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terça-feira, 3 de outubro de 2023

"DESCAMISADOS"


Não vou fazer história nem contar estórias sobre a vida de Eva Duarte de Perón, mas… sim, lembrei-me dela e da sua relação com os “descamisados”, na sua Argentina, e dos movimentos por justiça social 

Justiça social é o que falta neste mundo que desrespeitamos todos os dias. Numa população de cerca de 8,04 de bilhões de pessoas, mais de 780 milhões vivem abaixo do limiar da pobreza e 11% da população total vive em pobreza extrema, sem conseguir satisfazer necessidades básicas de alimen­tação, saúde, acesso a água e saneamento. *

Não vou fazer análise sócio-política sobre os dados que acabo de expor e que se encontram ao al­cance de quem os quiser consultar. Basta olharmos à nossa volta: as filas para aceder a uma re­feição diária, aos sem abrigo que estão nas ruas, defendendo-se do frio e dos ataques, nas estações de metro ou em qualquer pardieiro à espera que um qualquer cigarro, mal apagado, os faça desapa­recer.

A miséria encapotada é mais que muita: filhos que continuam em casa dos pais apesar de trabalha­rem e desejarem a sua independência, novas famílias que não se formam, “velhas famílias” que se aguentam na mesma casa apesar de já não terem nada em comum, filhos que não sabemos amar e educar, depositando na escola o que devia ser feito em casa. Sofremos pelos pais, pelos filhos e netos que não temos por perto. Despovoaram-se aldeias, onde só ficaram os “velhos”, abandonados e tris­tes, sem o poder reivindicativo de sindicatos que os defenda, num mundo de cada um por si.

Depois, porque não estamos bem, olhamos de “soslaio” e desconfiança todos aqueles que nos pro­curam, fugindo das guerras, da fome, da violência, e que, em vez da segurança que procuram, são acolhidos por gente que se aproveita da sua fragilidade, para os explorar sem qualquer escrúpulo. Já fomos de tudo: emigrantes e imigrados, refugiados e estrangeiros. E, apesar disso, sem querer entrar na verdade da nossa história, fica-me a sensação de que não conseguimos evitar que o nosso passado colonizador contamine as nossas acções.

Não, não “somos todos um só”. A proximidade cultural, que o processo de mundialização nos permi­tiu imaginar, está longe de se concretizar. Não basta dizer, como afirma o biólogo americano Alan Templeton, que não existem raças e que as diferenças genéticas entre as mais distintas etnias são insignificantes, que o conceito de raça não é biológico mas cultural.

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*10% da população mundial controla 76% de toda a riqueza deste planeta, 50% dos mais pobres vão sobrevivendo com 2%, nós “os médios”, temos que trabalhar muito e ter alguma sorte para usufruir dos 22% que restam...

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

O Perfume

Este título poderia sugerir falar do magnífico filme “
Perfume de Mulher” ou do romance “O perfume - História de um assassino”, de Patrick Suskind. A prosa poderia desenvolver-se sempre com agrado, pois uma e outra obra são interessantíssimas e apelam aos sentidos. E apenas porque envolve “aromas”, liga-se de certa forma a uma das histórias de vida que marcaram o meu percurso profissional e hoje recordo.

As missões que, por vezes, se pretende atribuir à escola, para além das que tradicionalmente o seu estatuto lhes reserva, são múltiplas e variadas. Algumas, dir-se-á, estão a léguas das suas funções. Não lhe cabe, diz-se também, resolver problemas que compete às instituições de apoio à família resolver. É verdade, não compete. Não é sua obrigação. A menos que, por força do trabalho que desenvolve, se sinta obrigada a resolver. A história que trago aqui hoje é um destes casos.

O Duarte era um jovem de 15 anos, fisicamente desenvolvido, pacato e com pouca iniciativa. Procurava o contacto dos adultos (funcionários ou professores), pois os colegas “dispensavam-no” dos seus grupos, e dos seus jogos e brincadeiras, dizendo que ele cheirava mal.

