Quanto ao resto, nada de extraordinário... um catecismo ideológico bem conhecido: as crianças são boas, devem ser deixadas a desenvolver-se longe de influências sociais perversas, imersas na natureza autêntica e com todas as oportunidades para estimular a sua inteligência. A ciência não se aprende na sala de aula, inventa-se em situações concretas que lhe dão sentido; o conhecimento não se transmite, impõe-se como uma necessidade para explicar o que vemos, compreender o que sentimos e dominar o que nos dizem.
Claro que sabes tudo isto perfeitamente e o que dizemos aqui deve parecer-te trivial. O que real-mente te perguntas é por que razão te interrogamos sobre a escola e os debates que a abalaram no final do século XX. É que há uma multidão inumerável de alunos, do jardim de infância ao ensino secundário, que poderíamos ter abordado sobre os efeitos da escola, na sua personalidade, no seu destino social, na sua visão da existência e da humanidade... Todos teriam sussurrado as suas esperanças de ver o mundo da escola tornar-se uma escola do mundo; ter-nos-iam confidenciado o seu desejo de um professor ideal que os ouvisse, os compreendesse e os arrebatasse com o seu entusiasmo; teriam também confessado a dificuldade de se emanciparem do professor admirado, de passarem sem ele, de o traírem para lhe serem fiéis. A submissão, a dependência, o sofrimento, a renúncia, o esforço, a vontade, o desejo, o interesse, a alegria, o tédio, a cólera, tudo isso teria, sem dúvida, vindo à tona com a complexidade da aprendizagem.
E, no entanto, não é a eles, que tinham tanto a dizer sobre a escola, que nos dirigimos, mas a ti, que nunca lá estiveste.... É que, olha só, tu és a figura emblemática da mais célebre das utopias educativas. E, numa altura em que a pedagogia é vista por alguns como o último perigo, uma ameaça para a cultura e até para a unidade da nação, sentimos que eras o mais indicado para nos ajudar a pensar. Há quase duzentos e cinquenta anos que andas a reflectir sobre isto, e é óbvio que tiveste muito tempo para pesar os prós e os contras.
É por isso que nos dirigimos a ti e não a Jean-Jacques. Jean-Jacques, nós conhecemos; temos todos os comentadores de que precisamos; todos os anos nos trazem a sua quota-parte de exegeses, cada um mais erudito do que o anterior. Mas tu és a voz muda neste caso. E nós, que falamos muito, estamos mais interessados nos mudos. É contigo que gostaríamos de perceber uma série de coisas. Porque todos os grandes princípios que hoje estão a ser contestados foram experimentados por ti ao longo dos anos. Sentes a pressão todos os dias, e até as mais pequenas consequências na tua cabeça e no teu corpo. Consideraste todas as objecções. Porque ninguém, mais do que tu, foi mergulhado numa situação educativa simultaneamente radical e coerente.
É por isso que gostaríamos que nos ajudasses a encontrar o caminho, através do emaranhado de discursos sobre a educação, no final do século XX. Gostaríamos que nos ajudasses a colocar as coisas em perspectiva, a seguir os truques totalitários e mistificadores dos pedagogos, mas também a salvar o que, nas suas propostas, permanece «incontornável», como se diz nas gazetas de hoje. Gostaríamos de ser impiedosos com todas as tentações simplificadoras e demagógicas, não tanto em nome de um rigor intelectual que cada um julga possuir sozinho, mas porque te amamos e aos teus semelhantes o suficiente para não corrermos o risco de te prejudicar. Sejamos claros: o nosso plano não é poupar-te a todos os problemas e sofrimentos, varrer o chão diante de ti como faziam os reis e os papas, mas queremos que nos ajudes a distinguir o que te engrandece do que te diminui, o que te torna um ser capaz de humanidade do que te condena à dependência ou à violência. Como podes ver, esta é uma tarefa difícil. Mas tu vais ajudar-nos.
Quando os políticos e aqueles que os comentam, pais e avós, fabricantes de livros didácticos e fazedores de histórias, ligas de verdadeiros estudiosos e sociedades que se acreditam estudiosas, pensadores da Sobornne e da televisão… quando todos, na realidade dizem tudo e qualquer coisa sobre a Escola e a pedagogia, pode ser útil invocar aquele que, aos nossos olhos, conhece melhor o problema. Quando falamos de educação, esquecendo que falamos de pedras vivas, realmente precisamos de alguém que conheça as coisas por dentro, alguém que se tenha dado a separar o essencial do acessório, alguém que nos ajude a alinhar o pêndulo com as horas.
Emílio, volta depressa, eles enlouqueceram… sem ti é provável que nos arrisquemos a ficar loucos também
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