LER na versão em PDF >>> O Início da História
Quando entramos na profissão, Freinet era um nome distantemente vago, associado a “curiosidades pedagógicas” como Método Natural e Texto Livre que, de tão distantes das nossas experiências sensíveis, só com grande esforço conseguíamos traduzir nas nossas práticas, mais como forma de romper com uma escola que detestávamos, do que opção politicamente assumida. Estávamos no início da década de setenta e a “Primavera marcelista”, apesar do seu clima político mais ameno, não dava espaço a grandes aprofundamentos na nossa relação com todo aquele fascínio.
Com o triunfo da “Revolução de Abril”, abre-se a oportunidade à criação de espaços alargados de discussão, que analisam a língua para além do campo restrito da didáctica, discutindo-a na sua dimensão social e política mais ampla. O debate à volta do "método natural" e do "texto livre" desenvolve-se neste contexto. E, com Freinet, passamos a viver um tempo em que podíamos olhar a escrita como um objecto que aprendemos a dominar naturalmente, bastando, para tanto, que nos fosse apresentado de uma forma semelhante à fala, ao serviço de uma expressão que desejávamos ser manifestação de liberdade. Correm, então, as décadas de setenta e oitenta, com a imprensa-freinet e o limógrafo a surgirem como tecnologias de ponta ao serviço deste propósito.
Hoje, de texto livre fala-se pouco, enquanto que para o “método natural”, entendido como denominação de um processo de iniciação à escrita, se procura outra expressão que identifique a dimensão não-natural do sentido de Freinet. É que, sabemos hoje, uma relação eficaz com a escrita não resulta de um processo tão natural assim, sendo necessário o concurso de alguns artifícios para que uma relação feliz se desenvolva. E, perante as evidências que a investigação apresenta, questiona-se o conceito de “método natural”, mas mantendo o apoio às práticas de ensino que lhe estão associadas.
Por quê (ou para quê) preferir rejeitar um nome, em vez de actualizar o sentido atribuído por Freinet a um adjectivo que, no essencial, pretende reforçar ou apoiar um processo livre e espontâneo de aquisição de um saber?
Rigor científico, dirão alguns, não vamos qualificar de natural uma acção que não o é! Outros dirão que há nas palavras outros sentidos, que escapam aos sentidos que a ciência oferece e entendem que, com estes outros sentidos, se conserva a memória, evitando rupturas inúteis com a história, que só nos fragilizam. As palavras, dizem, “revestem-se do sentido prático que os hábitos sociais lhe emprestam”,[1] sustentando que há um sentido prático, hoje, que os “hábitos sociais emprestam” à palavra “natural”, dificilmente captado por “global”, “interactivo” ou outra palavra qualquer: os sentidos não-naturais de Freinet ganham corpo numa certa forma do ser natural de hoje!
Contestado o adjectivo “natural” atribuído por Freinet ao seu método, surge o método interactivo para substituí-lo. Não é, do nosso ponto de vista, uma substituição feliz. Desde logo porque qualificar de interactivo um método de ensino, além de uma redundância, é uma desvalorização do sentido que, com Freinet, procurávamos para a escrita, já que se perde a carga ideológica que este natural, inscrito numa história que marca o modo como vivemos a profissão, acrescenta a um método só de leitura na sua aparência.[2] Depois, “interactivo” é uma designação fria que, importada da informática, não traz o calor próprio da relação que se estabelece entre pessoas, para além de nada dizer sobre a origem dos textos que apoiam a aprendizagem. De um equipamento dizemos que é interactivo quando interage connosco. Das pessoas não; elas são-no naturalmente.
Numa outra perspectiva, alguns especialistas questionam a própria necessidade de um método de ensino. Frank Smith, por exemplo, afirma que “o mundo está cheio de especialistas prontos a promover o seu remédio favorito para os problemas de leitura. Mas se uma autoridade diz que o método A é melhor que o método B, como poderia uma terceira opinião tirar as dúvidas do professor. O professor não precisa de concelhos, ele precisa compreender (…). Todos os métodos de ensino de leitura parecem ter algum sucesso, com algumas crianças, algumas vezes. (…) mas infelizmente nenhum método tem sucesso com todas as crianças”.[3] Defende, então, que o importante, no ensino da leitura e da escrita, não se situa no método, entendido como mapa pré-traçado com o caminho a seguir, mas na compreensão que o professor tem acerca da forma como estas aprendizagens se processam.