De facto, o Duarte apresentava roupas descuidadas, o que, combinado com a enurese nocturna de que sofria, resultava um cheiro pouco convidativo a aproximações. Dado o desinteresse e completo alheamento da mãe, procuramos resolver a situação da enurese junto do médico de família. Deste preocupante desinteresse, decorre a decisão do Duarte, de levar para a escola toda a medicação que controlava a epilepsia de que sofria, porque tinha receio que a irmã de 2 anos a pudesse ingerir.

Para resolver o problema da higiene foi-lhe permitido que tomasse banho todos os dias nos balneários do ginásio. Simultaneamente, foi organizada, junto aos balneários, uma zona de “perdidos e achados”, com 3 caixotes: um para calçado, outro para roupas interiores, e outro ainda para vestuário diverso. Os jovens que assim o entendessem podiam recorrer a estes caixotes, que toda a escola se preocupava em reforçar com doações.

Reunidas que estavam as condições, o Duarte começou a aparecer mais arranjado. Gostava que lhe dissessem isso e, um dia, por altura do Natal, uma “alma inspirada” deu-lhe um perfume que ele nunca mais largou. Deve ter sabido doseá-lo muito bem.

O perfume é sedução, é auto-estima, é afirmação. O Duarte, se não o sabia já, ficou a conhecer empiricamente esse efeito.

A verdade é que este conjunto de modificações trouxeram mais segurança à vida deste jovem. Se, com isto, não passou a ser o primeiro a ser chamado para os grupos, pelo menos deixou de ser repelido. O que para ele foi de grande significado.

A escola era o lugar securizante onde ele permanecia muito para além do tempo que lhe era exigido.

Foram tempos bons. Com mais calma. Com mais tempo para reflectir e menos daquela carga burocrática que apenas serve para alimentar estatísticas.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

"RECOMEÇAR"

Hoje, por diversas razões, apeteceu-me retomar as minhas “escritas” que tinha interrompido por algum cansaço de cacofonias e a necessidade de controlar a impulsividade que sentia para comentar os “excessos” da (des)informação…

Tive a sorte de me “cruzar” com a excelente crónica de Tolentino Mendonça que a amiga Rosário Caldeira tão bem seleccionou e publicou na sua página de fa­ce­book. Repeti o título que é tão amplo e permito-me citar este trecho:

Há um dom naquelas estações em que a vida se re­solve transparente, se movimenta em harmonia e tudo habil­mente coincide.”

E é nessa harmonia que me quero inspirar para hoje re­cordar as mulheres “sem fotos” que preencheram a vida que corria na minha cidade. Lembro alguns ros­tos, alguns nomes mas sobretudo vidas de trabalho, cansaço e pouco rendimento mas que aliviavam as de alguns citadinos.

Neste cortejo de rostos, recordo as “lavadeiras”! que vi­nham de Alfaião, com os burros carregados de roupa la­vada com restos de cinzas e sabão feito, e que em casa bran­queavam ao sol. Um ritual de do­mingo, na casa da minha mãe, era receber a lava­deira, contar as peças da semana anterior e fazer a listagem das peças para lava­gem na se­mana se­guinte. Essa tarefa era minha desde que comecei a saber escrever. Lembro depois que a lava­deira almo­çava connosco, fruto daquela afabilidade apa­nágio da mi­nha mãe.

Recordo as leiteiras que bem cedo saiam dos seus lugarejos, ainda longe da cidade, e distribuíam o leite que inva­riavelmente era fervido antes de ser servido ao pe­queno-almoço de quem tinha o privilégio de o poder tomar com o pão fresco, que as padeiras colocavam, enquanto nascia o dia, nos sacos deixados na porta de entrada de alguns mais favorecidos.

