segunda-feira, 10 de janeiro de 2022
Célestin Freinet: Histórias de uma vida, as lutas de um pedagogo
sexta-feira, 17 de dezembro de 2021
UMA ABORDAGEM "ESCRITICA"
Há já há algum tempo que alguns países do Norte da Europa tomaram a opção pedagógica de iniciarem a aprendizagem da escrita-leitura através dos teclados. Constataram que só nas Escolas se escrevia com, lápis, esferográficas, canetas, directamente em folhas de papel. Provavelmente convencidos de que assim se poupará a vida a muitas árvores essenciais à vida…
Em sentido contrário, os países do longínquo oriente, com "Alfabetos" de escrita totalmente distintos dos ocidentais, desenvolvem ao máximo, nas escolas, as capacidades das crianças na escrita pictográfica e ideográfica desses “alfabetos”… para equilibrar [?] o elevado desenvolvimento e utilização das tecnologias digitais de comunicação. Perceberam melhor o que está em jogo?
Segundo os primeiros estudos, de organismos internacionais dedicados ao desenvolvimento global dos alunos, a constatação é evidente: estas crianças estão bastante mais equipadas e desenvolvidas, em todas as competências, que as nórdicas.
Não se tendo ainda, entre nós, colocado a questão de forma generalizada, e desejando que esta nunca seja colocada de forma dicotómica [reforço dicotómica], no sistema ensino, avanço com a abordagem que sobre este assunto Alexandra Yeh e Hélène Combis tratam em “Écrire à la main: un geste du passé”(2019).
“A diferença que existe entre a escrita manuscrita e a dactilográfica, tem a ver com os gestos que efectuamos, a manuscrita solicita apenas uma mão, ao passo que a dactilográfica exige as duas. Do ponto de vista cerebral isto altera muitas coisas, por um lado temos um processo que faz trabalhar apenas a mão dominante, geralmente a direita, que é controlada pelo hemisfério cerebral esquerdo, o mesmo que controla a fala. Por ouro lado, a escrita em teclado exige a coordenação das duas mãos, o que implica e envio de dados do hemisfério direito para controlar a mão esquerda. Logo temos uma divisão da escrita entre os dois hemisférios cerebrais, desde que exista uma formação a este tipo de escrita.
Quando se aprende a escrever, os movimentos de grafia obrigam a memorizar uma forma e os gestos. Nos exames de ressonância magnética efectuados é bem patente, quando se pede à pessoa para observar as letras, a activação em simultâneo das zonas visuais e sensoriomotoras do cérebro e é esta dupla estimulação cognitiva que permite encontrar o nome da letra. Se não sabemos escrever à mão, a nossa capacidade de reconhecimento das letras diminui.
Fizemos nas nossas salas de Jardim de Infância uma simples análise com os nossos alunos, ensinando um grupo a escrever directamente nos teclados e outro a escrever à mão. Ao fim de três semanas era evidente que quando pedíamos às crianças para reconhecerem visualmente as letras que tinham aprendido, as que tinham aprendido a escrever à mão tinham melhores resultados que os outros.
Isto leva-nos a pensar que existem processos diferentes de funcionamento. Num caso o processo é a passagem dum toque numa tecla que leva a uma imagem no ecrã, a relação corporal entre a mão e o cérebro é alterada em benefício da utilização social tecnológica.
Na outra situação a aprendizagem corresponde a um processo de memorização ligando o gesto a uma aquisição cognitiva, um exercício manual de grafia, uma actividade mental.
Trata-se de uma dificuldade actual do ensino que deverá articular a formação humana e a adaptação às práticas sociais instituídas, sendo que o mais importante é a questão não se colocar apenas nos primeiros anos de escolaridade, mas prolongar-se ao longo de toda a escolaridade…
Facilmente podemos também pensar para além da questão do manuscrito, as outras actividades similares, desenhar, colorir, a utilização dos múltiplos instrumentos que exigem saberes e técnicas: diferentes lápis, canetas, marcadores, tintas, diferentes texturas, cores etc…
Talvez que as “queixas” de muitos professores da fraca qualidade das “produções artísticas” dos seus alunos esteja em parte ligada a esta questão, quando se deveria passar o contrário dada a enorme “melhoria técnica” dos tempos sem teclados na Escola: melhores instrumentos, melhor papel e mais, sobretudo, saber…
quarta-feira, 8 de dezembro de 2021
Há dia felizes
[Aceder à versão em PDF >>>]
A Empatia também se ensina. Ensina-se pelo Exemplo
Sim… há dias felizes, sobretudo quando, em situações menos agradáveis, encontramos alguém que se coloca no nosso lugar e nos ajuda a resolver um problema. Aconteceu ontem, quando me preparava para entrar no cinema. Para tal era necessário apresentar o comprovativo da vacinação. Por qualquer razão, o meu certificado não estava a conseguir ser lido no telemóvel. Dada a exigência na entrado do espaço e perante a evidência de eu ter de abandonar o mesmo foi a funcionária de serviço que me ajudou a procurar outras alternativas. E conseguiu. Manifestava uma facilidade no manuseamento das tecnologias bem superior à minha – eu sou mais analógica –. A disponibilidade da funcionária e a sua empatia permitiram que a barreira fosse ultrapassada.
A propósito revisitei os “meus escritos” e reli um ensaio que tinha tentado sobre “empatia” – esta capacidade que algumas pessoas têm de se colocar no lugar do “outro” e experimentar, de forma objectiva e racional, viver a situação do seu semelhante. A empatia pressupõe altruísmo e capacidade de ajudar e não julgar. Pressupõe que nos descentremos dos nossos problemas para conseguir alargar o nosso foco de atenção. Pressupõe ultrapassar a barreira do egoísmo, do medo do desconhecido e do preconceito, relativamente ao que julgamos diferente.
Provavelmente, todos seríamos mais felizes se usássemos essa capacidade. Ela não é genética mas passível de aprendizagem. Sempre a partir do exemplo. Em primeiro lugar na família, quando possível… Na escola deveria ser sempre possível…. Não tem porque não ser.
Como diz a voz popular, a família não se escolhe. Quanto à escola, está muito nas mãos de quem a frequenta, nos seus diferentes papéis, desenvolver práticas em que a empatia seja práxis. Na Dinamarca a empatia ensina-se desde os primeiros anos na escola. Implementada como área obrigatória dos 6 aos 16 anos, com uma duração diária de uma hora, explora as vertentes da empatia afectiva, cognitiva e reguladora de emoções. Os responsáveis afirmam que esta prática ajuda os alunos a construir relacionamentos, evitar o assédio e obter sucesso.
Não podemos comparar-nos com a Dinamarca, não temos o seu capital económico, mas temos um capital humano infindável, temos um manancial de predicados – somos solidários, abertos ao mundo, transparentes, prestativo … –, que nos faz sobressair, em qualquer parte do mundo, e pelas melhores razões.
A forma como as escolas se podem organizar já aponta para a implementação de práticas diferenciadoras, a realizar através de projectos capazes de fazer a diferença, capazes [quem sabe!] de construir outros rankings, de inventar outros “quadros de honra” , que evidenciem competências humanistas.
Assim, é urgente promover uma escola que se diz universal, obrigatória e gratuita, onde as aprendizagens sejam significativas, desenvolvidas através de práticas e processos de aprendizagem e formação cooperada, que desenvolvam a capacidade de reflexão e competências de comunicação, capazes de levar os alunos a assumir compromissos e práticas de entreajuda.
quarta-feira, 3 de novembro de 2021
Para iniciar uma conversa sobre o amor e a amizade
«Talvez a grande diferença entre o amor e a amizade resida no facto de o amor tender sempre para o ilimitado, suspeitando de contornos e fronteiras. Se escondes alguma coisa de mim na relação amorosa, isso, tarde ou cedo, ganha um peso insuportável (...).
A amizade é uma coisa muito interessante - explica Françoise Dolto -, porque na amizade há segurança sem que exista pressão. O que não podemos conhecer do outro, deixamos serenamente que permaneça incognoscível. O facto de não conhecermos tudo do outro não afecta a relação que mantemos, coisa que o amor dificilmente suporta.(...)
Uma das crises mais graves da nosso época é a separação entre conhecimento e amor (...).
O perigo que oferece o vocabulário do amor é perder-se no indefinido, alargar-se no ilimitado da subjectividade: não sabemos bem o que é o amor; é sempre tudo; é uma tarefa desmesurada; e essa sua indestrinçável totalidade, demasiadas vezes, consuma-se numa desiludida retórica vazia. A amizade é uma forma mais objectiva, mais concretamente desenhada, porventura mais possível de ser vivida.»
