quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Escola Inclusiva: uma questão de ponto de vista.

«Ponto de vista é uma vista a partir de um ponto», diz Leonardo Boff. Quer dizer: a vista que se avista não é indiferente ao ponto a partir do qual é vista».

Penso numa escola com todos e para todos e, ao pensá-la, penso numa escola que não sei. Se soubesse, por que haveria de pensá-la? Quer dizer, se eu soubesse limitava-me a construí-la, não a pensá-la. Acontece que ao pensá-la possível é um passo que dou na sua direcção, mesmo desconfiando que não haverá passo que chegue para chegar até ela. Alguns dirão que pensar a escola desta forma assemelha-se a um confronto com a utopia. E assemelha-se de facto, mas nem por isso ela é menos real. Porque, contrariamente ao que se diz por aí, a utopia existe mesmo!

Quando Thomás More baptizou a sua ilha com o nome de Utopia [palavra inventada a partir dos elementos gregos «U», «não», e «tópos», «lugar»], não fez mais do que dizer que ela era um «não-lugar»[1] .E, como «não-lugar» [que não significa, necessariamente, ser irreal], a utopia carrega em si a possibilidade da sua existência: é tão real como aquele lugar onde o céu toca a terra.

O quê, o céu não toca a terra? Claro que toca! O horizonte está mesmo ali a dizer-me que sim. Não posso chegar até ele, é certo, porque, como «não-lugar» que é, não posso habitá-lo – como diria Eduardo Galeano, se dou dois passos na sua direcção ele logo se afasta outros tantos de mim.[2] Então, não podendo alcançar o horizonte caminhando até ele, só me resta encontrar forma de o trazer até mim. Como? Vergílio Ferreira, no seu «Pensar», aponta uma resposta:

O horizonte varia consoante a altura que temos. Só não varia nunca o ser variável, enquanto horizonte que é, ainda que por absurdo se atinja. Porque não é nunca o horizonte que nos fascina mas a distância a que ele está.

A conclusão parece-me óbvia: tratando-se de chegar ao horizonte, o segredo está em descobrir maneira de encurtar a distância que, está visto, não acontece se eu caminhar na sua direcção. Fica-me então, apenas, a possibilidade de trabalhar naquela distância que fascina [como sugere Vergílio Ferreira], mexendo na altura em que se encontra o meu olhar. Quer dizer, se encostar o olhar junto ao chão, com o meu ponto de vista e o horizonte alinhados no mesmo nível, o horizonte aproxima-se de mim; e chega mesmo a parecer, ao estender o braço, que até posso tocá-lo com a mão! Inversamente, se subo a montanha mais alta para vê-lo melhor, o que consigo é aumentar a distância que me separa dele.

Tudo isto para dizer, que todas as grandes conquistas da humanidade só foram possíveis porque alguém as pensou utopicamente, não como coisa irreal, mas acreditando sempre na possibilidade da sua construção, passo a passo... A maior das conquistas, iniciada há séculos, continua por cumprir, e nem por isso desacreditamos da sua possibilidade e urgência: que maior utopia do que a democracia, e tão teimosa e utopicamente perseguida por tantos, que dão a vida por ela, e que tão obstinadamente a vivem? Tal como uma sociedade democrática se constrói nos diferentes espaços, que continuamente inventamos, e nos quais a cidadania se cumpre, uma escola inclusiva faz-se, em cada sala de aula, do conjunto de gestos que mobiliza as pessoas com objectivos comuns, o principal dos quais só pode ser não deixar que alguma criança ou jovem possa ser excluído. É a partir da sala de aula que a escola inclusiva se constrói – o que mais perto está de nós, afinal.[3]

Continuando com Vergílio Ferreira, «A história do homem é a das suas utopias. Mas é decerto também a do que nelas se conquistou. Somente a utopia não pretende realizar-se, como o desejo que se cumpre não esgota o desejar (...). Que se imagine uma vida em que se realizasse tudo o que se desejasse. Alguma coisa faltaria ainda em tudo em que já não faltava, e não saberíamos o quê. É isso que não sabes que é o fundamental».

A Escola Inclusiva é utopia? Claro que é! Será sempre construção por acabar! Mas dizer de uma construção que ela será sempre uma construção inacabada, é uma coisa; outra bem diferente seria dizer que ela é irreal, sem futuro como construção, como dado de cultura.

Escola Inclusiva: uma construção que, para ser construída, para ficar ao alcance da mão, precisa apenas de um certo «ponto de vista», afinal!



[1] Mário CORTELLA, discorda desta leitura, defendendo que «U» em grego clássico não é negação para lugar. Negação para lugar é «A». Então, se Thomás More quisesse dizer um «não-lugar» ou «lugar-nenhum» teria colocado «A» antes de «tópos». Para Cortella «utopia» quer dizer «ainda não».

[2] Para que serve o horizonte, não podendo ser alcançado? Serve para caminhar.

Numa carta de Antero de Quental, a António de Azevedo Castelo Branco, encontro um desabafo que o coloca próximo deste sentido de utopia, se bem que a utopia não seja o contexto do que escreve: «Os nossos ideais – escreveu então Antero – tinham efectivamente uma parte de verdade: mas não é como nós julgávamos para se realizarem na vida prática. Servem para levantar os espíritos à altura dum critério superior ao mundo visível». Colocam o nosso olhar no horizonte, apetece dizer.

[3] Nada posso fazer para acabar com a fome no mundo. Mas alguma posso fazer para acabar com ela no meu prédio, no meu bairro, na minha rua...

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