Recordo as mulheres que carregavam as estevas que acen­diam os nossos fogões e as nossas braseiras, e com as quais se ou­sava discutir o preço do feixe das urzes; as mulheres, que iam ao mercado manhã cedo, esco­lhiam os dias da chegada do peixe mais fresco, trans­por­tavam na cabeça sacos carregados e que, com an­dares “acrobatas”, fizeram os seus estragos nas “pos­turas” que se materializaram nas artroses precoces.

Era um tempo de percursos feitos a pé ou de burro, sem “luzes”, só de alguma esperança, com neve, frio, chuva ou sol…por caminhos enviesados, em madru­gadas mal acor­dadas e regressos a casa com bolsos de dinheiros esmo­lados, porque todos discutiam pre­ços.

Não sei se se chamavam Marias, Aidas, Antónias ou Gui­lher­minas… Sei que eram mulheres de força, algumas viúvas de homens vivos, interessadas na educação dos seus fi­lhos e que foram envelhecendo em silên­cios nunca parti­lhados.

Não! Nesse tempo não era nada bom!
Hoje quero celebrar essas mulheres silenciosas, sem voz, só presentes quando se mostra um Portugal de miséria, e não deixar que as traições da memória ve­nham dizer: “nesse tempo é que era bom”!


Lembro, a propósito, uma homenagem feita recente­mente às carquejeiras que “invadiam a cidade do Porto”, até há 70 anos, e que um grupo de mulheres de boa von­tade teve o ensejo de lhe prestar home­nagem.

Quero voltar a minha Bragança, percorrer ruas e pra­ças e verificar se, em algum tempo e em algum lugar, vejo essas gloriosas anónimas serem relembradas com a força e o respeito que merecem. Estou farta de títulos e de conde­corações que hoje “te dou a ti” para tu, mais tarde, “dares a mim” ou a um dos meus…

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Ainda a polémica sobre a disciplina de “ Educação para a Cidadania”

Maria dos Reis

Assisto perplexa ao tempo dedicado à polémica instalada num agrupamento de escolas de Vila Nova de Famalicão pelo facto de um encarregado de educação da cidade ter proibido os seus filhos de frequentarem a disciplina de Educação para a Cidadania, que faz parte do currículo da escolaridade onde se inserem e onde se matricularam, sabendo à partida que a mesma não era opcional. A Cidadania não é, não pode ser opcional. A Cidadania tornou-se práxis e tem crescido nos países desenvolvidos, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aditados pela ONU em 10 de Dezembro de 1948, que afirma que todos os homens são iguais perante a lei independentemente da cor, credo, etnia. Foi a luz ao fundo do túnel para acreditar numa melhoria de condições para o mundo em geral.

Entende-se assim por Cidadania o exercício e a prática dos direitos e deveres políticos e sociais estabelecidos na Constituição do país. Conhecer e por em prática esses direitos e deveres é uma responsabilidade colectiva. A Escola é parte integrante dessa colectividade. Tem como função desenvolver as potencialidades físicas, cognitivas e afectivas do indivíduo capacitando-o a tornar-se cidadão participativo.

A disciplina não tem programa, tem sim orientações curriculares que apontam para a abordagem de temáticas tais como: Ecologia – Defesa do Planeta - Voluntariado - Segurança - Paz - Literacia Financeira - Educação para a Saúde - Sexualidades e Igualdade de género. As temáticas são flexíveis. Não existe um manual específico. Compete a cada agrupamento organizar-se segundo os interesses dos alunos e dos encarregados de educação na medida em que as temáticas são abertas e, por norma, sugeridas pelos alunos. É assim que se passa nos meios que frequento, com o contacto que tenho com as escolas, professores e alunos. Agrada-me o facto de serem estas aulas espaços de partilha e discussão,

Por tudo isto é absurdo o “tempo de antena” que tem sido dado a um pai isolado. Representa-se a si próprio acompanhado por algumas entidades religiosas e referenciais políticos.
O programa sobre a polémica instalada e transformada em assunto nacional foi apresentado pela SIC no passado dia 21 no telejornal das 20h. Estiveram presentes os pais e os dois filhos envolvidos.
Ao assistir ao programa e depois de visioná-lo uma e outra vez foquei-me na arrogância de um “chefe da família” auto centrado que não soube alencar as razões da sua opção. Mostrou uma total antipatia por tudo que saía da sua zona de conforto. 