Fernando Hernández, numa perspectiva idêntica e com alguma contradição à mistura, dá conta de “uma concepção educativa, mesmo entre os que abordam a língua escrita a partir de enfoques psicogenéticos, que continua pensando que todo o referencial (de pesquisa e de análise) dever ser transformado em um método, em um saber fazer”, traduzido numa sequência didáctica, para defender que “um marco de interpretação do que acontece na sala de aula não tem que ser traduzido em uma proposta didáctica”.[4] No entanto, reconhece que isto acabe por ser inevitável se esta tradução der certo.
Embora concordemos que o enfoque deva estar na aprendizagem e não no ensino como receita, defendemos que o “método” precisa estar presente, como guia que, contendo o que sabemos sobre o modo como se desenvolve a aprendizagem, traz consigo o referencial que o professor precisa. Com efeito, entendemos que o incómodo da proposta a que o método dá forma, parece não estar tanto na proposta em si mas na transformação das pesquisas numa hierarquia de procedimentos, que amarra o ensino da língua escrita. Neste sentido, o que defendemos, talvez não seja outra coisa mais do que a passagem dos métodos de ensino da leitura e escrita para o seu ensino com método. Então, o enfoque já não está no método mas nas aprendizagens que as rotinas a ele associadas permitem desenvolver. No entanto, o método – do grego “methodos”: caminho para chegar a um fim – contínua presente. E é nossa opinião que o “método natural” se inscreve na busca da compreensão deste caminho, num processo que se assemelha mais a um método de investigação acção, que procura adequar, em cada momento, o ensino ao “local” em que a criança se situa no trajecto que a leva à escrita.
Aprender Naturalmente
Quantas vezes, agindo de acordo com o que sabemos, desconhecemos o percurso que nos fez saber: falamos porque sabemos falar, mas em momento algum recordamos que quisemos aprender a falar.[5] São aprendizagens naturais – algumas das quais, de certa forma, fazem parte do nosso instinto de sobrevivência – que decorrem do nosso desenvolvimento, sem intenção ou objectivo definido à partida. Quer dizer, sem objectivo não traçamos caminho: caminhamos, simplesmente, qual “Alice no País das Maravilhas”, quando desconhecemos o lugar a procurar[6] – estamos onde estamos porque, simplesmente chegamos aqui –, num percurso que só retrospectivamente será possível reconhecer. Ora, a aprendizagem da leitura e da escrita esconde uma fase assim. Uma criança não aprende a escrever de uma forma natural mas descobre, com os outros, o que é a escrita, naturalmente.
Freinet, ao não identificar esta diferença entre descobrir e aprender, acreditava, com alguma contradição à mistura, que fala e escrita se inscreviam em processos idênticos de aprendizagem. De acordo com esta crença, defendia, então, que para aprender a escrever bastaria escrever, como caminhar para aprender a caminhar, ou andar de bicicleta para aprender a andar de bicicleta (com as inevitáveis quedas à mistura), através do que designava por tacteamento experimental. No entanto, também admitia que até o andar de bicicleta solicita outros processos para além do tacteamento experimental e, por maioria de razões, o acesso à escrita não seria tão simples assim. Esta contradição, não racionalizada por Freinet, deve-se, pode dizer-se, “à diferença real entre dois tipos ou níveis de aprendizagem que podem ser teorizados por referência a uma ideia proposta por Vygotsky quando ele distingue, ao nível ontogénico, dois estádios de aprendizagem da escrita, a saber: aquele da pré-história da escrita, durante o qual a criança aprende para que é a escrita (descobre); e aquele da história individual da escrita, que é aquela da diferenciação da língua escrita” (aprende a escrever).[7] Como na passagem entre estas duas “histórias” não são visíveis rupturas, a dificuldade em reconhecer a existência de uma fronteira a dividi-las é evidente.
