Versão portuguesa de
Daniel Lousada [
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Reproduz-se aqui, o conteúdo dos Capítulos 1, 2 e 4, da Segunda Parte do Livro: «La Riposte. Pour en finir avec Les miroirs aux alouettes», Autrement, Paris, 2018.
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«O homem é a única criatura que precisa de ser educada», afirmava Immanuel Kant [1]. Porque chega a este mundo inacabado e tem que aprender tudo daqueles que o precederam. Portanto, a transmissão é um imperativo. Não transmitir ao recém-chegado entre os homens os meios necessários para sobreviver, compreender, prolongar e renovar o mundo, seria, como sublinhava Hannah Arendt, uma renúncia inaceitável [2].
Acontece que, quando se inscreve numa relação educativa, a transmissão converte-se numa transacção: para que o outro receba o que se lhe oferece é necessário que o incorpore e que, mediante um metabolismo singular, se construa a si mesmo nessa operação. Um aluno não voltará a ser o mesmo depois desta aprendizagem (mesmo que esqueça um conteúdo) e as noções que adquiriu deixaram nele a sua impressão.
Os conhecimentos, uma vez que se transmitem entre seres humanos, são indissociáveis da relação que permite a sua transmissão. Digamos que, num primeiro momento, podemos chamar a esta transacção pedagogia. Deste ponto de vista, a pedagogia não é, contrariamente à representação que habitualmente damos como certa, um simples veiculo, que transportaria o conhecimento de um individuo até ao outro; ela é o que une dois sujeitos a um objecto numa configuração singular, que determina largamente o uso, em si mesmo, do conhecimento. Porque um veículo pode ser mais ou menos rápido e potente, pode conter mais ou menos objectos e ser mais ou menos atractivo, mas o que é transportado é indiferente ao veículo, não mudando nem a natureza dos objectos transportados, nem a forma como se enviam ou recebem. Mas, em matéria de transmissão de conhecimentos, as modalidades da transacção mudam tudo. Todos o experimentámos já, e os alunos vivem-no diariamente.
Se a transacção assenta numa ameaça (uma sanção ou privação de afecto) o metabolismo da aprendizagem não produz conhecimentos «objectivos» novos, mas apenas um conhecimento que se inscreve numa relação de submissão, um conhecimento que coloca a criança numa relação de obediência ao outro, que só será mobilizado, com facilidade, perante uma nova ameaça. Do mesmo modo, se a transacção assenta na identificação com o outro, ou na sedução, há a forte probabilidade da mesma criança se apropriar do conhecimento, numa relação de dependência face à imagem idealizada que tem do transmissor. Supondo que o dito transmissor, por uma ou outra razão, venha a decepcioná-la, o que foi transmitido poderá ficar comprometido.
Pelo contrário, se a transacção se constrói a partir de um questionamento partilhado e uma descoberta formalizada, o conhecimento poderá ser metabolizado como objectivado: quem aprende será, ao mesmo tempo, mais sábio e mais autónomo: mais autónomo porque mais sábio e mais sábio porque mais autónomo. Com efeito, a autonomia não é uma capacidade «abstracta», independente dos conhecimentos adquiridos; constrói-se através de e com os conhecimentos, sempre que estes sejam transmitidos numa transacção emancipadora, que responda aos problemas que o professor soube partilhar, e a partir dos quais colocou recursos, explicações, obras à disposição do sujeito.
Assim, qualquer que seja a actividade de transmissão – seja familiar ou escolar, se desenvolva num clube ou num museu, diante de um computador, de um espectáculo ou de um livro – ela comporta uma dimensão propriamente pedagógica, que é preciso identificar e cujos desafios e efeitos devem ser analisados. Na sala de aula, o mais pequeno gesto tem, em si mesmo, um alcance educativo, diz algo do que se constrói enquanto relação com o saber e, num sentido mais amplo, do que se perfila como tipo de ser humano e de sociedade.