[José Tolentino Mendonça, "Uma beleza que nos pertence", Quetzal, Lisboa, 2019: p. 14, 15 e 24]
sábado, 23 de outubro de 2021
A solidão dos números primos
Maria dos Reis
Paolo Giordano, autor do livro A solidão dos números primos, partindo do conceito de número primo, inerentemente solitário – apenas divisível por si próprio ou por um –, desenvolve uma narrativa que nos fala da solidão, da necessidade de ser aceite, da culpa e da expiação.
Li o livro avidamente, revivendo histórias que foram passando na minha vida profissional e se encaixavam nos relatos explanados na obra.
Apropriei-me do título para reflectir sobre as notícias que invadiram os meios de comunicação, nos últimos dias, e que dizem o seguinte: “Mulher que afogou o filho autista condenada a 10 anos de prisão”.
“O Tribunal de Mirandela reconheceu que a arguida chegou a um estado de desgaste emocional e de desespero, agravado pela pandemia, e por isso condenou Fátima Martinho a uma pena bastante inferior ao limite da moldura penal”.
O tribunal defendeu que “falhou o Estado, a família e os vizinhos, nesta tragédia”.
A mulher com 53 anos, estaria sujeita a muito stress enquanto cuidadora do filho portador de “um síndrome de autismo grave”, o que lhe terá provocado um alegado estado de "burnout [exaustão emocional].
O acto, por si só arrepiante, leva-nos a pensar sobre o que levou uma mulher, que tratou do seu filho durante 17 longos anos – com uma patologia de autismo severo e epilepsia associada – a uma situação de desespero, que culminou na tragédia já amplamente relatada.
Sim, estamos perante um caso de uma família monoparental que foi esquecida.
Repito as palavras que o tribunal proferiu, para justificar a sentença: “ … falhou o Estado, a família e os vizinhos nesta tragédia…” Sim, falhámos nós, enquanto estado, porque não soubemos, em tempo útil, agir perante factos de que, tendo conhecimento, fizemos de conta que não vimos.
*
“O conceito de Estado-nação refere-se à forma de organização dos governos dos Estados Modernos e às organizações sociais que se estabeleceram em torno deles.”
Pressupõe-se, então, que as organizações deverão corresponder às necessidades dos cidadãos.
Pelo que também li, e me provocou alguma perplexidade, este jovem que vivia em Cabanelas-Mirandela, frequentava o agrupamento de Escolas de Vinhais. Estas localidades distam cerca de 50 Km, o que corresponde a uma hora de caminho. Um dia de escola pressupõe duas horas de transporte no mínimo. Todos os dias da semana.
Como será estabelecer contactos com as famílias?
Sabemos que o trabalho com pais é fundamental. E, quando diz respeito a crianças e jovens com Necessidades Educativas Especiais, é simplesmente indispensável. Os planos de intervenção deverão ter em conta as condições familiares e garantir a continuidade das estratégias delineadas. Nos encontros com pais e/ou cuidadores, para além do reforço de êxitos conseguidos [mesmo que simples], é suposto que se detectem sinais de desgaste, cansaço, desalento... É um trabalho que requer relações de proximidade.
Não é fácil a criação de ambientes para o atendimento dos casos mais difíceis numa comunidade educativa, mas é possível. Interessa é ponderar os prós e os contras de cada alternativa.
A situação de pandemia trouxe transtorno a todos. Para os alunos “ditos normais”, houve a preocupação de responder com aulas online, de manter algumas cantinas em funcionamento, para garantir refeições a crianças e jovens que não tinham outra forma de se alimentar. E, para chegar aos idosos isolados [também eles um sector da população que exige uma atenção específica], criaram-se equipas itinerantes.
Mas…, o que aconteceu aos alunos com Necessidades Educativas Especiais? Como foram acompanhadas as suas famílias, que maioritariamente e tal como os números primos, não fazem parte de outros conjuntos? Quem tratou de combater o isolamento de cuidadores exaustos e isolados, a desenvolver estados de “burnout”?
Continuamos todos muito centrados no nosso “mundinho”.
Espero, tão só, que esta mulher, agora condenada, encontre dentro de uma “prisão” estatal, a paz que nunca teve na sua vida aprisionada, a partir do momento que foi mãe e enfrentou sozinha uma maternidade tão sofrida.
sábado, 25 de setembro de 2021
Neurociências e trabalho pedagógico
Versão portuguesa de Daniel Lousada [Ler em PDF >>>]
Título Original: “les neurosciences ne feront jamais la classe” [Cap. 5 de La Riposte. Pour en finir avec les miroirs aux alouettes, Paris, Autrement, 2018: pp. 167-179].
Felizmente que a maior parte dos neurocientistas, não pretende criar uma neuropedagogia e, a este título, merecem ser ouvidos. Não é uma questão de negar ou subestimar o interesse dos conhecimentos adquiridos, hoje, neste domínio da investigação. A imagiologia cerebral contribuiu para descobertas estimulantes. Em todo o caso a imagiologia por ressonância magnética [1] não serve para observar todas as situações de aprendizagem, em todos os contextos, nomeadamente na sala de aula, ou durante um passeio pela natureza! O fascínio pela imagiologia deve-se, em grande medida, ao facto de esta mostrar o que até então era inacessível: a nossa actividade cerebral. Na verdade, a imagiologia permite-nos apenas estabelecer correlações – entre a actividade de certas zonas cerebrais e certos comportamentos – e dificilmente permitem inferir a causalidade que leva a prescrições pedagógicas precisas…
É verdade, contudo, que as neurociências permitem a certos investigadores, graças a protocolos sofisticados, revelarem fenómenos muitos interessantes. Assim Olivier HOUDÉ, professor de psicologia do desenvolvimento na Universidade de Paris-Descartes, replicou a experiência de Jean PIAGET sobre a comparação, por parte de uma criança, de duas séries de fichas mais ou menos espaçadas, e demonstrou, com o apoio de imagens do cérebro, a importância da inibição da resposta imediata por parte do córtex frontal, para entrar num registo de verificação, de demonstração e de argumentação.[2] Desta forma, confirmou experimentalmente os trabalhos no âmbito das didácticas, sobre a necessidade de trabalhar com o aluno, sobre as suas representações ou convicções espontâneas,[3] como Janusz KORCZAK já antes defendera, com a sua bela intuição, sobre a importância de pôr travão ao impulso espontâneo, para colocar em acção o pensamento. Mas, por outro lado, nada disto nos fornece o interruptor, que permitiria desencadear a inibição da reacção imediata, por parte do córtex frontal!
É portanto à pedagogia, que cabe inventar o interruptor, aquele que controla a desaceleração necessária ao desenvolvimento de um pensamento reflexivo. Compete- lhe a ela fazer da sala de aula um espaço onde se dá tempo para examinar antes de julgar, a preocupação de se documentar antes de afirmar, o hábito de demonstrar antes de impor, a vontade de reflectir antes de agir. Nada, basicamente, que não tenhamos encontrado nos fundadores seculares, com Ferdinand BUISON, Henri MARION, James GUILLAUME ou Octave GRÉARD.[4]
Dir-se-á, contudo, que as neurociências estão na origem de realizações decisivas, que mudaram a nossa visão da educação, evocando a noção de “plasticidade cerebral”. Este ponto é, com efeito, essencial. Quando a pedagogia falava do “postulado da educabilidade”, formulava uma exigência ética, um princípio necessário para não nos deixarmos tentar pela facilidade da “psicologia do dom”, uma forma de comunicar, explícita ou implicitamente, ao outro, uma predição negativa, que ele faria o possível por não nos desmentir: «não podemos instruir se não acreditarmos na inteligência da criança», dizia já o filósofo ALAIN.[5] Não podemos ensinar sem apostar que todas as crianças conseguem aprender e crescer. E as neurociências confirmam que esta aposta não é tão disparatada como nos querem fazer crer.[6] Mas os pedagogos não ficam por aí: ao necessário voluntarismo educativo, eles opõem um também necessário limite: a aprendizagem não se decreta; ela supõe a implicação daquele que aprende, porque, em algum momento, ele precisa começar a fazer o que não sabe como fazer, para aprender a fazê-lo e que tudo corra bem.[7] A coragem para começar – a andar, a falar, a escrever, a resolver equações de 2º grau, a nadar ou a manipular ferramentas, a fazer uma dissertação ou uma declaração de amor – pelo que nem a pedagogia mais elaborada poderá, jamais, dispensar seja quem for. Não pode, com efeito, deixar de criar um envolvimento o mais estimulante possível, de desenvolver uma teia de relações sociais que favoreçam a confiança em si e a consciência da importância da aprendizagem, para incentivar o outro a crescer… mas sem nunca forçá-lo nem, por maioria de razões, fazê-lo por ele.[8]
Porque uma predisposição nunca é – mesmo em medicina – uma predestinação, os neurocientistas devem, como os pedagogos, ter a preocupação de diferenciar sem catalogar, de se adaptar a cada um e a cada uma, mas sem desistir de descobrir as perspectivas e caminhos por conhecer.