Freinet foi sem dúvida um dos pioneiros no que se refere ao reconhecimento da importância atribuída à primeira fase da aprendizagem da escrita; uma fase caracterizada pela aproximação inicial que a criança faz à leitura da escrita que compõe o seu espaço e que desenvolve através da observação do gesto do adulto. Uma aprendizagem natural no sentido em que, tal como na fala, em momento algum recordamos o momento em que quisemos aprender para que serve a escrita; recordámos apenas que quisemos aprender a ler e a escrever (ou que alguém quis por nós): “venho para a escola porque quero aprender a ler e a fazer contas”.
O adjectivo “natural” associado à designação de um método de ensino da escrita resultou, assim, desta evidência – mais evidente hoje do que no tempo de Freinet – de que a escrita faz parte do nosso mundo, impondo-se olhos adentro. Mesmo quem não domina a escrita não consegue ver-se livre dela. De uma forma ou de outra a nossa vida será sempre afectada por ela. E se a sua aprendizagem não decorre do próprio desenvolvimento da pessoa da mesma forma que o andar ou o falar, necessita, por isso, de outros interfaces. Quer dizer, a janela está ali desafiando o nosso olhar, disponível para revelar os segredos que guarda se estivermos dispostos a abri-la. Só que interpela o olhar sem chamar ao ouvido que nos faz virar a cabeça. O outro está ali mas, diferentemente da fala, está distante, precisando por isso de ser convocado por quem olha o que é dito (escrito). Esta faceta da aprendizagem da escrita, que a separa da fala, tem a ver com aquela atitude em relação à linguagem que Vygotsky chama de voluntária e consciente. A fala dispensa a necessidade desta consciência; quer dizer, quando falamos não precisamos tomar consciência da fala enquanto tal. Da escrita dizemos, quando muito, que pode ser “naturalmente” vivida, com espontaneidade.[8]
E, de facto, começa por ser espontânea com as primeiras manifestações de escrita vividas pela criança, que não são mais do que tentativas (tacteamentos, para usar o termo de Freinet) de colocar em relação fala e representação, antes de ser condicionada no decurso do processo de aprendizagem/ensino. Um condicionamento de que pode libertar-se, com uma escrita construída colectivamente, continuamente recriada em rituais de passagem (ensino), no decurso dos quais é reinventada pelas crianças,[9] transformando-se no artifício que, uma vez incorporado, somos capazes de viver com espontaneidade.[10] Quer dizer, a leitura torna-se tão natural que, uma vez adquirida esta capacidade, “quando olhamos para uma palavra temos mesmo de a ler. (...) não podemos simplesmente observar uma palavra e não ler”.[11]
Dos Nomes das Coisas às Coisas dos Nomes
Tudo isto são construções de artifícios em que homens e mulheres progridem. Esta é a artificialidade em que vivemos todos os dias o dia todo”, dizia Sérgio Niza, em 1990, na sessão de encerramento do XXIII0 Congresso do Movimento da Escola Moderna, referindo-se à cultura que, no seu todo, condiciona as nossas vidas. “Hoje não sabemos sequer o que é ser natural (…) “Os nossos "métodos naturais não têm nada de natural. (…) mas temos é, sem medo e sem preconceito a mais, que descobrir como é que na vida que nos é dado viver as coisas acontecem”. E, no entanto, “natural” surge com idêntico propósito: é a fórmula encontrada por Freinet para combater as barreiras levantadas pela “escolástica” que nos afastam da vida. Mas hoje temos uma visão menos romântica deste combate e, sabendo que já “não temos modos naturais de estar se não os conquistarmos”, lançamo-nos, então, na procura dos “processos não naturais do sentido de Freinet”,[12] para descobrirmos que, afinal, “ser natural” não significa estar imune a condicionalismos. Até o desenvolvimento “natural” da criança não ocorre sem o condicionalismo que se realiza na família ou outros ambientais sociais mais ou menos alargados.