O filósofo Henri Bergson – que não podemos chamar, de ânimo leve, de «pedagogista» – explicava com prazer, a importância que atribuía à forma de corrigir testes: começava sempre pelas notas piores e tinha o cuidado de comentar cada teste, destacando os seus aspectos positivos; depois, à medida que as notas iam melhorando, começava com as críticas, até chegar às melhores dos quais destacava os erros mais graves. O aluno que falhava na sua dissertação, não ficava tão desanimado, uma vez que tinha visto reconhecido o que tinha feito bem, enquanto que aquele que tinha tido boa nota, via as suas insuficiências como algo a melhorar. Desta forma, tanto um como o outro encontravam-se em condições de progredir: o primeiro apoiado nos seus pontos fortes, o segundo desafiado a trabalhar as suas imperfeições.
Este episódio, um pouco antigo, tem o mérito de realçar que nada no acto de ensinar é independente de um projecto pedagógico explícito ou implícito. Não há transmissão pura, nem aula, em que os conhecimentos circulem numa relação ética consistente, que não antecipe o futuro nem prefigure o mundo. Ninguém pode negar, como a própria Hannah Arendt defendia, a necessidade de «transmitir o mundo». Isto implica, evidentemente, questionar conteúdos e métodos. Mas responder a perguntas como «o que ensinar?» e «como?», não nos dispensa de fazer a pergunta fundadora: que futuro construímos para os nossos filhos, através da forma como vivemos com eles o acto de transmissão, em si mesmo? Neste sentido, não seria rigoroso dizer de um professor que «ele não tem pedagogia». Há sempre uma pedagogia mesmo que pareça discutível, irresponsável, ineficaz ou que a rotulemos de tradicional, mas que é preciso olhar de perto, se queremos tentar compreender o que se joga na sala de aula.
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Por conseguinte, a pedagogia está presente em toda a transmissão, mesmo coextensiva com esta última: a forma como os adultos organizam, vivem e usam as instituições educativas, para garantir o vínculo entre gerações, remete-nos sempre para escolhas as quais, evidentemente, temos todo o interesse em encarar de frente, para aprofundá-las e compreender o que está em jogo, assumi-las ou recusá-las.
«Obedecemos sempre a uma teoria, mesmo aqueles que se queixam de teorias. Quem não tem uma de qualidade, reconhecida, apoiada em estudos, segue talvez, sem o saber, uma pouco credível, que, não sendo objecto de reflexão ou crítica, não é sequer necessário concordar com ela mesma», escrevia já Henri Marion no seu Dictionnaire de pédagogie et d’instruction primaire,.. [3]
Mas se bem que haja sempre pedagogia na transmissão, é sempre de uma pedagogia que se trata. Por vezes esta pedagogia leva-nos a uma doutrina bem identificada, permitindo-nos falar de «pedagogia socrática», «pedagogia Freinet», «pedagogia Montessori» ou, mesmo, «pedagogia institucional». Outras vezes, trata-se de um conjunto de convicções e práticas mais ou menos precisas, que derivam quer de uma tradição («como a aula dialogada») quer de uma inovação da moda («como a aula invertida»), com frequência, uma e outra tão pouco analisadas e questionadas.
Pessoalmente creio que a compreensão, por parte dos actores sociais, do que «fabricam» diariamente, constitui um incentivo decisivo para avançar, ao mesmo tempo, até um maior profissionalismo e exercício da cidadania. Assim, é melhor que vejamos o que está em jogo e que, desta forma, possamos contribuir para inscrever a sua actividade no debate democrático, necessário à construção do bem comum. No entanto, não deixo de ter em conta os riscos que correm os profissionais, quando se aventuram por este caminho, porque a instituição prefere, com frequência, os executores que se colocam ao serviço da «máquina», aos que teimam em querer colocar a máquina ao serviço dos seres humanos. Desta forma proletarizamo-nos, no sentido estrito da palavra: tal como a máquina obrigava, durante a revolução industrial, a trabalhar por turnos, com o objectivo de rentabilizar o investimento, a «máquina-escola» exige, hoje em dia, que se sirva escrupulosamente os seus objectivos, utilizando sistematicamente os métodos científicos e preenchendo meticulosamente as suas tabelas de Excel.
