terça-feira, 8 de outubro de 2024

Carta a Emílio [de Rousseau]


Há mais de dois séculos que nascestes da imaginação de Jean-Jacques Rousseau. Rapidamente te tornaste uma referência e, sem dúvida, continuas a sê-lo hoje para aqueles que, como nós, acreditam que a educa­ção é a grande obra dos homens. És uma referência e, no entanto, muito poucos se dão ao trabalho de ler a tua história. Citam-te, ignoram-te ou, na maior parte das vezes, agarram-se desesperadamente a al­gumas recordações escolares, como a gravura de um famoso livro de literatura, que te mostra a admi­rar uma paisagem alpina, na companhia de um jo­vem clérigo da Saboia. Para dizer a verdade, és agora pouco mais do que um nome, uma referência e uma reverência obrigatórias para os estudantes de letras ou de filosofia. E, quando tentamos traçar os contor­nos da tua imagem, parece que, na maior parte das vezes, dás a mão a um preceptor deseperadamente sério, um argumentador incansável, que aproveita o mais pequeno acontecimento para te dar uma lição, que nunca te concede um momento de lazer ou de desatenção que ele não tenha expressamente pre­visto.

Quanto ao resto, nada de extraordinário... um cate­cismo ideológico bem conhecido: as crianças são boas, devem ser deixadas a desenvolver-se longe de influências sociais perversas, imersas na natureza au­têntica e com todas as oportunidades para estimular a sua inteligência. A ciência não se aprende na sala de aula, inventa-se em situações concretas que lhe dão sentido; o conhecimento não se transmite, im­põe-se como uma necessidade para explicar o que vemos, compreender o que sentimos e dominar o que nos dizem.

Claro que sabes tudo isto perfeitamente e o que di­zemos aqui deve parecer-te trivial. O que real-mente te perguntas é por que razão te interrogamos sobre a escola e os debates que a abalaram no final do sé­culo XX. É que há uma multidão inumerável de alu­nos, do jardim de infância ao ensino secundário, que poderíamos ter abordado sobre os efeitos da escola, na sua personalidade, no seu destino social, na sua visão da existência e da humanidade... Todos teriam sussurrado as suas esperanças de ver o mundo da es­cola tornar-se uma es­cola do mundo; ter-nos-iam confidenciado o seu desejo de um pro­fessor ideal que os ou­visse, os compreen­desse e os arrebatasse com o seu entusiasmo; teriam também confes­sado a dificuldade de se emanciparem do pro­fessor admirado, de passarem sem ele, de o traírem para lhe serem fiéis. A submissão, a dependência, o sofrimento, a renún­cia, o esforço, a vontade, o desejo, o interesse, a ale­gria, o tédio, a cólera, tudo isso teria, sem dúvida, vindo à tona com a complexidade da aprendizagem.

E, no entanto, não é a eles, que tinham tanto a dizer sobre a escola, que nos dirigimos, mas a ti, que nunca lá estiveste.... É que, olha só, tu és a figura emblemá­tica da mais célebre das utopias educativas. E, numa altura em que a pedagogia é vista por alguns como o último perigo, uma ameaça para a cultura e até para a unidade da nação, sentimos que eras o mais indi­cado para nos ajudar a pensar. Há quase duzentos e cinquenta anos que andas a reflectir sobre isto, e é óbvio que tiveste muito tempo para pesar os prós e os contras.

É por isso que nos dirigimos a ti e não a Jean-Jacques. Jean-Jacques, nós conhecemos; temos todos os co­mentadores de que precisamos; todos os anos nos trazem a sua quota-parte de exegeses, cada um mais erudito do que o anterior. Mas tu és a voz muda neste caso. E nós, que falamos muito, estamos mais interessados nos mudos. É contigo que gostaríamos de perceber uma série de coisas. Porque todos os grandes princípios que hoje estão a ser contestados foram experimentados por ti ao longo dos anos. Sen­tes a pressão todos os dias, e até as mais pe­quenas consequências na tua cabeça e no teu corpo. Consi­deraste todas as objecções. Porque ninguém, mais do que tu, foi mergulhado numa situação edu­cativa simultaneamente radical e coerente.

É por isso que gostaríamos que nos ajudasses a en­contrar o caminho, através do emaranhado de dis­cursos sobre a educação, no final do século XX. Gos­taríamos que nos ajudasses a colocar as coisas em perspectiva, a seguir os truques totalitários e mistifi­cadores dos pedagogos, mas também a salvar o que, nas suas propostas, permanece «incontornável», como se diz nas gazetas de hoje. Gostaríamos de ser impiedosos com todas as tentações simplificadoras e demagógicas, não tanto em nome de um rigor inte­lectual que cada um julga possuir sozinho, mas por­que te amamos e aos teus semelhantes o suficiente para não corrermos o risco de te prejudicar. Sejamos claros: o nosso plano não é poupar-te a todos os pro­blemas e sofrimentos, var­rer o chão diante de ti como faziam os reis e os pa­pas, mas queremos que nos ajudes a distinguir o que te engrandece do que te diminui, o que te torna um ser capaz de humani­dade do que te condena à de­pendência ou à violên­cia. Como podes ver, esta é uma tarefa difícil. Mas tu vais ajudar-nos.

Quando os políticos e aqueles que os comentam, pais e avós, fabricantes de livros didácticos e fazedo­res de histórias, ligas de verdadeiros estudiosos e so­ciedades que se acreditam estudiosas, pensadores da Sobornne e da televisão… quando todos, na reali­dade dizem tudo e qualquer coisa sobre a Escola e a pedagogia, pode ser útil invocar aquele que, aos nos­sos olhos, conhece melhor o problema. Quando fa­la­mos de educação, esquecendo que falamos de pe­dras vivas, realmente precisamos de alguém que co­nheça as coisas por dentro, alguém que se tenha dado a separar o essencial do acessório, alguém que nos ajude a alinhar o pêndulo com as horas.

Emílio, volta depressa, eles enlouqueceram… sem ti é provável que nos arrisquemos a ficar loucos tam­bém

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