Os pressupostos que estão na base do “nascimento do método natural” mantêm-se e, quer queiramos quer não, quase meio século após a morte de Freinet, a escola não encontra forma de manter a forma que deu forma aos saberes que acolhe: “os conteúdos escolares são ensinados e aprendidos fora dos âmbitos naturais de sua produção e aplicação”.[13] No entanto, não sabemos se hoje seria possível o “nascimento de um método natural”. E esta dúvida não está na possibilidade de ocorrerem ou não, “aprendizagens naturais”, signifique o que signifique esta expressão. A questão não se encontra nem no “método”, nem no adjectivo que o qualifica. Mas, dado o “preconceito científico” que recai sobre esta associação, duvidamos do significado que os dois assumiriam, hoje, se não viessem carregados das memórias de uma história conjunta.[14] Entretanto, a contaminação com que a didáctica continua a carregar o “método” faz com que a aprendizagem que a escola promove conflitue com a aprendizagem própria da vida.[15]
Freinet foi um dos pedagogos que melhor compreendeu a natureza do conflito, entre as aprendizagens da escola e as outras. Procurou, então, atribuir sentido às experiências que as circunstâncias práticas da vida nos proporcionam, facilitando a elaboração dessas experiências na escola ao dar-lhes uma forma visível. Embora o seu discurso se possa inserir no discurso próprio do discurso didáctico, o seu posicionamento reflectia já a procura de uma didáctica que fosse “a negação mesma da didáctica”, tal como é proposto por Sérgio Niza,[16] denunciando o carácter “antinatural” (hoje diremos, talvez, anticultural) da “escolástica”.
Os nomes estão aí para dar nome às coisas. E nós fazemo-las viver com os nomes que lhes damos. Foi esse o papel do “método natural”: fazer viver uma parte importante do que somos hoje, até que decidimos precisar doutros nomes para as coisas que fazemos. Mas há um outro sentido na relação das coisas com os nomes que as revelam, que nos temos esquecido de pensar: na arte, por exemplo, há um sentido inverso que permite “dar coisas aos nomes”.[17] Na perspectiva que trazemos aqui, “dar coisas aos nomes “é dotar os nomes de outros sentidos. Dito de outro modo, a relação de um significante com o seu significado não é uma relação estável; ela vai-se alterando ao longo do tempo com as mexidas que os usos sociais fazem nesta relação. Não basta dar um nome diferente a uma coisa, é preciso que ela seja mesmo diferente. Em contrapartida um nome, com o tempo, pode vir a revelar outros significados.
“Natural”, não tem hoje o mesmo significado que tinha, por exemplo, no tempo de Rousseau; adquiriu outros sentidos. Mas isto não nos pôs a correr ao encontro de outro nome para “este natural” que deixou de ser o “outro”. O nome manteve-se, só que incorporou outros sentidos que não tinham condições de ser contemplados então.
Vemos nas aprendizagens naturais, de ontem, com os processos informais, de hoje, uma aproximação de sentidos. Quer dizer, identificamos, nas aprendizagens informais, os sentidos não naturais de Freinet que, entretanto, procuramos. De certa forma, entre o natural e o informal, registamos uma continuidade histórica que, parecendo distanciar-nos, paradoxalmente nos aproxima numa narrativa comum. Neste sentido, em alternativa a “natural”, seria igualmente legítimo associar ao “método” o adjectivo “informal”. E, no entanto, não vemos qualquer vantagem nesta associação: por um lado, o adjectivo “informal”, apresentando idêntica relação conflituosa com o “método”, não resolveria o problema epistemológico de fundo; por outro lado, apresenta a desvantagem de não carregar o sentido contado pela história da associação natural/método, num método de iniciação à leitura e à escrita.[18]
A escrita não resulta de um processo natural de aprendizagem,[19] é um facto. E nenhuma das aprendizagens que a escola promove resulta de um processo assim. Mas há um método natural de ensino que chegou até nós: o “Método Natural da Escola Moderna”,[20] que nos convida a fazer a distinção entre aprender e ensinar.