Digamo-lo claramente: a falta de cultura pedagógica dos nossos responsáveis institucionais, a ignorância da história das doutrinas educativas, por uma boa parte dos professores, o retrocesso ou mesmo o desaparecimento total da reflexão pedagógica da formação inicial e contínua dos professores, permitiu que a «máquina-escola» imponha, no seu conjunto, procedimentos cada vez mais estandardizados, em nome da sujeição aos resultados, da lealdade institucional e da verdade científica. As classificações internacionais ditam a sua lei de ferro: a escola deve preparar os alunos para que estes estejam conforme as classificações que estes testes apontam; e os professores estão acima de tudo ao serviço deste objectivo. A evidence-based policy não se discute.
Ora, justamente, numa democracia, se há algo que é preciso fazer com a educação e a pedagogia é discuti-las. São por excelência objectos de discussão, já que determinam, e muito, o nosso futuro. São objectos políticos no sentido mais nobre do termo. No entanto, para discutir pedagogia falta ainda compreender como se constroem os seus discursos e os seus modelos. Pois bem, quando analisamos, com um pouco de rigor, a história das doutrinas pedagógicas, vemos que, de Jean-Baptiste de la Salle, inventor das classes homogéneas e do modelo simultâneo, a Carl Rogers, promotor de um ensino não directivo, assente nos princípios da psicologia de Lewin, passando por Makarenko, que depois da revolução bolchevique instituiu na colónia Gorki, um sistema de socialização assente na rotação sistemática de tarefas e funções, ou por último Claparède, fundador do Institut Jean-Jacques Rousseau de Genebra e autor em 1921 de L’École sur mesure, todos os sistemas pedagógicos articulam, sistematicamente, três elementos: por um lado, as finalidades teológicas, filosóficas ou políticas; por outro, os conhecimentos disponíveis sobre a criança e seu desenvolvimento, sobre as aprendizagens e sobre as condições de socialização; e por último, as propostas práticas, institucionais ou instrumentais.
O que complica as coisas é que estes três elementos são, ao mesmo tempo, absolutamente necessários e totalmente heterogéneos entre si. Sempre educamos para alguma coisa, apoiando-nos nos conhecimentos que permitem ter controlo sobre o real, em instituições e com técnicas capazes de dar as mãos ao seu projecto, como dizia Pestalozzi, que durante toda a sua vida procurou encarnar, com o seu método, a filosofia do seu mestre Jean-Jacques Rousseau. Não obstante, se bem que estes três elementos devam constituir uma configuração coerente, pertencem a registos distintos, que dispõem de sistemas de legitimação radicalmente diferentes: as finalidades remetem-nos para uma reflexão sobre os valores, sobre os conhecimentos e dados estabilizados pela investigação e as práticas para uma criatividade instrumental. Devemos, portanto, sobre todas as propostas pedagógicas, perguntarmo-nos, ao mesmo tempo, sobre a sua coerência interna e sobre a validade dos elementos que configuram de forma original.
Vimos, então, que o que constitui a identidade de uma pedagogia são as três áreas que articula – finalidades, conhecimentos e ferramentas –, assim como a forma de que se serve para se apresentar como projecto coerente e convincente. No entanto, às vezes, as propostas que nos chegam, e que se consideram pedagógicas, escondem ou afastam uma destas três dimensões, caindo em desvios perigosos.
De facto, existem «pedagogias» que se limitam a justapor finalidades e práticas sem estudar, aplicando os conhecimentos de que já dispomos, se as suas práticas são as adequadas para atingir as suas finalidades.