Atenção! Não usar a explicação cerebral como desculpa, aconselha Emmanuel FOURNIER: «os problemas parecem sempre mais suportáveis se eles se devem a causas que não são da nossa responsabilidade. É o cérebro que carrega o fardo. Nós utilizamo-lo para nos desculpabilizarmos, ou seja, para nos demitirmos das nossas responsabilidades.[9]» E a “desculpa cerebral” pode ocupar, com eficácia, o lugar da “desculpa sociológica”, tantas vezes utilizada a partir de uma leitura simplista de BOURDIEU: nada mais tentador, com efeito, que transformar uma dificuldade da criança [de que nós poderemos, pelo menos em parte, ser responsáveis] num problema neuronal… mesmo que defendamos, além disso, a maleabilidade do cérebro. Podemos ver claramente, no limite, o que não é de modo algum uma doutrina pedagógica, que se esforça para tornar as tensões que a atravessam numa fonte de superação, mas um conjunto de observações com usos múltiplos e até contraditórios. Quando, por vezes, pretendem fundar uma pedagogia, na realidade as neurociências apenas alimentam o pragmatismo em busca de eficácia imediata, muitas vezes cega, quanto aos seus objectivos.
Além disso, quando querem ser mais precisas, as neurociências fornecem-nos dados sobre apropriação e memorização de conhecimentos, que podem esclarecer-nos sobre o assunto, mas são incapazes de nos indicar uma prática. Elas insistem, por exemplo, no facto de que a aprendizagem é mais eficaz quando o feedback – as observações e avaliações dos adultos – é positivo, correctivo e rápido; elas defendem que os conhecimentos e o saber-fazer se inscrevem no cérebro progressivamente e que as conexões cerebrais não se instalam duradouramente se não forem exercitadas regularmente; elas sublinham a importância da consolidação dos saberes, para que estes fixem na memória os seus traços. Tudo isto constitui indicadores preciosos para delinear uma intervenção pedagógica, mas não permitem decidir sobre que conteúdos culturais oferecer aos alunos para mobilizá-los, nem mesmo a forma como lhos vamos apresentar. Tão pouco permite, como ouvimos recorrentemente aqui e ali, a reabilitação do “aprender de cor”. Não porque entendamos que o “aprender de cor” seja em si mesmo negativo, porque corresponderiam sempre a métodos mecânicos de aprendizagem – “aprendi de cor” numerosos poemas e tenho muito prazer em recitá-los –, mas porque “aprender de cor” não é verdadeiramente possível, se não se investir numa aprendizagem que pressupõe, a montante, o trabalho sobre o conhecimento em questão, antecipando o uso a fazer desse conhecimento e uma reflexão, no decurso da aprendizagem, sobre o caminho para aprender. O que pressupõe, muito simplesmente, utilizar a memória não como um mecanismo para gravar e armazenar as informações, mas como um meio, especificamente humano, de ligar o passado, o presente e o futuro numa intenção ou num projecto.
E é a mesma prudência que deve guiar-nos, quando aplicamos os conhecimentos das neurociências à aprendizagem da leitura. Não é este, infelizmente, o caso. Com efeito, se existem contribuições, particularmente estimulantes, sobre os fenómenos do cérebro, que são correlativos a certos comportamentos de leitura,[10] se temos debates sérios e argumentos sólidos sobre a questão[11], vemos, sobretudo, desenvolver-se uma vulgata oficial, que defende os métodos silábicos, em nome de argumentos, no mínimo, discutíveis.
É, com efeito, muito interessante saber, que é a “reciclagem dos neurónios da visão”, que permitem o acesso à leitura; assim compreende-se melhor, porque uma criança que constata, que o lado para o qual a pega de uma chávena está virado não modifica a natureza da chávena, acredita que o b e o d são a mesma letra, tal como o são o p e o q.[12] Da mesma forma se explica o fenómeno da “escrita em espelho” [quando a criança escreve de maneira inversa, e os seus textos só são legíveis se vistos com a ajuda de um espelho]: podemos então relativizar a gravidade desta disfunção e, benevolente e pacientemente, introduzir ao longo da aprendizagem as correcções necessárias para ajudar a ultrapassar esta dificuldade. Compreendemos melhor, igualmente, graças às neurociências, os problemas de certas crianças: aquelas que sofrem para detectar invariâncias [cadeias de letras idênticas] em diferentes grafias, aquelas que não percebem que uma letra pode mudar totalmente o significado de uma palavra, aquelas que são incapazes de ler uma palavra nova complexa, porque não conseguem dividi-la nos elementos que a compõem. Tudo isto alerta-nos, efectivamente, para a necessidade de uma aprendizagem silábica específica, mas nada nos diz sobre o momento em que esta deve ser feita, o tipo de exercícios a fazer, a natureza dos textos a propor ou o comportamento pedagógico a adoptar; tudo isto deixa de lado a questão essencial do estatuto da escrita na sala de aula: como pedir às criançasque investam na leitura-escrita, sem que isso seja para elas uma oportunidade de comunicação, nem de emancipação, mas simplesmente um momento de sofrido numa operação escolar de pura normalização? Isto não se reduz, apenas, a uma questão de minimizar a compreensão, no decurso do processo de aprendizagem da escrita: colide com o próprio significado do acto de escrever… Em suma, são totalmente injustificadas as orientações ministeriais que, seguindo o lóbi de GILLES de ROBIEN e fingindo confiar na neurociência, passam alegremente do imperativo da vigilância silábica à prescrição dos “métodos silábicos”.
Destorção surpreendente [opiniões apresentadas como factos] ampliada massivamente pelos média. Aqui se lisonjeia a opinião nostálgica pelos bons métodos antigos, de que antes é que era bom – evidentemente, de quando éramos jovens! –, tudo tendo por base uma leitura, no mínimo abusiva, das observações das pesquisas cientificas mais avançadas. Que dizer mais? Esta “reconciliação” política do melhor da modernidade e do melhor da tradição funciona perfeitamente. E que importa se as instruções que aconselham estas abordagens,[13] são elas mesmo, quando as olhamos mais de perto, pouco mais, com leves diferenças, que um resumo das conclusões de um estudo americano de 1998[14], que sublinha a utilidade de um trabalho específico sobre a correspondência grafema-fonema [signo escrito/unidade sonora] … que é já prática adoptada pela quase totalidade das crianças do 1º ciclo! A questão aqui, tal como a vejo, não é verdadeiramente pedagógica. Ela é simplesmente política: «Descansem pessoas de bem. Nós descobrimos tanto o problema quanto a solução das dificuldades da criança, na sua relação com a palavra escrita. Nós tomamos o assunto em nossas mãos!» Entristece-nos ver os neurocientistas implicados neste género de situações.
Porque na realidade, se o interesse das neurociências é inegável para a pedagogia, é impossível considerá-las como uma ferramenta miraculosa, capaz de resolver todos os problemas educativos. Por um lado, porque as novas descobertas científicas não anulam, por si sós, as mais antigas: as neurociências não invalidam, por exemplo, a abordagem de WINNICOTT[15], nem o trabalho clínico do psicólogo ou do psiquiatra. Por outro lado, porque a compreensão do ser humano não se limita a uma só destas dimensões: a abordagem cognitiva e afectiva das neurociências não beliscam, em nada, as investigações sobre as dimensões sociais e culturais do indivíduo, pelo que não deveriam esquecer as obras linguísticas ou didácticas propriamente ditas. É verdade, o cérebro pode aparecer como a “cabine de pilotagem”, onde todos os dados se encontram [biológicos, sociológicos, cognitivos, afectivos, etc.] e donde partem todas as decisões em matéria de aprendizagem, em todos os domínios. Mas as decisões do piloto não podem, em caso algum, ser reduzidas a uma combinação mecânica destes dados, tal como poderia ser feita por um computador.