Entre Ensinar e Aprender
Aprendemos naturalmente para que serve a escrita. Mas para ser um objecto que sabemos usar nos diferentes contextos em que pode ser usado, precisamos de um “método” que nos ajude (ensine) a adquirir essa experiência sem sermos sufocados no processo. Ora, o sentido paradoxal que se extrai da combinação em que assenta o seu nome, oferece ao método natural os argumentos para ser esse método. É, aliás, nesta combinação que reside a sua força, como método de ensino. Sendo o “método”, por definição, um conjunto de regras básicas (caminho) para desenvolver uma experiência a fim de produzir novo conhecimento (chegar a um fim), a partir de um saber pré-existente, ao associar-se ao adjectivo natural, vem reconhecer, de certa forma, a impossibilidade de percursos lineares na aprendizagem da escrita, com “estações” de paragem obrigatória e hora marcada para chegar ao destino. Com a combinação destes dois termos, o reconhecimento, pela escola, da importância das aprendizagens (naturais/informais) realizadas na informalidade dos contextos não controlados por si, ou por qualquer outro sistema formal de educação, sai reforçado.
Tanto hoje como no passado, “o acesso à linguagem escrita começa quando o adulto decide – escreve Emília Ferreiro.[21] – A ilusão pedagógica pode manter-se porque as crianças aprendem tanto a proceder como se nada soubesse (embora saibam), quanto a mostrar, diligentemente, que são capazes de aprender através do método escolhido”. Quer dizer, é uma ilusão pretender um método que controle o acto todo de aprender a ler e a escrever.[22] Quando muito conseguimos sufocar um mundo que se quer libertar. O caminho (método) que nos leva à escrita não está assinalado num mapa; mas o mapa está aí com todos os caminhos possíveis, como âncora que nos segura, que nos convida a pensar nas alternativas se nos sentirmos à deriva. Neste sentido, quando falamos de método é no ensino e não tanto na aprendizagem que pensamos, se bem que o ensino só se reconheça verdadeiramente como ensino quando resulta em aprendizagem.
Entretanto, quando se trata de ensinar a escrever, os modos que temos para fazê-lo continuam a ser os modos da escola; não temos um outro modo que esta não tenha adoptado já. Mesmo o método natural, nascido, é certo, da ambição de libertar a escrita das formas escolares, não deixa de ser um produto da escola. Mas é nesta demanda pela libertação da escrita, da “gramática da escola” que a amarra, que vislumbramos um primeiro elemento que contribui para a actualização do sentido de “natural” associado a um método de ensino da escrita: o método começa por ser “natural” no reconhecimento das formas que a escrita tem, que nada têm que ver com as formas que a escola lhe tem dado. São as formas que os usos sociais emprestam à escrita, que o método natural se esforça por desenvolver naturalmente, quer dizer, sem os desvios didácticos que desvirtuam os sentidos que fazem da escrita “o bem social indispensável para enfrentar o dia-a-dia”.[23] Assim, a tendência é deslocar o enfoque do método, de um processo de aquisição (aprendizagem) para um processo de facilitação ou passagem (ensino), que compreenda o modo como a aprendizagem se processa.
“Não Temos Modos Naturais de Estar se Não os Conquistarmos”
Se tentassemos definir o homem, pelo sistema de comunicação que usa, diríamos que é um ser que fala e não um ser que escreve. É a fala, e não a escrita, que está inscrita nos seus genes.[24] Mas, independentemente das características que encontremos nestas duas formas de expressão, estaremos sempre perante dois modos de desocultar uma língua, só visível se for falada ou se for escrita. Sem fala e sem escrita, a língua manter-se-ia como pensamento invisível, escondido na mente de quem o pensa. E, neste sentido, fala e escrita assentam em idênticos propósitos. Num contexto assim, são as funções da escrita, naturalizadas nos ambientes sociais onde se exprimem, que o método natural pretende realçar.
A escrita naturalizou-se nas formas que o homem inventou para organizar a sua vida. Mas não sabemos que outras formas de naturalização são ainda possíveis. Não sabemos se num futuro a milhões de anos de distância, dificilmente previsível até num cenário de ficção científica, teremos a escrita, pelo uso que dela fazemos, inscrita nos nossos genes, como sugere Havelock.[25] Mas sabemos, pelo contributo de ciências emergentes, como as neurociências, dos efeitos da sua aprendizagem na arquitectura biológica do cérebro, que abre novas perspectivas sobre o papel da escrita, em particular, e da cultura, de um modo geral, na conquista de outros modos naturais de estar.