Vi-me a recuar no tempo e aos meus olhos “plantou-se” uma amostra de uma sociedade feudal dominada pela igreja e pelos donos dos feudos. Nesse tempo só havia “ensino doméstico” ou domesticado, “privilégio” de alguns e que ainda hoje é uma opção possível.
Desenvolvi uma agradável simpatia pelos filhos envolvidos numa polémica que não pediram. Destaco ainda a sua postura agradável e as palavras de agrado que dirigiram à escola na sua totalidade.

É de referir ainda o profissionalismo e independência da jornalista.

Nestas como noutras matérias seria importante ouvir a opinião dos alunos que são os sujeitos mais expostos.

Não pude dissociar desta polémica o papel das redes sociais a que cada vez mais crianças e jovens têm acesso sem qualquer tipo de controlo. Este problema deveria preocupar-nos bem mais.
Quanto ao caso que originou esta minha reflexão espero que seja resolvido por uma justiça independente.

A afirmação do encarregado de educação em causa de que “é a justiça que tem que descalçar a bota” - é de um profundo despudor.

Esquece-se aquele que é a Escola que se responsabiliza pelos alunos e por tudo que lhe acontece quando estão à sua guarda. É à Escola que pedimos responsabilidades quando algo de grave se passa com os nossos educandos durante o período em que lhos confiamos.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Há dia felizes

Maria dos Reis

[Aceder à versão em PDF >>>]

A Empatia também se ensina. Ensina-se pelo Exemplo

Sim… há dias felizes, sobretudo quando, em situações menos agradáveis, encontramos alguém que se coloca no nosso lugar e nos ajuda a resolver um problema. Aconteceu ontem, quando me preparava para entrar no cinema. Para tal era necessário apresentar o comprovativo da vacinação. Por qualquer razão, o meu certificado não estava a conseguir ser lido no telemóvel. Dada a exigência na entrado do espaço e perante a evidência de eu ter de abandonar o mesmo foi a funcionária de serviço que me ajudou a procurar outras alternativas. E conseguiu. Manifestava uma facilidade no manuseamento das tecnologias bem superior à minha – eu sou mais analógica –. A disponibilidade da funcionária e a sua empatia permitiram que a barreira fosse ultrapassada.

A propósito revisitei os “meus escritos” e reli um ensaio que tinha tentado sobre “empatia” – esta capacidade que algumas pessoas têm de se colocar no lugar do “outro” e experimentar, de forma objectiva e racional, viver a situação do seu semelhante. A empatia pressupõe altruísmo e capacidade de ajudar e não julgar. Pressupõe que nos descentremos dos nossos problemas para conseguir alargar o nosso foco de atenção. Pressupõe ultrapassar a barreira do egoísmo, do medo do desconhecido e do preconceito, relativamente ao que julgamos diferente.

Provavelmente, todos seríamos mais felizes se usássemos essa capacidade. Ela não é genética mas passível de aprendizagem. Sempre a partir do exemplo. Em primeiro lugar na família, quando possível… Na escola deveria ser sempre possível…. Não tem porque não ser.

Como diz a voz popular, a família não se escolhe. Quanto à escola, está muito nas mãos de quem a frequenta, nos seus diferentes papéis, desenvolver práticas em que a empatia seja práxis. Na Dinamarca a empatia ensina-se desde os primeiros anos na escola. Implementada como área obrigatória dos 6 aos 16 anos, com uma duração diária de uma hora, explora as vertentes da empatia afectiva, cognitiva e reguladora de emoções. Os responsáveis afirmam que esta prática ajuda os alunos a construir relacionamentos, evitar o assédio e obter sucesso.