Com efeito, o que caracteriza o ser humano, enquanto sujeito, é que ele é portador de projectos e selecciona as informações que recebe em função destes. A actividade duma criança, as suas motivações, os seus problemas, as suas perspectivas, não podem ser apreendidas de um modo puramente objectivo, acumulando informações científicas muito precisas. Impossível ignorar o que o move, e a que não acedemos a não ser através do relacionamento com ele. Essa relação inclui, é claro, uma parte emocional, que as neurociências também podem abordar, mas mais profundamente deve constituir um convite onde a confiança e a exigência favoreçam a emergência da liberdade e dos anseios do outro. Por outras palavras, se a neurociência e todas as outras abordagens científicas do desenvolvimento da criança podem ajudar-nos a criar melhores condições de aprendizagem, não poderão nunca esclarecer-nos sobre as causas: o que motiva o sujeito, o que desperta em si o desejo de aprender as fábulas de la Fontaine ou as equações de 2º grau, o que lhe proporciona a alegria de compreender um poema de Verlaine ou apreciar um concerto de Mozart, como a satisfação de ajustar um entalhe e um encaixe ou montar um circuito electrónico, tudo isto não se reduz – felizmente –, a uma perspectiva científica, condenada a isolar eventos, quando é necessário relacioná-los, ignorar o sujeito quando é, precisamente, necessário mobilizá-lo.
Como refere o filósofo alemão Markus GABRIEL, «o “eu” não é uma chave USB[16]»! Não o carregamos de conhecimentos, como um ficheiro informático. O “eu” – em matéria de aprendizagem, como noutros domínios – age apenas para alcançar um objectivo. Os seus actos têm um sentido para si, mesmo que não o considere totalmente. E é porque aceitamos o diálogo, e caminhar com o outro nessa busca do sentido, que contribuímos para sua educação.
Nenhuma ciência nos liberta, pois, do trabalho educativo, que consiste na procura do que é bom e verdadeiro, os conhecimentos e os saberes desejáveis para e pela criança, graças ao nosso exemplo e à nossa criatividade. Temos “ciências da educação” – e elas devem, evidentemente, desenvolver- se respeitando a pluralidade de abordagens – não há nem haverá nunca, para desgosto de Stanislas DEHAENE, a ciência da educação, no singular[17]: a existir, esta não seria mais do que uma “ciência de adestramento”. O verdadeiro ensino ocorre nas situações em que possibilitamos o encontro autêntico, em grande parte imprevisível, entre humanos e com as suas obras.
______________
[1] A ressonância magnética permite visualizar a existência [mas não o conteúdo] duma actividade cerebral, graças à observação da variação de fluxos sanguíneos nas diferentes zonas do cérebro.[2] Numerosas crianças afirmam, espontaneamente,que o número de fichas é mais elevado quando a linha é mais comprida. Outros inibem esta reacção e, antes de dar a resposta, verificam fazendo corresponder cada ficha de uma linha à ficha correspondente da outra. Cf. Olivier HOUDÉ, Apprendre à resister, Paris, Le Pommier, 2014.
domingo, 12 de setembro de 2021
É necessário, urgente, fazer regressar às escolas os pedagogos e a pedagogia
António Nunes
Leio em Apple & Jungck que «a intensificação leva os professores a seguir por atalhos, a economizar esforços, a realizar apenas o essencial para cumprir a tarefa que têm entre mãos; obriga os professores a apoiar-se cada vez mais nos especialistas, a esperar que lhes digam o que fazer».* Mas dar ou vender aulas, qual vendedor dedicado a passar informação por catálogo, não chega para que alguém se pense e se diga professor.
Sustentada na pedagogia, a profissão de professor tem uma semântica própria que, construída ao longo de séculos, nos foi deixando exemplos fabulosos da parte seus melhores, na promoção dos valores, do conhecimento e das competências que lhe dão corpo.
Desligada da reflexão pedagógica, a profissão de professor cai num «processo de depreciação da experiência e das capacidades adquiridas ao longo dos anos […], a qualidade cede o lugar à quantidade. [...] Perdem-se competências colectivas à medida que se conquistam competências administrativas. Finalmente, é a estima profissional que está em jogo, quando o próprio trabalho se encontra dominado por outros actores»,* obcecados por uma educação que imaginam científica.
Reivindiquemos ser autores [não apenas actores] na profissão que escolhemos.
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* APPLE, Michael & JUNGCK, Susan. "No hay que ser maestro para enseñar esta unidad: la enseñanza, la tecnologia y el control en el aula”. Revista de Educación, 291, 1990, pp. 149-172
quinta-feira, 9 de setembro de 2021
Desaprender: divagações a propósito d'«o vício de explicar»!
Daniel Lousada
Leio Vergílio Ferreira e dou comigo a divagar sobre a expressão, “Levei quarenta anos a explicar coisas aos alunos. Ficou-me assim o vício de explicar, mesmo o inexplicável. Precisava agora de outros quarenta anos para desaprender a explicação do que expliquei”.[1] Talvez que Vergílio Ferreira, ao dizer «... quarenta anos para desaprender...», o dissesse com a consciência de quem sabe que a cultura profissional, onde nos deixamos cristalizar, sem disso nos darmos conta, é um instrumento poderosíssimo de resistência à busca de outros caminhos![2] Ou talvez o que disse não fosse mais do que o desabafo de um professor desencantado, não sei. E nas divagações em que me encontro, centro-me nas três palavras que marcam esta confissão [uma espécie de desejo?] do autor de “Aparição”: vício, explicar e desaprender.
Desaprender é palavra que traz a dimensão psicanalítica com que a pedagogia nos convida a encarar o nosso lugar na profissão.[3] Desaprender é desfazer o que aprendemos, não é esquecer: é um acto de vontade e não um acto involuntário da memória. Mesmo admitindo a palavra esquecer no conceito de desaprender, quando muito ela será um esquecer que não é esquecimento que quer.[4] Até porque não esqueço, só porque quero, o que aprendi sobre “rios”, mas querendo desaprendo de seguir rio abaixo até ao mar, questionando se é razão bastante aquela [a da corrente] que me impele a navegar, sempre, rumo à mesma foz. Digo, então, que desaprender vai mais naquele sentido de quem nos diz “esquece”, não como conselho para largar da memória o que aprendemos [bem pelo contrário], mas para activar lembranças na busca daquilo que nos bloqueia, nos amarra na corrente, indiferentes a outras escolhas que tenhamos por que optar!
Volto a Vergílio Ferreira e releio: “desaprender a explicação do que expliquei”. E interrogo-me: o que explico diariamente na aula, faço-o consciente da força da minha explicação, como método de ensino? Ou porque, ficando-me apenas «o vício de explicar, mesmo o inexplicável», já não dou conta do sentido a que me prende a “corrente” que me faz navegar? Sendo o vício sinónimo de dependência, talvez que o vício de explicar nos tenha desviado da conjugação de outros verbos, porventura daquele que lhe está mais próximo, não pelo sentido, mas pela etimologia: implicar.[5] É certo que, se o aluno não entende, é preciso explicar. Mas como fazer entender quem não está implicado?
“O essencial é saber ver / ... / Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),/ Isso exige um estudo profundo, / Uma aprendizagem de desaprender. / ... / Procuro despir-me do que aprendi, / Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, / e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, /... /”.[6]
Se quero acompanhar um aluno, vê-lo e entendê-lo no seu modo de aprender, não tenho mais do que desaprender o modo de ensinar que aprendi [naquele modo de aprender que me ensinaram],[7] e procurar aprender de novo, agora com ele, implicado com ele, para que ele possa aprender comigo também. A explicação, não fazendo agora mais parte de um vício, até pode estar presente, só que numa relação marcada por outros tons: sem deixar de partir de uma geometria vertical [aquela que caracteriza a relação professor-aluno[8]] adquire os traços de horizontalidade das relações que vêem o sujeito que aprende como ser autónomo, que se implica na sua própria formação, longe da passividade de quem apenas ouve.
________________________
[1] In «Pensar». Lisboa, Livraria Bertrand, 1992: p.178.
[2] Cristalizados, corremos o risco de nos deixarmos ficar na rotina, contribuindo pouco para o avanço da profissão, da sua cultura, portanto.
[3] Pergunto-me, se esta não será uma importante dimensão a contemplar em qualquer programa de formação de professores.
[4] Desaprender é a acção contrária de aprender; não é bem esquecer, se bem que, com o tempo, o esquecimento possa acabar por resultar da acção de desaprender. O português do Brasil tem uma palavra que os dicionários de português europeu não contemplam: desaprendizagem – significa abrir espaço em nossas mentes para novas aprendizagens, eliminar modelos mentais que nos fecham para aprender o novo; ou então um convite a ver melhor o que aprendemos: desaprendendo reaprendemos. De certa forma, trata-se de recuar no trajecto, que o pensamento traçou.