A experiência da escrita não se adquire através de processos biologicamente programados. Contrariamente à linguagem que se desenvolve a partir de estruturas cerebrais que lhe estão dedicadas,[26] a escrita é uma competência que se adquire através de uma série de transformações neuronais.[27] Quer dizer, o cérebro, não tendo uma “estrutura biológica programada” para aprender a ler, está, no entanto, “biologicamente preparado para se adaptar” a esta experiencia: o contacto com a escrita permite construir, gradualmente, os circuitos neuronais capazes de aceder à leitura.
Por analogia com a informática, é possível compreender esta diferença entre “programado” e “preparado para se adaptar”. Assim, o cérebro (computador) vem equipado de estruturas biológicas (programas) que lhe permite executar operações básicas necessárias à vida (ao seu funcionamento). A estrutura dedicada à linguagem é um destes programas que serve à aprendizagem da língua se houver um falante que, ao “falar com”, possibilite a aprendizagem da fala. Mas há operações que só são possíveis se forem instalados os programas que adaptem o computador às novas funções. Ora, de certa forma, o ensino da leitura e da escrita assemelha-se à instalação de um programa. O cérebro está preparado para se adaptar a qualquer programa, e a sua instalação (ensino), semelhantemente ao que sucede com o disco duro de um computador, deixa as suas marcas (circuitos neuronais) no cérebro, que passam a integrar as suas estruturas biológicas. E aqui termina a analogia. Diferentemente do que sucede com o disco duro de um computador, o cérebro não permite a desinstalação de um programa que a educação instalou; só um acidente muito grave seria capaz de apagá-lo. Os instrumentos de cultura que adquirimos, pela educação, tornam-se permanentes e, portanto, parte de nós.
Resumindo, evolução e educação, não se situando no mesmo plano, não são vistas em planos opostos, como aconteceu, no passado, com natureza e cultura.[28] Hoje, a nossa natureza define-se, também, pela cultura que se desenvolve no intercâmbio entre evolução e educação: os nossos modos naturais de estar, agora, seriam impossíveis sem esta relação.
Respeitar a Ciência, Afirmar a Pedagogia
Por piada, costumávamos dizer que se todos usássemos o “método natural” estaríamos hoje cheios de filhos. Com esta brincadeira queríamos dizer que defender o “método natural” é, longe de deixar a natureza seguir o seu curso, compreender o curso que a natureza segue em nós.[29]
Glenn Doman numa curiosa relação da aprendizagem da fala com a aprendizagem da leitura, defende que “naturalmente nenhuma criança quer aprender a ler até ficar sabendo que a leitura existe. (...) você pode realmente começar a ensinar o bebé desde o nascimento. Afinal, nós falamos com o bebé assim que ele nasce – e isso melhora a sua capacidade de ouvir. Nós podemos dar-lhe, igualmente, a linguagem através dos olhos – o que desenvolverá a sua capacidade de enxergar (...)”.[30] Mas hoje, longe vão as disputas entre “associacionismo” e “gestaltismo” que alimentava o debate no tempo de Freinet. E, para além de sabermos que podemos descobrir a existência da escrita de forma idêntica à que nos fez entender a fala, o que hoje sabemos sobre a aprendizagem da leitura não é comparável com o saber que era possível então. Hoje temos ciências (neurolinguística, psicolinguística,...) que nos ajudam a compreender como esta aprendizagem se processa, permitindo-nos adequar os métodos de trabalho às aprendizagens que temos a promover, respeitando, assim, a natureza dos processos envolvidos na construção deste saber. E respeitar a natureza de aquisição de um saber é saber respeitar a forma de construção desse saber. Quer dizer, tal como acontece no método contraceptivo, o método natural de leitura ajusta, à “nossa natureza”, o objecto (escrita) que pretende tratar.[31]
“(…) os processos de trabalho escolar, da formação que fazemos nossa, têm de reproduzir os processos sociais autênticos da construção de toda a cultura” – defendia assim Sérgio Niza, o que veio a ser um dos princípios do modelo do Movimento da Escola Moderna. – “A construção de toda a cultura quer dizer: a cultura quotidiana, como cozinhar, limpar, pentear…, as culturas humanísticas (…) que, descuidadamente, referenciamos como cultura autêntica, mas que para nós não é…”[32] Quer dizer, há uma espontaneidade em muitas das nossas experiências quotidianas e, em muitos aspectos, o reconhecimento da escrita começa por integrar-se numa experiência assim, que nos faz vivê-la “naturalmente”.
