segunda-feira, 25 de julho de 2022

Aprender a Ler: entre as escolas de Pinóquio e de Alice - aquela do País das Maravilhas

Excertos de "Como Pinóquio Aprendeu a Ler" de Alberto Manguel,* adaptados numa montagem por Daniel Lousada

[Passar à versão em PDF >>>]

A escola é o lugar onde a pessoa começa a provar que é responsável. É o centro de treino que “faz” alguém capaz de pagar a atenção e os cuidados da sociedade, tal como começou a ser percebido por Pinóquio, quando este diz que vai para a escola aprender a ler e a escrever, para depois ganhar dinheiro e com este compensar Gepeto, que ficou apenas em mangas de camisa, para que ele pudesse ir para a escola.

Portanto, o primeiro passo para se tornar cidadão foi aprender a ler. Mas o que significa exactamente aprender a ler? Muitas coisas:

- O processo mecânico de aprender o código escrito em que a memória da sociedade é registada;
- A aprendizagem da sintaxe que rege esse código;
- A aprendizagem de como os registos nesse código permitem conhecer de maneira profunda, imaginativa e prática, a nossa própria identidade e o mundo que nos rodeia.

Esta última aprendizagem é a mais difícil, a mais perigosa e a mais profunda; e é o que Pinóquio não conseguirá completar. Pressões de todo o tipo – as tentações com que a sociedade o desvia da sua meta – impõem a Pinóquio uma série de obstáculos intransponíveis no caminho para se tornar um leitor de verdade. Se a sociedade estabelece um sistema para satisfazer requisitos básicos e instaurar a educação obrigatória, também oferece a Pinóquio distracções desse sistema, tentações de entretenimento que não exigem pensamento nem esforço, personificadas no país da brincadeira, que Pavio, amigo de Pinóquio, descreve com estas palavras sedutoras: “Sem escolas, sem professores, sem livros […]. Isso é que é um país bom! Como deveriam ser todos os países civilizados!” Na mente de Pavio, os livros, com razão, são associados à dificuldade, e a dificuldade (tanto no mundo de Pinóquio como no nosso) adquiriu um sentido negativo que nem sempre teve.

Depois que Pinóquio sofre as suas primeiras desventuras e por fim entra na escola disposto a se tornar um bom aluno, os outros garotos começam a gozá-lo por prestar atenção ao professor: “Falou como um livro”, dizem, quando ele se defende. A linguagem pode permitir ao falante permanecer na superfície do pensamento, repetindo lemas dogmáticos e lugares-comuns a preto e branco, transmitindo mensagens em vez de vez de significados, pondo o peso epistemológico no ouvinte (você sabe o que eu quero dizer). Ou pode ajudá-lo a recriar uma experiência, dar forma a uma ideia, explorar profundamente, e não apenas na superfície, a intuição de uma revelação. Para muitos garotos essa distinção é invisível.

Apesar de todas as distracções, Pinóquio consegue galgar os dois primeiros degraus da escala social de aprendizagem: aprende o alfabeto e aprende a ler a superfície do texto. É neste ponto que ele pára. Os livros tornam-se lugares neutros, nos quais se exercita aquele código aprendido com o propósito de no fim extrair uma moral convencional. A escola preparou-o para ler propaganda. A única coisa que lhe restou fazer, depois de aprender a ler, foi repetir a cartilha como um papagaio. Ele assimila as palavras que estão na página, mas não as digere.

Esta experiência superficial de leitura é exactamente o oposto da vivida por Alice (aquela do país das maravilhas). No mundo de Alice a linguagem recupera a sua ambiguidade rica e essencial, e qualquer palavra (segundo Humpty Dumpty) pode ser usada pelo falante para dizer o que deseja. Embora Alice conteste essas hipóteses arbitrárias, essa embaralhada epistemologia é regra no País das Maravilhas. Se no mundo de Pinóquio o significado de uma história impressa é inequívoco, no mundo de Alice o significado de “Jabberwocky”, por exemplo, depende da vontade do leitor. Quando falo em “aprender a ler” (no sentido mais pleno que exploro aqui) refiro-me a algo que se encontra entre esses dois estilos e essas filosofias. A escola de Pinóquio responde às restrições da escolástica que, até ao século XVI, era o método oficial de aprendizagem na Europa. Partia-se do pressuposto de que o estudante deveria ler de acordo com o que ditava a tradição, seguindo os comentários pré-estabelecidos. O método de Humpty Dumpty é um exagero das interpretações humanistas, um ponto de vista revolucionário segundo o qual cada leitor deve abordar o texto nas condições que ele impõe. Humberto Eco limitou de forma útil essa liberdade do leitor ao apontar que “os limites da interpretação coincidem com os limites do senso-comum”. “Aprender a ler”, portanto, consiste em adquirir os meios de apropriar-se de um texto (como faz Humpty Dumpty) e participar das apropriações dos outros (como poderia ter sugerido o professor de Pinóquio). É nesse campo ambíguo entre a identidade imposta por outros e a identidade descoberta por cada um, que se encontra, acredito, o acto de ler.

Educar é um processo lento e difícil, dois adjectivos que na nossa época deixaram de ser elogiosos. Hoje em dia parece quase impossível convencer a maioria de nós das virtudes da lentidão e do esforço deliberado. Contudo Pinóquio só aprenderá a ler se não tiver pressa, e só poderá tornar-se um indivíduo pleno através do esforço exigido para aprender devagar. Seja no mundo das cartilhas que os alunos repetem como papagaios, seja no nosso, com informações quase infinitas e regurgitadas, é fácil ser ligeiramente letrado, acompanhar uma comédia na televisão entender o trocadilho de um anúncio publicitário, ler um slogan político, usar um computador. Mas para ir mais longe precisamos de aprender a ler de outra maneira, de uma forma diferente, que nos permita aprender a pensar. Por isso a aprendizagem da leitura é um processo que não acaba nunca. “As pessoas não imaginam o tempo e o esforço para aprender a ler – diz Go­ethe –. Eu venho tentando há oitenta anos, e ainda não posso afirmar que tenha conseguido”.

Mesmo que no epílogo das suas aventuras, Pinóquio se transforme num menino de verdade, no fim de contas, sem a consciência desta dificuldade, ele continuará a pensar como um boneco.

_______________________

* In "Notas para uma definição do leitor ideal", Edições Sesc

Sem comentários:

Enviar um comentário