[5] Explicar [explicare: desdobrar, desenrolar, estender] e implicar [implicare: dobrar em volta de, enrolar, envolver] derivam do verbo latino plicare, que significa dobrar.
[6] «Guardador de rebanhos» (excertos), in Alberto Caeiro. (Fernando Pessoa) Poesia. Lisboa, Assírio & Alvim, 2001: p.58 e 82.
[7] Dito assim, «não tenho mais do que...», até parece que digo que é fácil. Mas NÃO É.
[8] Se assim não for não é da relação professor-aluno que tratamos: um professor não perde o poder que tem, apenas porque decide larga-lo da mão a favor do aluno.
quarta-feira, 8 de setembro de 2021
Aprender a gostar de gostar
Daniel Lousada |
Adília Lopes escreveu a "Prazenteira", a partir de um verso que abre um poema de Álvaro de Campos: "Gostava de gostar de gostar".
O gostar, aqui, não é gostar de alguma coisa: é tirar prazer da sensação que o gostar, independentemente de quê, nos traz. Não é um gostar qualquer, portanto.[1]
Aprender a gostar de gostar! Será que se pode ensinar?
Ensinar a gostar de gostar é o desafio que, qualquer professor ou professora, enfrenta diariamente na sala de aula: "conseguir que, no fim, o aluno goste daquilo que, no princípio, não gostava nada".[3] Um desafio que, de um modo simplista, poderemos começar por aceitar, confrontando o aluno com a pergunta: o que é que eu gosto, desta coisa que não gosto?
"Não há experiência que eduque melhor um homem do que a descoberta de um prazer superior, que ele teria ignorado, se não se tivesse dado ao esforço de o conhecer".[4] Assim, porque gosto de gostar, esforço-me por gostar e não vou embora ao primeiro desapontamento; porque gosto de gostar, o gosto está no centro do que me faz pensar. Então, para ensinar a gostar, nada melhor do que convocar os objectos onde a questão do gosto está mais presente: o objecto de arte. Nada melhor do que a arte para colocar a questão do gosto no centro do que nos faz pensar: um desenho, uma pintura, um poema…e talvez, a partir daqui, apontar para os conteúdos onde a questão do gosto não é tão óbvia.
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[1] “ 'Gostava de gostar de gostar' ”: a oração mais parece uma afirmação redundante, dada a enunciação, por três vezes, do mesmo verbo, duas delas na forma do infinitivo impessoal e uma terceira na primeira pessoa do pretérito imperfeito. Lembrando uma cantiga, este verso inicial apresenta uma construção simples e fechada [com a dupla regência em “de” terminando com o ponto final], mas que permanece aberta quanto ao sentido [com o terceiro gostar empregado intransitivamente], numa mescla de acabamento e inacabamento" (Claudia Souza e Márcio Suziki >>>)
[2] in "Confissões" [Livro Terceiro]. Oeiras, Livraria apostolado da imprensa / Jornal Público, 2010: p. 57 ["Ainda não amava e já amava amar"].
[3] Paráfrase de António Nóvoa da seguinte expressão de Alain [pseudónimo de Émile-Auguste Chartier]: "Difícil é conduzir os homens a agradarem-se no fim, com o que, no princípio, não lhes agradava nada". In "Propos sur l'education". Paris, Quadrige/PUF, 1986.
[4] Alain [Émile-Auguste Chartier] "Propos sur l'education". Paris, Quadrige/PUF, 1986: pp. 13-15.
domingo, 29 de agosto de 2021
Reprovar ou reter, uma questão de semântica?
Os alunos não reprovam, ficam retidos, ouço dizer, ironicamente, desde que, nos inícios dos anos noventa, a palavra reprovação deu lugar a retenção em decretos e despachos, sem que, daqui, resultassem outros efeitos na progressão dos alunos, que passaram a ser retidos em vez de reprovados, no que foi entendido, por muitos, como apenas uma questão de semântica. E, no entanto, entre reprovação e retenção há uma distância enorme. A reprovação tem subjacente um juízo de valor que a retenção não tem. Quando reprovo alguém estou a dizer: O que fizeste é reprovável, isso não se faz; isto está errado, vai para o teu lugar e volta ao princípio.
terça-feira, 20 de julho de 2021
domingo, 18 de julho de 2021
Sobre a utilidade das reprovações, em dois pontos de vista.
Daniel Lousada
Ponto de vista do aluno que fui.
Como qualquer aluno que se preze, não fui imune a reprovações. Reprovei portanto. Reprovei no 4º ano do liceu, ao tempo considerado um ano de escolaridade muito propenso a este tipo de eventos.
Do que senti, quando me vi reprovado, recordo ter dito «Lá vou ter que empinar, outra vez, a “me§da” da botânica» [um dos conteúdos da disciplina de ciências naturais à qual, muito a custo, consegui positiva]. Reprovar significava [julgo que significa ainda] repetir todas as disciplinas, a partir do início, tenha ou não negativa a todas, saiba muito ou pouco ou coisa nenhuma de todas elas.
Não foi por culpa da botânica que reprovei. Mas isso não me dispensou de ter que voltar ao sistema reprodutor das plantas, de decorar novamente os nomes dos órgãos que compõem uma flor, de voltar a empinar os nomes das ordens e classes de plantas e plantinhas. E não pensem que à segunda o empinanço foi mais fácil!
Agora perguntem-me o que sei do que “aprendi” de botânica!
Não quero com isto dizer que o trabalho que a botânica me deu tenha sido inútil; que só o que recordamos vida fora é útil. Bem pelo contrário. O que aprendi de botânica não fez de mim um botânico. Mas deu-me a consciência de que um dia soube botânica, da mesma forma que em tempos soube resolver uma raiz quadrada, um saber que em qualquer altura posso recuperar, haja necessidade ou interesse em fazê-lo.
Poderia ser diferente?
Ponto de vista do professor que fui
Uma escola de lugar único [1 professor – 4 classes], final de um ano escolar, nos inícios dos anos 70. Aquela criança do 1º ano junta letras, soletra palavras em carreirinha e chega ao fim da frase sem memória do que leu no início. Ao ensaiar a conversa a ter com ela, dou- me conta que iríamos viver juntos outra vez, quer ela reprovasse quer não! Então, vou reprová-la para quê? – interroguei-me. Não fosse professor de uma turma que juntava as 4 classes e, talvez, não tivesse chegado à pergunta, confesso: haveria, certamente, outra turma, outro professor, em “melhores condições”, com quem repetir o percurso que não concluiu comigo. Olho-a então uma vez mais. Faltam-lhe automatismos na leitura, é certo, mas, surpreendentemente [mais atenta, talvez, ao que me ouvia dizer aos “grandes” do que à tarefa que tinha em mãos], sabia o que alguns da 4ª classe não sabiam sobre Viriato e as lutas que este travou com os romanos, que D. Afonso Henriques, foi o 1º rei de Portugal, que o rio que passa em Chaves é o Tâmega, que o comboio passava por Vidago, Vila Pouca de Aguiar e terminava na Régua, … E dei por mim a pensar na minha dificuldade em me organizar no meio de todos aqueles programas, que naquelas condições a divisão do programa por anos de escolaridade, por vezes, era mais empecilho do que ajuda. Então, procurei olhar os quatro programas como se fossem um só, na procura da ideia de um programa para cumprir em quatro anos.
Pensar a aprendizagem por ciclos de aprendizagem, para além do 1º ciclo não é tarefa fácil. E, pela manifestação de vontades a que assisto, não vislumbro a possibilidade de procurar alternativas nos sistemas educativos que, parece, resolveram ou estão em vias de resolver o problema. Continuo a ouvir dizer que Portugal não é a Finlândia ou um qualquer outro país mais bem posicionado nestes campeonatos. E não é de facto: nesses países vivem os que lá vivem; não são portugueses os que por lá moram; como não são portugueses os seus políticos e, já agora, os seus professores.
domingo, 13 de junho de 2021
Da Pedagogia aos pedagogos
Os conhecimentos, uma vez que se transmitem entre seres humanos, são indissociáveis da relação que permite a sua transmissão. Digamos que, num primeiro momento, podemos chamar a esta transacção pedagogia. Deste ponto de vista, a pedagogia não é, contrariamente à representação que habitualmente damos como certa, um simples veiculo, que transportaria o conhecimento de um individuo até ao outro; ela é o que une dois sujeitos a um objecto numa configuração singular, que determina largamente o uso, em si mesmo, do conhecimento. Porque um veículo pode ser mais ou menos rápido e potente, pode conter mais ou menos objectos e ser mais ou menos atractivo, mas o que é transportado é indiferente ao veículo, não mudando nem a natureza dos objectos transportados, nem a forma como se enviam ou recebem. Mas, em matéria de transmissão de conhecimentos, as modalidades da transacção mudam tudo. Todos o experimentámos já, e os alunos vivem-no diariamente.