Ao trocar o “método natural”, por uma designação inócua como “método interactivo”, ou por designação nenhuma que sugere outras designações possíveis, poupamos, provavelmente, o incómodo de um problema epistemológico por resolver. Mas corremos o risco de perder uma parte da memória do que nos trouxe até aqui. O “método natural” traz atrás de si a herança de um sentido que se explica pelo seu nome, conta uma história que nenhuma outra designação consegue contar. Vê a escrita nos contextos onde ganha vida.
Ao confrontarmo-nos com os pedagogos do passado, corremos o risco de sair do confronto com “a pobreza e desencanto das nossas práticas presentes”.[33] Mas não é o confronto com o passado que nos faz mover. Não é de nostalgia que trata este texto. E se o confronto existe, ele desenrola-se no interior das nossas práticas presentes, na busca do sentido do que fazemos agora. Quer dizer, sempre usámos o “método natural da escola moderna” no processo de iniciação à leitura e à escrita. E as respostas às perguntas que colocamos, no decurso das “arrumações” que vimos fazendo, vão no sentido de confirmá-lo nas práticas de ensino que desenvolvemos ainda, sustentados, agora, não pelas metáforas de Freinet mas pelas concepções que hoje temos sobre o modo como aprendizagem da escrita e da leitura se processa.
As metáforas naturalistas de Freinet, dando conta da existência de processos espontâneos de aprendizagem, não explicam, é certo, como estas aprendizagens se processam. Mas o método natural (man)tém o objectivo essencial de apoiar e reforçar estes processos espontâneos de aquisição de um saber, com a vantagem de poder sustentar-se, hoje, no conhecimento que detemos sobre a “natureza” destes processos.
ICEM, in Monceau, Gilles. La méthode de lecture: apports sociopédagogiques, in Lamihi, Ahmed. Freinet et L’École Moderne. Vauchrétien: Éditions Ivan Davy, 1977, pp.43-56
Smith, Frank. “Leitura Significativa”. Porto Alegre: Artmed, 1999
“não se trata de que as crianças reinventem as letras mas que, para poderem se servir desses elementos como elementos de um sistema, devem compreender seu processo de construção e suas regras de produção (…)” (Ferreiro, Emilia. “Reflexões Sobre Alfabetização”. São Paulo: Cortez Editora, 1991, p.13).
Niza, Sérgio. Intervenção na sessão de Encerramento do XXIIIº Congresso do Movimento da Escola Moderna. Lisboa: 1990
“(…) é nesses modos de acontecer ciência ou qualquer outro tipo de cultura, que nós temos de aprender didáctica. É esse o nosso papel, hoje, historicamente. (…) mas a didáctica que temos de construir é a negação mesma da didáctica” (Niza, Sérgio. Intervenção na sessão de Encerramento do XXIIIº Congresso do Movimento da Escola Moderna. Lisboa: 1990)
“(…) as crianças são incrivelmente flexíveis (…) parecem ser capazes de aprender apesar do método de ensino empregado. Mas isto não deve ser interpretado como uma afirmação de que qualquer coisa serve (Smith, Frank. Leitura Significativa. Porto Alegre: Artmed, 1999, p. 11)”.
citado por Marcuschi, Luiz. “Da Fala Para a Escrita”. São Paulo: Cortez Editora, 2001
CERI. Comprendre le Cerveau: naissance d’une science de l’apprentissage. Paris: OCDE, 2008