Queremos, por exemplo, formar para a solidariedade e fraternidade (finalidades importantes) através da colaboração. Para isso, recorremos ao trabalho de grupo e à elaboração de projectos colectivos, organizamos viagens de estudo, criamos uma página web, praticamos teatro e jogos colectivos, e até promovemos comunidades de crianças em autogestão. Mas estamos realmente seguros, de que estas actividades promovem uma autêntica colaboração? De facto, a psicologia ensina-nos que para que todos contribuamos para o progresso colectivo, é preciso que o grupo possua uma rede de comunicação «homogénea», que cada um tenha algo a trazer aos demais e que o trabalho colectivo não se possa realizar sem a implicação de todos; que o funcionamento do grupo tenha sido desenhado de forma a que ninguém possa assumir o poder indevidamente, e que ninguém fique afastado ou encerrado num papel secundário de autómato. A generosidade das intenções não garante, por si só, a eficácia do dispositivo; é preciso que este seja concebido e regulado, em função do que sabemos sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente, das interacções entre pares, da relação entre os objectivos de aprendizagem de cada um e a tarefa a realizar por todos. [4]
E o que se aplica ao trabalho de grupo também se aplica às aulas magistrais, a que tantos se opõem. Sabemos que, no que respeita às finalidades, estão largamente justificadas pela vontade de uma confrontação directa e formadora entre os conhecimentos do professor, que se expõe, e a inteligência dos alunos que os recebem. Este encontro de mentes suscitaria uma dialéctica fecunda, entre o explicar e o compreender, capaz de transmitir, a todos, a cultura mais exigente. Longe de mim recusar a possibilidade e a fecundidade deste projecto, bem pelo contrário: parece-me especialmente importante e nenhuma sociedade pode dar-se ao luxo de prescindir desta forma de transmissão. Resta a questão, com frequência ignorada, das condições da sua eficácia. Podemos ignorar o que nos disse a psicologia, sobre as condições de uma autêntica contribuição externa? Para que um discurso me toque, para que possa analisá-lo e relacioná-lo com as minhas crenças e os meus conhecimentos prévios, para que possa ir acima do que já sei e do que sou, é necessário que possa relacionar-me com ele e, portanto, que ele se agarre a alguma parte do que sinto e penso, num dado momento do meu desenvolvimento. Além do mais, não podemos ignorar os contributos das investigações sobre as diferenças linguísticas, sociais e culturais, que condicionam fortemente a comunicação, da mesma forma que não podemos subestimar o carácter selectivo do implícito no discurso e das expectativas em matéria de comportamento, que só os iniciados conseguem captar. A «profissão de aluno» requer competências que não se adquirem em todas as famílias: aborrecer-se educadamente, fazer perguntas correctas no momento adequado, aquiescer, silenciosamente, quando for preciso, e tomar a palavra para se valorizar oportunamente…
Mas se o perigo da articular finalidades e práticas, sem se dar ao trabalho de apoiar rigorosamente esta articulação, ameaça a pedagogia, esta última também pode ficar presa numa relação entre finalidades políticas e conhecimentos científicos, que deixam o docente totalmente desprotegido.
Sabemos bem, por exemplo, desta aliança entre, por um lado, um radicalismo ideológico que transforma a luta contra as desigualdades de acesso ao conhecimento, num princípio absoluto e, por outro, a busca sistemática, em todas as áreas, de todas as manifestações possíveis destas desigualdades. Em nome de uma solidariedade legítima com as classes populares, procuramos por todo o lado, graças à «sociologia crítica», o factor, por mínimo que seja, que possa aumentar ou deixar que perdure a injustiça; podemos identificá-lo na economia, na organização escolar, nos estereótipos transmitidos por programas e manuais, e, claro, nas próprias práticas pedagógicas, elas mesmas, suspeitas de falta de lucidez, neste domínio. E com razão, evidentemente. Nunca se é suficientemente lúcido, em tudo o que constitui um entrave ao primeiro dos direitos da criança: o direito à educação. Bourdieu – ou mais precisamente uma interpretação «bourdieusarde» de Bourdieu – desenvolve, com enorme eficácia, uma retórica de denúncia, assente em estatísticas implacáveis ou terríveis estudos de caso. O perigo está, então, em conjugar radicalismo com impotência: «Não mudar nada antes de tudo mudar», denunciava já nos anos 60, o discípulo de Freinet e fundador da «pedagogia institucional» Fernand Oury. Porque, instalar-se na postura de revolucionário conservador, é definitivamente bastante cómodo. Queremos uma «mudança de lógica» da sociedade e da instituição escolar. Exigimos «meios que rompam radicalmente com a política de austeridade e que permitam o desenvolvimento do serviço à altura das ambições da república». Negamo-nos a «inclinarmo-nos ante os ditames tecnocráticos de uma administração totalmente convertida às virtudes do neoliberalismo». E não temos a mínima tolerância com aqueles que procuram, todos os dias, criar alguns espaços de emancipação possível. A doutrina não tem apelo: entre a ilusão e a válvula de segurança, os militantes pedagógicos não fazem mais do que reforçar um sistema que precisa, pelo contrário, ser combatido passo a passo.