Se a transacção assenta numa ameaça (uma sanção ou privação de afecto) o metabolismo da aprendizagem não produz conhecimentos «objectivos» novos, mas apenas um conhecimento que se inscreve numa relação de submissão, um conhecimento que coloca a criança numa relação de obediência ao outro, que só será mobilizado, com facilidade, perante uma nova ameaça. Do mesmo modo, se a transacção assenta na identificação com o outro, ou na sedução, há a forte probabilidade da mesma criança se apropriar do conhecimento, numa relação de dependência face à imagem idealizada que tem do transmissor. Supondo que o dito transmissor, por uma ou outra razão, venha a decepcioná-la, o que foi transmitido poderá ficar comprometido.
Pelo contrário, se a transacção se constrói a partir de um questionamento partilhado e uma descoberta formalizada, o conhecimento poderá ser metabolizado como objectivado: quem aprende será, ao mesmo tempo, mais sábio e mais autónomo: mais autónomo porque mais sábio e mais sábio porque mais autónomo. Com efeito, a autonomia não é uma capacidade «abstracta», independente dos conhecimentos adquiridos; constrói-se através de e com os conhecimentos, sempre que estes sejam transmitidos numa transacção emancipadora, que responda aos problemas que o professor soube partilhar, e a partir dos quais colocou recursos, explicações, obras à disposição do sujeito.
Assim, qualquer que seja a actividade de transmissão – seja familiar ou escolar, se desenvolva num clube ou num museu, diante de um computador, de um espectáculo ou de um livro – ela comporta uma dimensão propriamente pedagógica, que é preciso identificar e cujos desafios e efeitos devem ser analisados. Na sala de aula, o mais pequeno gesto tem, em si mesmo, um alcance educativo, diz algo do que se constrói enquanto relação com o saber e, num sentido mais amplo, do que se perfila como tipo de ser humano e de sociedade.
O filósofo Henri Bergson – que não podemos chamar, de ânimo leve, de «pedagogista» – explicava com prazer, a importância que atribuía à forma de corrigir testes: começava sempre pelas notas piores e tinha o cuidado de comentar cada teste, destacando os seus aspectos positivos; depois, à medida que as notas iam melhorando, começava com as críticas, até chegar às melhores dos quais destacava os erros mais graves. O aluno que falhava na sua dissertação, não ficava tão desanimado, uma vez que tinha visto reconhecido o que tinha feito bem, enquanto que aquele que tinha tido boa nota, via as suas insuficiências como algo a melhorar. Desta forma, tanto um como o outro encontravam-se em condições de progredir: o primeiro apoiado nos seus pontos fortes, o segundo desafiado a trabalhar as suas imperfeições.
Este episódio, um pouco antigo, tem o mérito de realçar que nada no acto de ensinar é independente de um projecto pedagógico explícito ou implícito. Não há transmissão pura, nem aula, em que os conhecimentos circulem numa relação ética consistente, que não antecipe o futuro nem prefigure o mundo. Ninguém pode negar, como a própria Hannah Arendt defendia, a necessidade de «transmitir o mundo». Isto implica, evidentemente, questionar conteúdos e métodos. Mas responder a perguntas como «o que ensinar?» e «como?», não nos dispensa de fazer a pergunta fundadora: que futuro construímos para os nossos filhos, através da forma como vivemos com eles o acto de transmissão, em si mesmo? Neste sentido, não seria rigoroso dizer de um professor que «ele não tem pedagogia». Há sempre uma pedagogia mesmo que pareça discutível, irresponsável, ineficaz ou que a rotulemos de tradicional, mas que é preciso olhar de perto, se queremos tentar compreender o que se joga na sala de aula.
Por conseguinte, a pedagogia está presente em toda a transmissão, mesmo coextensiva com esta última: a forma como os adultos organizam, vivem e usam as instituições educativas, para garantir o vínculo entre gerações, remete-nos sempre para escolhas as quais, evidentemente, temos todo o interesse em encarar de frente, para aprofundá-las e compreender o que está em jogo, assumi-las ou recusá-las.
«Obedecemos sempre a uma teoria, mesmo aqueles que se queixam de teorias. Quem não tem uma de qualidade, reconhecida, apoiada em estudos, segue talvez, sem o saber, uma pouco credível, que, não sendo objecto de reflexão ou crítica, não é sequer necessário concordar com ela mesma», escrevia já Henri Marion no seu Dictionnaire de pédagogie et d’instruction primaire,.. [3]
Mas se bem que haja sempre pedagogia na transmissão, é sempre de uma pedagogia que se trata. Por vezes esta pedagogia leva-nos a uma doutrina bem identificada, permitindo-nos falar de «pedagogia socrática», «pedagogia Freinet», «pedagogia Montessori» ou, mesmo, «pedagogia institucional». Outras vezes, trata-se de um conjunto de convicções e práticas mais ou menos precisas, que derivam quer de uma tradição («como a aula dialogada») quer de uma inovação da moda («como a aula invertida»), com frequência, uma e outra tão pouco analisadas e questionadas.
Pessoalmente creio que a compreensão, por parte dos actores sociais, do que «fabricam» diariamente, constitui um incentivo decisivo para avançar, ao mesmo tempo, até um maior profissionalismo e exercício da cidadania. Assim, é melhor que vejamos o que está em jogo e que, desta forma, possamos contribuir para inscrever a sua actividade no debate democrático, necessário à construção do bem comum. No entanto, não deixo de ter em conta os riscos que correm os profissionais, quando se aventuram por este caminho, porque a instituição prefere, com frequência, os executores que se colocam ao serviço da «máquina», aos que teimam em querer colocar a máquina ao serviço dos seres humanos. Desta forma proletarizamo-nos, no sentido estrito da palavra: tal como a máquina obrigava, durante a revolução industrial, a trabalhar por turnos, com o objectivo de rentabilizar o investimento, a «máquina-escola» exige, hoje em dia, que se sirva escrupulosamente os seus objectivos, utilizando sistematicamente os métodos científicos e preenchendo meticulosamente as suas tabelas de Excel.
Digamo-lo claramente: a falta de cultura pedagógica dos nossos responsáveis institucionais, a ignorância da história das doutrinas educativas, por uma boa parte dos professores, o retrocesso ou mesmo o desaparecimento total da reflexão pedagógica da formação inicial e contínua dos professores, permitiu que a «máquina-escola» imponha, no seu conjunto, procedimentos cada vez mais estandardizados, em nome da sujeição aos resultados, da lealdade institucional e da verdade científica. As classificações internacionais ditam a sua lei de ferro: a escola deve preparar os alunos para que estes estejam conforme as classificações que estes testes apontam; e os professores estão acima de tudo ao serviço deste objectivo. A evidence-based policy não se discute.
Ora, justamente, numa democracia, se há algo que é preciso fazer com a educação e a pedagogia é discuti-las. São por excelência objectos de discussão, já que determinam, e muito, o nosso futuro. São objectos políticos no sentido mais nobre do termo. No entanto, para discutir pedagogia falta ainda compreender como se constroem os seus discursos e os seus modelos. Pois bem, quando analisamos, com um pouco de rigor, a história das doutrinas pedagógicas, vemos que, de Jean-Baptiste de la Salle, inventor das classes homogéneas e do modelo simultâneo, a Carl Rogers, promotor de um ensino não directivo, assente nos princípios da psicologia de Lewin, passando por Makarenko, que depois da revolução bolchevique instituiu na colónia Gorki, um sistema de socialização assente na rotação sistemática de tarefas e funções, ou por último Claparède, fundador do Institut Jean-Jacques Rousseau de Genebra e autor em 1921 de L’École sur mesure, todos os sistemas pedagógicos articulam, sistematicamente, três elementos: por um lado, as finalidades teológicas, filosóficas ou políticas; por outro, os conhecimentos disponíveis sobre a criança e seu desenvolvimento, sobre as aprendizagens e sobre as condições de socialização; e por último, as propostas práticas, institucionais ou instrumentais.