Não podemos comparar-nos com a Dinamarca, não temos o seu capital económico, mas temos um capital humano infindável, temos um manancial de predicados – somos solidários, abertos ao mundo, transparentes, prestativo … –, que nos faz sobressair, em qualquer parte do mundo, e pelas melhores razões.

A forma como as escolas se podem organizar já aponta para a implementação de práticas diferenciadoras, a realizar através de projectos capazes de fazer a diferença, capazes [quem sabe!] de construir outros rankings, de inventar outros “quadros de honra, que evidenciem competências humanistas.

Assim, é urgente promover uma escola que se diz universal, obrigatória e gratuita, onde as aprendizagens sejam significativas, desenvolvidas através de práticas e processos de aprendizagem e formação cooperada, que desenvolvam a capacidade de reflexão e competências de comunicação, capazes de levar os alunos a assumir compromissos e práticas de entreajuda.

sábado, 23 de outubro de 2021

A solidão dos números primos

Maria dos Reis
[Aceder à versão em PDF >>>]

Paolo Giordano, autor do livro A solidão dos números primos, partindo do conceito de número primo, inerente­mente solitário – apenas divisível por si próprio ou por um –, desenvolve uma narrativa que nos fala da solidão, da necessidade de ser aceite, da culpa e da expiação.

Li o livro avidamente, revivendo histórias que foram passando na minha vida profissional e se encaixavam nos relatos explanados na obra.

Apropriei-me do título para reflectir sobre as notícias que invadiram os meios de comunicação, nos últimos dias, e que dizem o seguinte: “Mulher que afogou o filho autista condenada a 10 anos de prisão”.

“O Tribunal de Mirandela reconheceu que a arguida chegou a um estado de desgaste emocional e de desespero, agravado pela pandemia, e por isso condenou Fátima Martinho a uma pena bastante inferior ao limite da moldura penal”.

O tribunal defendeu que “falhou o Estado, a família e os vizinhos, nesta tragédia”.

A mulher com 53 anos, estaria sujeita a muito stress enquanto cuidadora do fi­lho portador de “um sín­drome de autismo grave”, o que lhe terá provocado um alegado es­tado de "burnout [exaustão emocional].

O acto, por si só arrepiante, leva-nos a pensar sobre o que levou uma mulher, que tratou do seu filho du­rante 17 longos anos – com uma patologia de autismo severo e epilepsia associada – a uma situação de desespero, que culminou na tragédia já am­pla­mente relatada.

Sim, estamos perante um caso de uma família mono­parental que foi esquecida.

Repito as palavras que o tribunal proferiu, para justi­ficar a sentença: “ … falhou o Estado, a família e os vizinhos nesta tragédia…” Sim, falhámos nós, en­quanto estado, porque não soubemos, em tempo útil, agir perante factos de que, tendo conheci­mento, fizemos de conta que não vimos.

*

“O conceito de Estado-nação refere-se à forma de organização dos governos dos Estados Modernos e às organizações sociais que se estabeleceram em torno deles.”

Pressupõe-se, então, que as organizações deverão corresponder às necessidades dos cidadãos.

Pelo que também li, e me provocou alguma perple­xidade, este jovem que vivia em Cabanelas-Mirandela, frequentava o agrupamento de Escolas de Vi­nhais. Estas localidades distam cerca de 50 Km, o que corresponde a uma hora de caminho. Um dia de es­cola pressupõe duas horas de transporte no mínimo. Todos os dias da semana.

Como será estabelecer contactos com as famílias?