E aqui estão os profissionais esmagados entre finalidades, tão generosas como gerais, e conhecimentos científicos, tão indiscutíveis como implacáveis. Por último restam aqueles que afastando toda a reflexão sobre as finalidades fingem poder basear as práticas pedagógicas somente em dados científicos.
O cientificismo, essa velha ilusão… mesmo que acreditemos estar na vanguarda da modernidade. A crença naïf na omnipotência da ciência tem as suas origens nas fantasias mais arcaicas. No século XIII, por exemplo, Frederico II de Hohenstaufen, à frente do poderoso Sacro Império Romano Germânico, rodeou-se dos maiores sábios da época, para resolver um problema que, em sua opinião, era decisivo na educação das crianças: qual era a sua «língua natural»? Que língua falariam, de forma espontânea, se nenhum adulto lhe dirigisse a palavra, se nenhum condicionamento social interviesse no seu desenvolvimento? Retirou os recém-nascidos a várias mães e colocou-os à responsabilidade de amas, que os criaram com máscara e foram proibidas de pronunciar qualquer palavra que fosse, diante delas. Mas o príncipe não pôde averiguar qual era a «língua materna» do homem, porque os bebés, assim tratados, com total carência de afectividade e relações, morreram muito rapidamente….
Embora, evidentemente, a ninguém ocorra reproduzir semelhante experiência, o homem continua fascinado pela ideia de chegar ao conhecimento das «leis naturais da criança» [5] e de que, uma vez descoberto o seu funcionamento mental, seria possível prescrever, com certeza total, os métodos que permitiriam o seu desenvolvimento óptimo. No século XIX foi a frenologia que encarnou esse projecto, com os desvios racistas e eugénicos que já conhecemos. [6] Na década de 1920, vimos, de vez em quando, esta perspectiva no que se denominou de «psicopedagogia», apoiada principalmente nos trabalhos de Piaget, e que propõe uma visão prototípica da aprendizagem, ocasionalmente chamada «construtivismo». Piaget descreveu o desenvolvimento da inteligência, colocando em destaque procedimentos mentais regidos por um duplo processo de assimilação (o sujeito incorpora a exterioridade) e acomodação (o sujeito transforma-se, nesta relação, com o real). Segundo ele, graças a este processo, o sujeito passa de um estado ao outro e pode, progressivamente, construir conhecimentos novos. Mas o que procurava Piaget era o que denominou o «sujeito epistémico», quer dizer, o «sujeito em estado puro», na sua «estrutura mental universal». Ninguém pode censurar que o procurasse e que realizasse toda uma série de observações e experimentações, para neutralizar, precisamente, os factores contingentes, diferentes conforme os sujeitos e os contextos nos quais cresciam. No entanto era – e continua a ser – muito arriscado apoiar-se somente nos seus trabalhos, para criar práticas pedagógicas, nas quais inevitavelmente, intervêm dimensões afectivas e socias, relacionais e institucionais. Seria confundir uma metodologia científica perfeitamente legítima, que isola deliberadamente certas determinantes, com a realidade na sua complexidade; seria fazer ontologia com a epistemologia, sem ter em conta os factores que foram omissos, de forma sistemática, nem os valores aos quais não se deu direito de entrada. Por este motivo, sem dúvida, a psicopedagogia foi mais objecto de ensino para os alunos das «escolas normais» (de magistério), que não transformou, significativamente, as práticas pedagógicas. [7]
Esquecida a psicopedagogia, chega a neuropedagogia! Se acreditarmos no que nos diz esta nova disciplina será possível, graças aos conhecimento dos mecanismos cerebrais, que todas as crianças acedam à aprendizagem, até mesmo determinar o seu comportamento, em áreas tão decisivas para a construção da sua personalidade, como a atenção, a motivação, a criatividade, o sentido de responsabilidade, etc. As neurociências, na medida em que permitiriam construir uma autêntica ciência da «vida mental» [8], proporcionar-nos-iam, desta forma, os meios para estimular e estruturar a actividade neuronal, susceptível de modificar o estado mental ou afectivo da criança, tudo em função do que queiramos desenvolver nele. Sempre a mesma fantasia: passar do conhecimento dos mecanismos «naturais» à prescrição sistemática de boas ferramentas, para ensinar e aprender. Ignorar a questão das finalidades em favor de um cientificismo superficial!
