolentino Mendonça que a amiga Rosário Caldeira tão bem seleccionou e publicou na sua página de fa­ce­book. Repeti o título que é tão amplo e permito-me citar este trecho:

Há um dom naquelas estações em que a vida se re­solve transparente, se movimenta em harmonia e tudo habil­mente coincide.”

E é nessa harmonia que me quero inspirar para hoje re­cordar as mulheres “sem fotos” que preencheram a vida que corria na minha cidade. Lembro alguns ros­tos, alguns nomes mas sobretudo vidas de trabalho, cansaço e pouco rendimento mas que aliviavam as de alguns citadinos.

Neste cortejo de rostos, recordo as “lavadeiras”! que vi­nham de Alfaião, com os burros carregados de roupa la­vada com restos de cinzas e sabão feito, e que em casa bran­queavam ao sol. Um ritual de do­mingo, na casa da minha mãe, era receber a lava­deira, contar as peças da semana anterior e fazer a listagem das peças para lava­gem na se­mana se­guinte. Essa tarefa era minha desde que comecei a saber escrever. Lembro depois que a lava­deira almo­çava connosco, fruto daquela afabilidade apa­nágio da mi­nha mãe.

Recordo as leiteiras que bem cedo saiam dos seus lugarejos, ainda longe da cidade, e distribuíam o leite que inva­riavelmente era fervido antes de ser servido ao pe­queno-almoço de quem tinha o privilégio de o poder tomar com o pão fresco, que as padeiras colocavam, enquanto nascia o dia, nos sacos deixados na porta de entrada de alguns mais favorecidos.

Recordo as mulheres que carregavam as estevas que acen­diam os nossos fogões e as nossas braseiras, e com as quais se ou­sava discutir o preço do feixe das urzes; as mulheres, que iam ao mercado manhã cedo, esco­lhiam os dias da chegada do peixe mais fresco, trans­por­tavam na cabeça sacos carregados e que, com an­dares “acrobatas”, fizeram os seus estragos nas “pos­turas” que se materializaram nas artroses precoces.

Era um tempo de percursos feitos a pé ou de burro, sem “luzes”, só de alguma esperança, com neve, frio, chuva ou sol…por caminhos enviesados, em madru­gadas mal acor­dadas e regressos a casa com bolsos de dinheiros esmo­lados, porque todos discutiam pre­ços.

Não sei se se chamavam Marias, Aidas, Antónias ou Gui­lher­minas… Sei que eram mulheres de força, algumas viúvas de homens vivos, interessadas na educação dos seus fi­lhos e que foram envelhecendo em silên­cios nunca parti­lhados.

Não! Nesse tempo não era nada bom!
Hoje quero celebrar essas mulheres silenciosas, sem voz, só presentes quando se mostra um Portugal de miséria, e não deixar que as traições da memória ve­nham dizer: “nesse tempo é que era bom”!


Lembro, a propósito, uma homenagem feita recente­mente às carquejeiras que “invadiam a cidade do Porto”, até há 70 anos, e que um grupo de mulheres de boa von­tade teve o ensejo de lhe prestar home­nagem.

Quero voltar a minha Bragança, percorrer ruas e pra­ças e verificar se, em algum tempo e em algum lugar, vejo essas gloriosas anónimas serem relembradas com a força e o respeito que merecem. Estou farta de títulos e de conde­corações que hoje “te dou a ti” para tu, mais tarde, “dares a mim” ou a um dos meus…

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