Sabemos que o traba­lho com pais é funda­mental. E, quando diz respeito a crianças e jovens com Necessidades Educativas Especi­ais, é simplesmente in­dis­pensável. Os planos de intervenção deve­rão ter em conta as condições familiares e garantir a continui­dade das estratégias delineadas. Nos encontros com pais e/ou cuidadores, para além do reforço de êxitos consegui­dos [mesmo que simples], é suposto que se detec­tem sinais de desgaste, cansaço, desalento... É um trabalho que requer relações de proximidade.

Não é fácil a criação de ambientes para o atendi­mento dos casos mais difíceis numa comunidade educativa, mas é possível. Interessa é ponderar os prós e os contras de cada alternativa. 

A situação de pandemia trouxe transtorno a todos. Para os alunos “ditos normais”, houve a preocupação de responder com aulas online, de manter algu­mas cantinas em funcionamento, para garantir refei­ções a crianças e jovens que não tinham outra forma de se alimentar. E, para chegar aos idosos isolados [também eles um sector da população que exige uma atenção específica], criaram-se equipas itine­rantes.

Mas…, o que aconteceu aos alunos com Necessida­des Educativas Especiais? Como foram acompanhadas as suas famílias, que maioritariamente e tal como os números primos, não fazem parte de outros conjuntos? Quem tratou de combater o isolamento de cuidadores exaustos e isolados, a desenvolver es­tados de “burnout”?

Continuamos todos muito centrados no nosso “mun­dinho”.

Espero, tão só, que esta mulher, agora condenada, encontre dentro de uma “prisão” estatal, a paz que nunca teve na sua vida aprisionada, a partir do mo­mento que foi mãe e enfrentou sozinha uma maternidade tão sofrida.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Letras trocadas

Maria dos Reis
Hoje, nas minhas leituras matinais, apareceu-me este texto, [viral na internet em 2003, relacio­nado  com a plasticidade do cérebro no que diz respeito à captação de sentido da mensagem]:

O texto remete-me para uma preocupação que me acompanhou durante todo o meu percurso profissional: as dificuldades específicas de aprendizagem na leitura e na escrita. Estas dificuldades podem transformar a ida à escola de alguns alunos, num suplício, apesar destes poderem demonstrar capacidades extraordinárias noutras áreas de expressão [teatro, pintura, desenho, educação física, etc.].

O facto da escola estar demasiado centrada nas aprendizagens académicas, limita a implementação de estratégias motivacionais mais diversificadas que, aplicadas à população em foco, permitiria atingir os objectivos pretendidos mesmo em áreas consideradas basilares.

No início de um ano lectivo completamente atípico, tenho-me lembrado muito destes alunos. Se o confinamento foi péssimo por não permitir a interacção entre pares, alguns terão sentido um alívio por não se sujeitarem às leituras em público, nem à contagem dos seus erros por parte de quem corrige os seus trabalhos [e a maior parte das vezes não se coíbe de verbalizar a frase fatal: “és sempre o/a mesmo/a”].

Que valorizar afinal?

Se por um lado temos o dever de acompanhar todos os alunos por forma a alcançar os objectivos propostos para o seu nível de ensino, a forma como seleccionamos as estratégias para o conseguir, é, efectivamente, o que conta.

Entender estes alunos, fazê-los sentir-se úteis e especiais nas diferentes áreas de aprendizagem é já motivação para trabalhar as áreas comprometidas. Hoje importam-me pouco explicações, mais ou menos científicas, para o fenómeno. Hoje interessa-me realçar a importância do envolvimento no bem-estar psicológico do aluno e o reforço a dar às famílias.

Como o texto que apresentei demonstra, afinal compreendemos o sentido das palavras, apesar do posicionamento das letras trocado... Em primeiro lugar, o que conta é o sentido. Depois, há que trabalhar a correcção do texto, convocando a ajuda dos pares. Só aprendemos quando estamos disponíveis para o fazer e nos sentimos bem com isso. Com avanços e recuos, conseguiram-se percursos académicos felizes. Tudo é possível quando nos envolvemos positivamente na tarefa e temos vontade de nos superar.