Como destacava o filósofo Emmanuel Fournier, «as representações neurocientíficas insinuam-se-nos. Infiltram-se na nossa linguagem e condicionam o nosso pensamento. Desde então, na nossa forma de falar, já não procuramos o prazer, mas as hormonas que nos dão esse prazer. São os nossos lóbulos frontais que planificam os nossos actos, os nossos circuitos da emoção que dão cor às nossas vidas com alegria, etc. E deixamos que esta linguagem pense por nós, com tanta naturalidade, que nos colocamos nas suas mãos com a maior das inocências. Quem ousaria revelar-se contra a sua gramática? [9]
Na realidade, as prescrições, tal como são difundidas pelos meios de comunicação, do que se conhece hoje em dia como «neuropedagogia», oscilam entre a banalidade mais extrema – como o sono é necessário para o bom desenvolvimento da criança – e descrições tão inquietantes, que nos transportam aos piores pesadelos da ficção científica. Assim, no Le Monde de 16 de Janeiro de 2018, um professor, que afirma inspirar-se nas «neurociências», explica que «fazer trabalhar os seus alunos aos pares ou em pequenos grupos, já é neurociência; permitir-lhes que se autocorrijam, a pensar a partir do máximo de apoios, é também apoiar-se nas neurociências; repensar a organização da sala de aula, dispor as carteiras em ilhotas, para favorecer a confrontação cognitiva, todo isso procede de um mesmo planeamento». Não é minha intenção condenar semelhantes iniciativas, mas há que reconhecer que, apresentá-las como descobertas das neurociências, é ignorar a história da pedagogia… E, mais ainda, das investigações em «neurociência»! Também em pôr em relevo um conjunto de técnicas que, não sendo más em si mesmas, justapostas, estão longe de configurar «uma pedagogia». A «pedagogia colaborativa» de Freinet assume as suas finalidades, ao mesmo tempo socializantes e emancipadoras, que se esforça por conseguir, diariamente, com as ferramentas e as situações que propõe. Se bem que se apoie nos conhecimentos relacionados com o desenvolvimento da criança, não deixa de considerar a importância do papel do professor, que garante a coerência das actividades, orienta o conjunto de dispositivos e rituais escolares, construindo um marco estimulante e estruturante, proporcionando, assim, um ponto de fuga axiológico ao que, em neuropedagogia, não é mais do que um conjunto de receitas justapostas, orientadas para a eficácia imediata.