O que complica as coisas é que estes três elementos são, ao mesmo tempo, absolutamente necessários e totalmente heterogéneos entre si. Sempre educamos para alguma coisa, apoiando-nos nos conhecimentos que permitem ter controlo sobre o real, em instituições e com técnicas capazes de dar as mãos ao seu projecto, como dizia Pestalozzi, que durante toda a sua vida procurou encarnar, com o seu método, a filosofia do seu mestre Jean-Jacques Rousseau. Não obstante, se bem que estes três elementos devam constituir uma configuração coerente, pertencem a registos distintos, que dispõem de sistemas de legitimação radicalmente diferentes: as finalidades remetem-nos para uma reflexão sobre os valores, sobre os conhecimentos e dados estabilizados pela investigação e as práticas para uma criatividade instrumental. Devemos, portanto, sobre todas as propostas pedagógicas, perguntarmo-nos, ao mesmo tempo, sobre a sua coerência interna e sobre a validade dos elementos que configuram de forma original.
De facto, existem «pedagogias» que se limitam a justapor finalidades e práticas sem estudar, aplicando os conhecimentos de que já dispomos, se as suas práticas são as adequadas para atingir as suas finalidades.
Queremos, por exemplo, formar para a solidariedade e fraternidade (finalidades importantes) através da colaboração. Para isso, recorremos ao trabalho de grupo e à elaboração de projectos colectivos, organizamos viagens de estudo, criamos uma página web, praticamos teatro e jogos colectivos, e até promovemos comunidades de crianças em autogestão. Mas estamos realmente seguros, de que estas actividades promovem uma autêntica colaboração? De facto, a psicologia ensina-nos que para que todos contribuamos para o progresso colectivo, é preciso que o grupo possua uma rede de comunicação «homogénea», que cada um tenha algo a trazer aos demais e que o trabalho colectivo não se possa realizar sem a implicação de todos; que o funcionamento do grupo tenha sido desenhado de forma a que ninguém possa assumir o poder indevidamente, e que ninguém fique afastado ou encerrado num papel secundário de autómato. A generosidade das intenções não garante, por si só, a eficácia do dispositivo; é preciso que este seja concebido e regulado, em função do que sabemos sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente, das interacções entre pares, da relação entre os objectivos de aprendizagem de cada um e a tarefa a realizar por todos. [4]
Sabemos bem, por exemplo, desta aliança entre, por um lado, um radicalismo ideológico que transforma a luta contra as desigualdades de acesso ao conhecimento, num princípio absoluto e, por outro, a busca sistemática, em todas as áreas, de todas as manifestações possíveis destas desigualdades. Em nome de uma solidariedade legítima com as classes populares, procuramos por todo o lado, graças à «sociologia crítica», o factor, por mínimo que seja, que possa aumentar ou deixar que perdure a injustiça; podemos identificá-lo na economia, na organização escolar, nos estereótipos transmitidos por programas e manuais, e, claro, nas próprias práticas pedagógicas, elas mesmas, suspeitas de falta de lucidez, neste domínio. E com razão, evidentemente. Nunca se é suficientemente lúcido, em tudo o que constitui um entrave ao primeiro dos direitos da criança: o direito à educação. Bourdieu – ou mais precisamente uma interpretação «bourdieusarde» de Bourdieu – desenvolve, com enorme eficácia, uma retórica de denúncia, assente em estatísticas implacáveis ou terríveis estudos de caso. O perigo está, então, em conjugar radicalismo com impotência: «Não mudar nada antes de tudo mudar», denunciava já nos anos 60, o discípulo de Freinet e fundador da «pedagogia institucional» Fernand Oury. Porque, instalar-se na postura de revolucionário conservador, é definitivamente bastante cómodo. Queremos uma «mudança de lógica» da sociedade e da instituição escolar. Exigimos «meios que rompam radicalmente com a política de austeridade e que permitam o desenvolvimento do serviço à altura das ambições da república». Negamo-nos a «inclinarmo-nos ante os ditames tecnocráticos de uma administração totalmente convertida às virtudes do neoliberalismo». E não temos a mínima tolerância com aqueles que procuram, todos os dias, criar alguns espaços de emancipação possível. A doutrina não tem apelo: entre a ilusão e a válvula de segurança, os militantes pedagógicos não fazem mais do que reforçar um sistema que precisa, pelo contrário, ser combatido passo a passo.
E aqui estão os profissionais esmagados entre finalidades, tão generosas como gerais, e conhecimentos científicos, tão indiscutíveis como implacáveis. Por último restam aqueles que afastando toda a reflexão sobre as finalidades fingem poder basear as práticas pedagógicas somente em dados científicos.
O cientificismo, essa velha ilusão… mesmo que acreditemos estar na vanguarda da modernidade. A crença naïf na omnipotência da ciência tem as suas origens nas fantasias mais arcaicas. No século XIII, por exemplo, Frederico II de Hohenstaufen, à frente do poderoso Sacro Império Romano Germânico, rodeou-se dos maiores sábios da época, para resolver um problema que, em sua opinião, era decisivo na educação das crianças: qual era a sua «língua natural»? Que língua falariam, de forma espontânea, se nenhum adulto lhe dirigisse a palavra, se nenhum condicionamento social interviesse no seu desenvolvimento? Retirou os recém-nascidos a várias mães e colocou-os à responsabilidade de amas, que os criaram com máscara e foram proibidas de pronunciar qualquer palavra que fosse, diante delas. Mas o príncipe não pôde averiguar qual era a «língua materna» do homem, porque os bebés, assim tratados, com total carência de afectividade e relações, morreram muito rapidamente….
Embora, evidentemente, a ninguém ocorra reproduzir semelhante experiência, o homem continua fascinado pela ideia de chegar ao conhecimento das «leis naturais da criança» [5] e de que, uma vez descoberto o seu funcionamento mental, seria possível prescrever, com certeza total, os métodos que permitiriam o seu desenvolvimento óptimo. No século XIX foi a frenologia que encarnou esse projecto, com os desvios racistas e eugénicos que já conhecemos. [6] Na década de 1920, vimos, de vez em quando, esta perspectiva no que se denominou de «psicopedagogia», apoiada principalmente nos trabalhos de Piaget, e que propõe uma visão prototípica da aprendizagem, ocasionalmente chamada «construtivismo». Piaget descreveu o desenvolvimento da inteligência, colocando em destaque procedimentos mentais regidos por um duplo processo de assimilação (o sujeito incorpora a exterioridade) e acomodação (o sujeito transforma-se, nesta relação, com o real). Segundo ele, graças a este processo, o sujeito passa de um estado ao outro e pode, progressivamente, construir conhecimentos novos. Mas o que procurava Piaget era o que denominou o «sujeito epistémico», quer dizer, o «sujeito em estado puro», na sua «estrutura mental universal». Ninguém pode censurar que o procurasse e que realizasse toda uma série de observações e experimentações, para neutralizar, precisamente, os factores contingentes, diferentes conforme os sujeitos e os contextos nos quais cresciam. No entanto era – e continua a ser – muito arriscado apoiar-se somente nos seus trabalhos, para criar práticas pedagógicas, nas quais inevitavelmente, intervêm dimensões afectivas e socias, relacionais e institucionais. Seria confundir uma metodologia científica perfeitamente legítima, que isola deliberadamente certas determinantes, com a realidade na sua complexidade; seria fazer ontologia com a epistemologia, sem ter em conta os factores que foram omissos, de forma sistemática, nem os valores aos quais não se deu direito de entrada. Por este motivo, sem dúvida, a psicopedagogia foi mais objecto de ensino para os alunos das «escolas normais» (de magistério), que não transformou, significativamente, as práticas pedagógicas. [7]
Esquecida a psicopedagogia, chega a neuropedagogia! Se acreditarmos no que nos diz esta nova disciplina será possível, graças aos conhecimento dos mecanismos cerebrais, que todas as crianças acedam à aprendizagem, até mesmo determinar o seu comportamento, em áreas tão decisivas para a construção da sua personalidade, como a atenção, a motivação, a criatividade, o sentido de responsabilidade, etc. As neurociências, na medida em que permitiriam construir uma autêntica ciência da «vida mental» [8], proporcionar-nos-iam, desta forma, os meios para estimular e estruturar a actividade neuronal, susceptível de modificar o estado mental ou afectivo da criança, tudo em função do que queiramos desenvolver nele. Sempre a mesma fantasia: passar do conhecimento dos mecanismos «naturais» à prescrição sistemática de boas ferramentas, para ensinar e aprender. Ignorar a questão das finalidades em favor de um cientificismo superficial!
