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segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Liberdade pedagógica: O bem-comum dos professores?*

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A diferença fundamental de cultura profissional entre as escolas do 1º. ciclo e secundárias raramente é tida em conta, se é que o é, na maior parte dos comentá­rios so­bre as escolas e sobre os «professores», inclu­indo os de académicos de renome ou de observado­res bem infor­mados (gestores ou activistas educati­vos, jornalistas es­pecializados, etc.). Não é identifi­cada como um ele­mento relevante de análise. É como se a cultura profis­sional do ensino secundário fosse a única que perme­asse todo o sistema escolar, ou pelo menos a única legí­tima, identificável, referencial. No inconsciente social, o professor típico é o professor (mono)disciplinar de uma escola secundária. Este modelo esmaga todas as outras realidades, mesmo que sejam consistentes, antigas e contínuas. A unifi­cação dos sistemas escolares, outrora institucional e socialmente segregados, teria de facto as­segurado o domínio da cultura de elite do antigo liceu napoleó­nico sobre o conjunto do sistema, impedindo a difu­são de uma cultura democrática partilhada entre os diferentes níveis.

Este tropismo do ensino secundário está, portanto, ex­tremamente enraizado em todos aqueles que tive­ram uma formação universitária ou superior, ao ponto de já não se aperceberem deste hiato ou de partilha­rem in­conscientemente a sua filosofia elitista. A fraca capaci­dade pedagógica dos académicos para fazer entrar os estudantes no ensino superior está bem do­cumentada, tal como a taxa de insucesso que carac­teriza os primei­ros anos da universidade em muitas disciplinas. Além disso, quando se sai do ensino supe­rior, a memória dos professores da escola primária já desapareceu há muito tempo, ao passo que o número de professores que se encontram no ensino secundá­rio e universitário é infini­tamente maior e as suas fi­guras mais proeminentes. Uma das excepções, que confirma a regra, é a famosa homenagem de Albert Camus ao seu professor primário, no discurso de acei­tação do Prémio Nobel da Literatura.

Outra explicação para o tropismo implícito do ensino se­cundário pode residir no desejo de não criar uma dife­rença corporativista entre os diferentes corpos docen­tes. Desde que os professores do ensino primá­rio se tor­naram professores (com a Lei da Educação de 1989**) e, portanto, professores de pleno direito, a crença na uni­dade da profissão docente, como hori­zonte de pro­gresso, faz parte do credo unitário, se não mesmo uma realidade objectiva. Sublinhar hoje o fosso entre as duas culturas profissionais correria o risco [...] de ser visto como o instigador irresponsável de uma divisão interna. [...] Esta cultura tende a opor-se a uma visão «liberal» da profissão docente [...]. A noção de «liberdade pedagó­gica» pode assim ser posta em causa sob o pretexto de que é brandida, por razões erradas, por professores «in­dividualistas» ou, como uma bandeira, por forças hostis ao serviço pú­blico de educação e à sua democratização.

De facto, existem várias utilizações enganadoras desta noção de liberdade pedagógica. Esporadica­mente, há professores que, argumentando que têm a «sua» liber­dade pedagógica, acreditam que podem isolar-se no seu antiquado magistério, recusando co­laborar com os seus colegas, ou a prestar contas de escolhas ou decisões ar­bitrárias que fazem. Depois, há o caso sistemático dos movimentos conservadores que se opõem sistematica­mente às reformas educati­vas democráticas e que acre­ditam poder esconder-se atrás da «sua» liberdade peda­gógica para legitimar a sua rejeição de medidas que con­tradizem as suas ori­entações retrógradas. Por fim, há os promotores de escolas não contratuais que, a pretexto de respeita­rem a «liberdade educativa das famílias», exi­gem que as suas escolas recebam o mesmo financia­mento pú­blico que as escolas públicas.

Estas utilizações do conceito são claramente erradas. No caso da profissão de professor, a noção de liber­dade pe­dagógica não pode justificar uma prática «so­litária» e «discricionária» (uma «prática liberal» no sentido nega­tivo). Esta visão é o oposto da sua defini­ção fundadora. Pelo contrário, a liberdade pedagó­gica só assume o seu sentido profissional no espaço colectivo do trabalho do­cente (entre colegas e de forma organizada) e na delibe­ração argumentada, sob o controlo a posteriori (reforço a posteriori) de superiores hierárquicos, dotados de competências neste domínio. Reduzir a liberdade peda­gógica ao exercício egocêntrico do trabalho docente é reduzi-la a uma caricatura. É o tipo de atalho utilizado por aqueles que afirmam que o «anarquismo» reina numa escola fragmentada por causa de professores «in­disciplinados». Isto enfraquece perigosamente o signi­fi­cado político e histórico da liberdade pedagó­gica, que é simplesmente outro nome para a autono­mia profissio­nal dos professores face a guardiões ide­ológicos (dentro ou fora da escola) que são portado­res de valores anti-democráticos.