Eficácia é a palavra-chave para aqueles vêem na neuropedagogia uma forma de revolucionar o sistema escolar e que nos deixa antever perspectivas assustadoras. Assim, acreditando no médico e especialista em inteligência artificial Laurent Alexandre, «a era da ideologia pedagógica está a chegar ao seu fim, para dar lugar à prova estatística do «learning analytic». A aprendizagem converte-se numa autêntica ciência, apoiada na observação da estrutura do cérebro e dos seus modos de resposta. O sistema irá sair da idade das manualidades para a idade da tecnologia […]. O aparecimento de gravadores cerebrais não invasivos, baratos e capazes de medir continuamente numerosas constantes, permitirá relacionar estes dados com as nossas características cognitivas, para optimizar o ensino» [10]. Desta forma, segundo ele, poderemos aceder, rapidamente, a um conhecimento preciso das características cognitivas, afectivas e sociais de um indivíduo, a partir da análise de seu telemóvel. E esboça o seguinte: bastará distribuir, o mais depressa possível, tabletes e telemóveis entre as crianças, e a «inteligência artificial dos gigantes informáticos permitirá determinar, com grande precisão, as melhores características pedagógicas para cada aluno». Rapidamente, poderemos desenvolver o neuromarkting sistemático e vender programas de ensino e educação – mesmos de reeducação – aos pais e, desta forma, cada criança poderá «beneficiar» de um «ensino estritamente personalizado» e dispensar-se de ir à escola, porque pode trabalhar, todo o dia, diante de seu monitor ligado a um computador gigante, provavelmente nas ilhas Caimão, para poder fugir aos impostos… Bom, como Alexandre, confiemos que os GAFA [11] não fiquem com o monopólio de semelhante tecnologia. Convencido de que não é possível travar o progresso da tecnologia, o seu desejo é que a educação pública se transforme, o mais depressa possível, num «viveiro de start-ups inovadoras», para que os nossos filhos não tenham uma «educação made in Califórnia, em 2040» [12].
No seu livro La guerre des intelligences. Comment l’intelligence articielle va révolutionnar l’éducation [13], Laurent Alexandre vai, todavia, mais longe: afirma que a escola é «uma tecnologia obsoleta e prevê a sua industrialização» e «robotização». E explica: «No fim, a escola encarregar-se-á mais de gerir cérebros do que transmitir conhecimentos». É verdade que o êxito mediático de Laurent Alexandre e o seu estatuto de cronista, em vários meios de comunicação social, não fazem dele especialista em previsões, reconhecidas pela comunidade científica, mas parece representativo de uma violação de fronteira que, a verificar-se, seria, no mínimo, preocupante. De facto, em sua opinião, perante o «confronto de inteligências» hoje aberto, os estados deveriam utilizar as «biotecnologias do desenvolvimento cognitivo», mobilizar todos os recursos do neuro-aumento, para combater as desigualdades genéticas, e melhorar, sistematicamente, o coeficiente intelectual dos nossos filhos: «a escola transformar-se-á transhumanista e será considerado normal modificar os cérebros dos alunos, utilizando toda a panóplia de tecnologias possíveis» … No entanto, Laurent Alexandre teme que a hibridização de computador e cérebro nos leve até um «transhumanismo radical» - «a saída do cérebro para fora de si mesmo», a sua «automatização completa» até ao ponto de ser possível descarregá-lo» - e, para evitá-lo, sugere que se substitua o lema francês Liberdade, Igualdade e Fraternidade pelos três pilares da nossa humanidade, segundo ele: «preservar os nossos corpos de carne e osso», «salvar a nossa individualidade» e «deixar espaço para ao acaso». Pois, fiquemos então tranquilos! Ele, que acaba de explicar-nos que a nostalgia, que tenta travar o crescimento das neurotecnologias e da neuroeducação, são equiparáveis a um sindicato de ferradores que, em, 1905, tentou opor-se à introdução do automóvel, aceita traçar linhas vermelhas, para que possamos conservar a nossa dignidade! Dignidade, um conceito, ainda assim, mais antigo que o sindicato de ferradores! Talvez um sinal de uma ruptura possível com a ilusão cientificista do progresso infinito, pela ciência?
Temos abusado tanto da imagem do Big Brother e das perspectivas de ficção científica, abertas por romances como 1984, de George Orwell, ou O admirável mundo novo de Aldous Huxley, que hesito em voltar a referi-lo aqui. E, no entanto, é disso que se trata. A neuropedagogia, tal como é divulgada actualmente, ou é insignificante ou é assustadora. Em todo o caso, ela dispensa-nos de ter que fazer a pergunta das finalidades da educação, dos valores que sustentam as nossas instituições, do projecto de sociedade e da visão do mundo, que temos para os nossos filhos.