Como destacava o filósofo Emmanuel Fournier, «as representações neurocientíficas insinuam-se-nos. Infiltram-se na nossa linguagem e condicionam o nosso pensamento. Desde então, na nossa forma de falar, já não procuramos o prazer, mas as hormonas que nos dão esse prazer. São os nossos lóbulos frontais que planificam os nossos actos, os nossos circuitos da emoção que dão cor às nossas vidas com alegria, etc. E deixamos que esta linguagem pense por nós, com tanta naturalidade, que nos colocamos nas suas mãos com a maior das inocências. Quem ousaria revelar-se contra a sua gramática? [9]
Eficácia é a palavra-chave para aqueles vêem na neuropedagogia uma forma de revolucionar o sistema escolar e que nos deixa antever perspectivas assustadoras. Assim, acreditando no médico e especialista em inteligência artificial Laurent Alexandre, «a era da ideologia pedagógica está a chegar ao seu fim, para dar lugar à prova estatística do «learning analytic». A aprendizagem converte-se numa autêntica ciência, apoiada na observação da estrutura do cérebro e dos seus modos de resposta. O sistema irá sair da idade das manualidades para a idade da tecnologia […]. O aparecimento de gravadores cerebrais não invasivos, baratos e capazes de medir continuamente numerosas constantes, permitirá relacionar estes dados com as nossas características cognitivas, para optimizar o ensino» [10]. Desta forma, segundo ele, poderemos aceder, rapidamente, a um conhecimento preciso das características cognitivas, afectivas e sociais de um indivíduo, a partir da análise de seu telemóvel. E esboça o seguinte: bastará distribuir, o mais depressa possível, tabletes e telemóveis entre as crianças, e a «inteligência artificial dos gigantes informáticos permitirá determinar, com grande precisão, as melhores características pedagógicas para cada aluno». Rapidamente, poderemos desenvolver o neuromarkting sistemático e vender programas de ensino e educação – mesmos de reeducação – aos pais e, desta forma, cada criança poderá «beneficiar» de um «ensino estritamente personalizado» e dispensar-se de ir à escola, porque pode trabalhar, todo o dia, diante de seu monitor ligado a um computador gigante, provavelmente nas ilhas Caimão, para poder fugir aos impostos… Bom, como Alexandre, confiemos que os GAFA [11] não fiquem com o monopólio de semelhante tecnologia. Convencido de que não é possível travar o progresso da tecnologia, o seu desejo é que a educação pública se transforme, o mais depressa possível, num «viveiro de start-ups inovadoras», para que os nossos filhos não tenham uma «educação made in Califórnia, em 2040» [12].
No seu livro La guerre des intelligences. Comment l’intelligence articielle va révolutionnar l’éducation [13], Laurent Alexandre vai, todavia, mais longe: afirma que a escola é «uma tecnologia obsoleta e prevê a sua industrialização» e «robotização». E explica: «No fim, a escola encarregar-se-á mais de gerir cérebros do que transmitir conhecimentos». É verdade que o êxito mediático de Laurent Alexandre e o seu estatuto de cronista, em vários meios de comunicação social, não fazem dele especialista em previsões, reconhecidas pela comunidade científica, mas parece representativo de uma violação de fronteira que, a verificar-se, seria, no mínimo, preocupante. De facto, em sua opinião, perante o «confronto de inteligências» hoje aberto, os estados deveriam utilizar as «biotecnologias do desenvolvimento cognitivo», mobilizar todos os recursos do neuro-aumento, para combater as desigualdades genéticas, e melhorar, sistematicamente, o coeficiente intelectual dos nossos filhos: «a escola transformar-se-á transhumanista e será considerado normal modificar os cérebros dos alunos, utilizando toda a panóplia de tecnologias possíveis» … No entanto, Laurent Alexandre teme que a hibridização de computador e cérebro nos leve até um «transhumanismo radical» - «a saída do cérebro para fora de si mesmo», a sua «automatização completa» até ao ponto de ser possível descarregá-lo» - e, para evitá-lo, sugere que se substitua o lema francês Liberdade, Igualdade e Fraternidade pelos três pilares da nossa humanidade, segundo ele: «preservar os nossos corpos de carne e osso», «salvar a nossa individualidade» e «deixar espaço para ao acaso». Pois, fiquemos então tranquilos! Ele, que acaba de explicar-nos que a nostalgia, que tenta travar o crescimento das neurotecnologias e da neuroeducação, são equiparáveis a um sindicato de ferradores que, em, 1905, tentou opor-se à introdução do automóvel, aceita traçar linhas vermelhas, para que possamos conservar a nossa dignidade! Dignidade, um conceito, ainda assim, mais antigo que o sindicato de ferradores! Talvez um sinal de uma ruptura possível com a ilusão cientificista do progresso infinito, pela ciência?
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[1] Immanuel Kant, Réflexions sur l’éducation (1776-1787), Paris, Vrin, 1993.
[2] Hannah Arendt, «La crise de l’éducation», La Crise de la cuture (1967), París, Gallimard, «Folio», 1989.
[3] Publicado sob a direcção de Ferdinand Buisson no tempo em que foi criada a Escola da República francesa. Ferdinand Buisson, Dictionnaire de pédagogie et d’instruction primaire, edição compliada por Patrick Debois e Philippe Meirieu, Paris, Robert Laffont, «Bouquins», 2017, p. 694.
[4] Dediquei os meus primeiros trabalhos científicos a esta questão, mostrando o carácter altamente ambíguo das práticas de grupo não reguladas: cf. Philippe Meirieu, Apprendre en groupe?, tomo I: Itinéraire des pédagogies de group, tomo II: Outils pour apprendre en groupe, Lyon, Chronique sociale, 1984.
[5] Les Lois naturelles de l’enfant é o título da obra de sucesso de Céline Alvarez publicada em 2016, pelas edições Les Arènes.
[6] A frenologia é uma teoria proposta pelo neurologista austríaco Franz Joseph Gall (1757-1828), sobre a localização das funções cerebrais e a correlação entre a forma do crâneo e as características das pessoas (está na origem, por exemplo, da teoria do criminoso nato). A obra principal de Gall viria a ter o título (traduzindo para português), Anatomia e fisiologia do sistema nercoso em geral e do cérebro em particular, com observações sobre a possibilidade de reconhecer várias disposições intelectuais e morais do homem e dos animais pela configuração da sua cabeça.
[7] O grupo francês de educação nova (GFEN) falaria de auto-socio-construção dos conhecimentos. Inscrito numa intenção política forte (Todos somos capazes!), apoiando-se nos trabalhos de Henry Wallon e propondo situações de aprendizagem centradas na génesis do saber, diferencia-se da psicopedagogia tradicional e propõe uma pedagogia coerente. E aqueles que, como eu trabalham, nas situações problema, tomam de empréstimos alguns elementos de Piaget e colaboradores, mas sobretudo de Vygotsky (a zona de desenvolvimento proximal) e de Bachelard (o conceito de obstáculo), esforçando-se por articulá-los à volta do conceito de projecto – proveniente da educação nova –, por inscrever-se numa finalidade de transmissão/emancipação. Ao procurar realizar uma tarefa, ao mesmo tempo difícil e acessível, o sujeito deve encontrar um objectivo-obstáculo que, graças a um conjunto de recursos, poderá superar e, de seguida, transferir à sua própria iniciativa. (Philippe Meirieu, Apender sim, mas como?, Porto Alegre Artmed 2002).
[8] Stanislas Dehaene, Vers une science de la vie mental, Paris, Collège de France/Fayard, 2014 e Le Code de la conscience, Paris, Odile Jacob, 2014.
[9] Le cerveau, gage de bonne éducation?, conferência de Emmanuel Fournier no colóquio L’Aventure des neurosciences», Angers, 2 de Junho de 2015.
[10] Laurent Alexandre, L’Éducation doit libérer ses innovateurs, L’express, 18 de Outubro de 2017, p. 22.
[11] Acrónimo de "Google Amazon Facebook Apple".
[12] Pode estar tranquilo! De acordo com o artigo de Caroline de Malet, no Le Figaro, de 10 de Abril de 2018 (Como a Inteligência Artificial está a penetrar no mundo da educação), as Start-ups francesas, aliadas, por vezes, de grandes editoras – como Hachett e – e relacionadas com grupos internacionais – como Hnewton –, trabalham com afinco, na implementação de assistentes pedagógicos, que propagam, a partir da análise do funcionamento cognitivo de cada aluno e graças à inteligência artificial, conteúdos e estratégias de aprendizagem personalizados. Segundo dizem, a tecnologia está preparada. É apenas uma questão de vontade e de investimento».
[13] Paris, Jean-Claude Lattès, 2017.