A liberdade pedagógica deve, portanto, ser defendida como um bem-comum a todos os professores, inde­pen­dentemente do seu estatuto, do seu nível de en­sino ou do contexto em que trabalham: uma liber­dade republi­cana e liberal (no sentido positivo, dando poder de ac­ção em troca de compromisso) que liga a autonomia profissional dos professores à sua respon­sabilidade indi­vidual e colectiva de defender a equi­dade democrática contra todas as imposições autori­tárias e elitistas.

Analisando a questão da partilha de responsabilida­des entre os diferentes níveis da pirâmide institucio­nal, o psicólogo canadiano David R. Olson observava em 2003: «A preocupação com a eficiência escolar, que é uma pre­ocupação recente, conduziu a um grave choque entre os diferentes níveis de responsa­bilidade, recaindo a res­ponsabilidade final sobre os mais vulneráveis, o aluno e o professor, enquanto a responsabilidade dos níveis mais elevados do sistema educativo desaparece. Assim, os governos, em vez de se responsabilizarem por não se­rem capazes de pro­porcionar profissionais devidamente formados ou de garantir a satisfação no trabalho, essen­cial para redu­zir a rotatividade e a demissão do pessoal (que são fundamentais para o sucesso de uma escola), tendem a centrar-se exclusivamente no desempenho dos alu­nos e a atribuir prémios e sanções apenas a pro­fesso­res e alunos. Aproximar as avaliações, concen­trando-se apenas na última linha do balanço, o sucesso dos alunos, em vez de julgar separadamente a qualidade das diferentes componentes do sistema, conduz ob­via­mente a uma redistribuição de responsabilidades da pior maneira possível...».

Para este psicólogo, esta forma de avaliar a eficácia do sistema, através de um indicador pouco adaptado à es­fera de responsabilidade dos detentores do poder, per­mite-lhes evitar que sejam avaliadas as suas pró­prias competências, as de gerir eficazmente a afecta­ção dos recursos para dirigir e organizar o sistema es­colar da me­lhor forma possível. Ao concentrarem-se nos resultados dos alunos e dos professores, deixam na sombra os indi­cadores que avaliam o funciona­mento operacional da instituição, que não são leva­dos ao «debate público». Trata-se, portanto, de uma outra armadilha para os pro­fessores, que são respon­sabilizados por resultados e ob­jectivos quantificados, sem poderem realmente intervir nas condições que tornam esses resultados possíveis, sob o pretexto de que isso seria da responsabilidade ex­clusiva dos tec­nocratas superiores e da hierarquia...

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Versão portuguesa de «La liberté pédagogique peut-elle être le bien commun des enseignants?» In Vers une nouvelle guerre scolaire (capítulo 13), Paris, Éditions La Découverte, 2019.
** À semelhança do que se passou por cá, os franceses criaram uma carreira única. E com ela deixaram cair a palavra «instituteur» com que designavam os que, entre nós, designávamos de professores primários, para passar a designá-los por «professeur d’école».

domingo, 15 de dezembro de 2024

Pode a neuro-educação relegitimar a pedagogia?*

No mundo actual, que se diz «horizontal» e resistente à verticalidade hierárquica, em nome da democracia e da igualdade, a negação da dimensão pedagógica na relação de ensino, já não é sustentável, a não ser que se retome a retórica dos defensores da ordem antiga ou que se proceda abertamente à selecção dos alunos em fileiras estanques e hierárquicas, que é a agenda fundamental dos partidos de direita. É por isso que uma das formas de reintegrar esta dimensão pedagógica sem aludir às noções legadas pela história da pedagogia é recorrer à «ciência» e aos lugares-comuns pedagógicos da neuro-educação, como se fossem uma descoberta recente.