LER TAMBÉM:
Neurociências e trabalho Pedagógico >>>___________________
[1] Immanuel Kant, Réflexions sur l’éducation (1776-1787), Paris, Vrin, 1993.
[2] Hannah Arendt, «La crise de l’éducation», La Crise de la cuture (1967), París, Gallimard, «Folio», 1989.
[3] Publicado sob a direcção de Ferdinand Buisson no tempo em que foi criada a Escola da República francesa. Ferdinand Buisson, Dictionnaire de pédagogie et d’instruction primaire, edição compliada por Patrick Debois e Philippe Meirieu, Paris, Robert Laffont, «Bouquins», 2017, p. 694.
[4] Dediquei os meus primeiros trabalhos científicos a esta questão, mostrando o carácter altamente ambíguo das práticas de grupo não reguladas: cf. Philippe Meirieu, Apprendre en groupe?, tomo I: Itinéraire des pédagogies de group, tomo II: Outils pour apprendre en groupe, Lyon, Chronique sociale, 1984.
[5] Les Lois naturelles de l’enfant é o título da obra de sucesso de Céline Alvarez publicada em 2016, pelas edições Les Arènes.
[6] A frenologia é uma teoria proposta pelo neurologista austríaco Franz Joseph Gall (1757-1828), sobre a localização das funções cerebrais e a correlação entre a forma do crâneo e as características das pessoas (está na origem, por exemplo, da teoria do criminoso nato). A obra principal de Gall viria a ter o título (traduzindo para português), Anatomia e fisiologia do sistema nercoso em geral e do cérebro em particular, com observações sobre a possibilidade de reconhecer várias disposições intelectuais e morais do homem e dos animais pela configuração da sua cabeça.
[7] O grupo francês de educação nova (GFEN) falaria de auto-socio-construção dos conhecimentos. Inscrito numa intenção política forte (Todos somos capazes!), apoiando-se nos trabalhos de Henry Wallon e propondo situações de aprendizagem centradas na génesis do saber, diferencia-se da psicopedagogia tradicional e propõe uma pedagogia coerente. E aqueles que, como eu trabalham, nas situações problema, tomam de empréstimos alguns elementos de Piaget e colaboradores, mas sobretudo de Vygotsky (a zona de desenvolvimento proximal) e de Bachelard (o conceito de obstáculo), esforçando-se por articulá-los à volta do conceito de projecto – proveniente da educação nova –, por inscrever-se numa finalidade de transmissão/emancipação. Ao procurar realizar uma tarefa, ao mesmo tempo difícil e acessível, o sujeito deve encontrar um objectivo-obstáculo que, graças a um conjunto de recursos, poderá superar e, de seguida, transferir à sua própria iniciativa. (Philippe Meirieu, Apender sim, mas como?, Porto Alegre Artmed 2002).
[8] Stanislas Dehaene, Vers une science de la vie mental, Paris, Collège de France/Fayard, 2014 e Le Code de la conscience, Paris, Odile Jacob, 2014.
[9] Le cerveau, gage de bonne éducation?, conferência de Emmanuel Fournier no colóquio L’Aventure des neurosciences», Angers, 2 de Junho de 2015.
[10] Laurent Alexandre, L’Éducation doit libérer ses innovateurs, L’express, 18 de Outubro de 2017, p. 22.
[11] Acrónimo de "Google Amazon Facebook Apple".
[12] Pode estar tranquilo! De acordo com o artigo de Caroline de Malet, no Le Figaro, de 10 de Abril de 2018 (Como a Inteligência Artificial está a penetrar no mundo da educação), as Start-ups francesas, aliadas, por vezes, de grandes editoras – como Hachett e – e relacionadas com grupos internacionais – como Hnewton –, trabalham com afinco, na implementação de assistentes pedagógicos, que propagam, a partir da análise do funcionamento cognitivo de cada aluno e graças à inteligência artificial, conteúdos e estratégias de aprendizagem personalizados. Segundo dizem, a tecnologia está preparada. É apenas uma questão de vontade e de investimento».
[13] Paris, Jean-Claude Lattès, 2017.