Rosário Rosa e Daniel Lousada No "perfil" de um amigo (o perfil é do facebook, mas o amigo é de verdade), damos com o artigo "A sociedade do resumo" [09.02.2024], de Filipe Gil, editor do Diário de Notícias.
A propósito do livro "Smart Brevity", que explora "o poder de dizer mais com menos", Filipe Gil não resiste a comparar o comportamento da sua geração com o comportamento da geração actual, face ao consumo dos bens de cultura:"Naquele tempo" (o seu), "há menos de trinta anos, os bons alunos explicavam, escreviam e, pasme-se, pensavam", dando a entender que os bons alunos, hoje, não explicam, não escrevem e, pasme-se, não pensam! Será? Não sabemos! Como não sabemos, e Filipe Gil não explica, se os bons alunos não pensam porque não explicam como querem que expliquem; ou se não explicam porque escrevem o que pensam na mesma forma rápida e sucinta, que já naquela época safou o autor da “sociedade do resumo”, em tantos testes e exames, com notas acima da média, dando-lhe acesso à desejada categoria dos bons alunos.
Mas sabemos que os 30 anos que medeiam os tempos a que Filipe Gil se refere não conheceram alterações tão significativas no sistema educativo português que permita que, hoje, um aluno que não leia e não pense possa ser um bom aluno, assim como não acreditamos que o sucesso dos bons alunos de ontem passasse pela leitura de muitos livros, com muitas páginas[1] e por um pensamento aprofundado sobre os assuntos. Há trinta anos, eram também muito poucos os que "explicavam, escreviam e pensavam", a maioria lia apenas o estritamente necessário[2] para atingir os objetivos definidos pela escola. As excepções existiam, como continuam a existir, no presente.
Então o que leva Filipe Gil a convocar a “sociedade do resumo” para acusar os jovens de hoje da falta de pensamento?
Curiosos, e para não nos metermos a comentar o assunto completamente às escuras, fomos à procura do livro, que Filipe Gil identifica de "quase auto-ajuda", e encontramos uma amostra (gratuita) da versão digital, disponível na Amazon. A leitura da amostra satisfez a nossa curiosidade, dispensando-nos do investimento no livro, por falta de entusiasmo pelo conceito. “Não nos adaptámos ao excesso de informação", é a constatação de partida, legítima a nosso ver, dos autores de smart brevity, administradores de uma empresa de média, dedicada a ganhar dinheiro com a informação tratada, que disponibilizam aos "leitores mais influentes e exigentes para consumi-la - CEOs, líderes políticos, gestores e curiosos viciados em notícias", oferecendo-lhes a notícia em menos palavras, breves apontamentos, talvez .
Aqui chegados, achamos que só na falta de entusiasmo pelo modelo de negócio em que assenta o conceito de smart brevity nos aproximamos de Filipe Gil; de tudo mais que defende no seu artigo, afastámo-nos. “Estamos a deixar que esta sociedade do resumo aconteça", diz o editor do DN, qual representante das gerações dos "trinta e muitos, quarentas e cinquentas", como se a sociedade que identifica “do resumo” dependesse da nossa autorização ou da vontade dos jovens que critica para acontecer.
Quanto a nós, o que vivemos hoje em dia, na forma de ‘resumos’ está longe de ser algo que apenas atinge os mais jovens, e não conseguimos identificar-nos ou embarcar neste tipo de "guerras geracionais" de valor, assentes em descrições que, a nosso ver, são úteis apenas para excluir a hipótese de que estamos errados ou, como refere Maria Zara Coelho[3], de a escola estar enganada, de os adultos que o fazem, e sobre ela escrevem, estarem a deixar fugir cada vez mais a realidade que pretendem modelar: é o triunfo da cultura prescritiva de que fala Machado Pais[4], justificada pela massificação do ensino, sujeito cada vez mais a uma economia de escala. Infelizmente, na escola, como nos jornais que a contam, as perspectivas tão diversificadas dos jovens pouco valem”[5].
Vivemos, como sempre vivemos, num mundo feito de “ondas” que, indiferentes a quaisquer tentativas de controlo, e não se deixando navegar (apenas surfar), seguem o seu caminho influenciando a nossa forma de pensar. Acontece que a maior parte dos jovens da nossa geração (a tal dos trintas, quarentas, e mais) deixavam-se, apenas, ir na onda! Quer dizer, sem desafio e sem escolha, limitavam-se a segui-las sempre rumo às praias que lhes eram indicadas. Não sendo mais possível garantir que os jovens seguem a onda indicada, resta-nos, com eles, identificar as ondas que melhor nos servem, cuidando que somos capazes de surfá-las para não nos deixarmos afogar por elas. Até porque não são só os jovens que correm o risco de não chegar à praia. E hoje, quer pela dimensão quer pela natureza das ondas, não fica claro o lugar de quem aprende e de quem ensina neste processo de surfar: em muitos aspectos, não estamos seguros de estar suficientemente habilitados para surfá-las: só em cooperação com os jovens – e eles connosco – nos manteremos à tona.
”O modo como pensamos depende do modo como comunicamos”[6] – defende Castells[7] –, ou como surfamos, diríamos mantendo a analogia. E, neste sentido, afirmamos a urgência de encarar a dimensão geracional, não numa lógica de oposição, mas de relação. Como pensam os jovens, como se relacionam entre si? De que forma procuramos conciliar os seus interesses (se é que procurámos conciliá-los) com os interesses de uma escola tão pouco flexível?[8] Tudo desafios que só no interior de uma profunda reflexão pedagógica é possível enfrentar. Um problema da pedagogia que, na falta dela, se agudiza dia após dia!
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[1] Embora presente em muitos professores e na sociedade em geral, a ideia de que os estudantes (bons ou maus) “não pensam” é absurda. Os jovens pensam, e provavelmente não pensam menos do que as gerações anteriores, até porque o mundo em que vivem é muito mais complexo: estruturas enfraquecidas; enorme volume de informação diversificada e contraditória; incerteza e risco na percepção do futuro ...
[2] Convém recordar que o livro era quase um bem de luxo, raro nas casas das famílias portuguesas.
[3] Jovens no discurso da imprensa portuguesa: um estudo exploratório. Análise social, vol XLIV (191), 2009, pp. 361-377.
[4] 2001, p. 414
[5] Neste afã de olhar o lado negro do mundo, não vêem que o futuro se vai fazendo, de preferência de forma participada, envolvendo os jovens.
[6] Não há pensamento sem comunicação. E o outro está sempre presente quando pensamos, mesmo no diálogo interior que aprendemos a fazer na sua ausência, a partir dos inúmeros diálogos que tivemos com ele.
[7] Ver registos vídeo: Escola e internet>>> e O poder da juventude é a autocomunicação>>>
[8] O interesse, aqui, tem o sentido que lhe é atribuído por Daniel Pennac, que o distingue do desejo: o que desejamos nem sempre é do nosso interesse. Quantos alunos conhecem o programa (não os conteúdos dos manuais escolares), que faz parte do seu contrato com a escola, essencial na construção das pontes entre os interesses em confronto?