Quais são os contributos e os conceitos-chave da neuro-educação? […] Os seus credos didácticos limitam-se, de facto, às primeiras aprendizagens, cuja actividade neuronal é acompanhada e cujas funções são decifradas: a linguagem oral, a leitura e a escrita, o cálculo e a aritmética são os principais alvos da prescrição «neuro». As aquisições mais complexas, características da escolaridade posterior, já não são objecto de uma prescrição pedagógica detalhada, porque permanecem misteriosas para a investigação neurocognitiva. É a constatação de Stanislas Dehaene: «Não compreendemos [...] como [as mudanças nos neurónios e no seu ambiente] implementam as aprendizagens mais elaboradas, baseadas na “linguagem do pensamento”, a combinação de conceitos específicos da espécie humana. [...] Não existe um modelo realmente satisfatório das redes neuronais subjacentes à aquisição da linguagem ou das regras matemáticas. Passar da sinapse às regras simbólicas que aprendemos nas aulas de matemática continua a ser, atualmente, um desafio». É por isso que, para o resto da escola do 1º. ciclo, a partir do 2º ou 3º ano, as prescrições «neuro» continuam a ser muito gerais e não vão ao cerne dos conteúdos e das tarefas escolares reais.

Em que consistem estas prescrições? Dizem respeito ao controlo da atenção, da memorização, da automatização, do raciocínio, do empenho activo e, paralelamente, à condução de comportamentos favoráveis à aprendizagem: o sono, a actividade física e artística do corpo. Todas estas áreas são, precisamente, as trabalhadas pela pedagogia desde as suas origens, até à «psicopedagogia», uma vez que se baseia nos resultados da psicologia do desenvolvimento desde o final do século XIX e da psicologia cognitiva no século passado. Para o comprovar, basta consultar a volumosa literatura de investigação sobre as formas de raciocínio (indutivo, dedutivo, abdutivo, etc.), sobre a docimologia, que estuda as diferentes formas de avaliação das aprendizagens (sumativa, formativa, portefólio, etc.), sobre as investigações relativas aos mecanismos de com-preensão, abstracção e conceptualização em geral, ou em didática nas diferentes disciplinas (ciências, matemática, francês, educação física, etc.). Alguns investigadores esforçaram-se por obter modelos úteis para a reflexão e a prática pedagógica.

A neuro-educação revisita assim, à sua maneira, aquilo a que poderíamos chamar, sem ironia, os lugares-comuns da pedagogia. É certamente preferível que assim seja, mesmo que se deseje que os trabalhos pioneiros e as tendências de investigação não sejam ignorados, dando a aparência de um grande zapping (a neuro-educação a substituir a referência à pedagogia) ou de uma redescoberta. Se esta reapropriação «neuro», feita às escondidas, permite aos professores do ensino secundário manterem-se aparentemente fiéis a uma certa postura «erudita» ou «científica» dominante, adoptando na realidade uma postura mediadora e não transmissora, será que este ardil assegura um ganho pedagógico para os alunos?

A procura de uma maior eficácia pedagógica sob a bandeira «neuro» não deve impedir-nos de nos interrogarmos também sobre o sentido e os valores que rodeiam o acto de ensinar (aquilo a que os filósofos da educação chamam a dimensão axiológica). Os movimentos educativos, as associações de especialistas, os sindicatos e todos os actores colectivos, têm um papel importante a desempenhar, para que os fundamentos políticos e éticos da profissão permaneçam vivos na prática quotidiana e não sejam submergidos por questões técnicas ou «burocráticas».

Qualquer mudança de comportamento profissional requer um quadro de referência intelectual e uma instância de legitimação. No século passado, o movimento da «Educação Nova» procurou um quadro de referência na psicologia e uma legitimação filosófico-política na educabilidade e na democracia. Hoje em dia, os professores que querem distanciar-se das posturas demasiado magistrais herdadas do passado e dos juízos essencialistas sobre os alunos (preconceitos sobre a «inteligência» e os «dons») podem encontrar na neuro-educação um quadro de referência e uma fonte de legitimação. [...] A pretensa cientificidade da neuro-educação pode ser suficiente para legitimar o desejo de mudança. No entanto, embora o quadro de referência seja útil e benéfico, a autoridade legitimadora é potencialmente mistificadora. Porque o ensino não é uma ciência: é um trabalho social e civilizacional, que deve ser desenvolvido e reflectido como tal, e que não pode escapar a posicionamentos filosóficos e políticos. A escolha é entre dois termos opostos: elitista ou democrático.
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*Philippe Champy, in capítulo 13,Vers une nouvelle guerre Scolare, Paris, Éditions La Découverte, 2019