Os alunos não reprovam, ficam retidos, ouço dizer, ironicamente, desde que, nos inícios dos anos noventa, a palavra reprovação deu lugar a retenção em decretos e despachos, sem que, daqui, resultassem outros efeitos na progressão dos alunos, que passaram a ser retidos em vez de reprovados, no que foi entendido, por muitos, como apenas uma questão de semântica. E, no entanto, entre reprovação e retenção há uma distância enorme. A reprovação tem subjacente um juízo de valor que a retenção não tem. Quando reprovo alguém estou a dizer: O que fizeste é reprovável, isso não se faz; isto está errado, vai para o teu lugar e volta ao princípio.
domingo, 29 de agosto de 2021
Reprovar ou reter, uma questão de semântica?
Os alunos não reprovam, ficam retidos, ouço dizer, ironicamente, desde que, nos inícios dos anos noventa, a palavra reprovação deu lugar a retenção em decretos e despachos, sem que, daqui, resultassem outros efeitos na progressão dos alunos, que passaram a ser retidos em vez de reprovados, no que foi entendido, por muitos, como apenas uma questão de semântica. E, no entanto, entre reprovação e retenção há uma distância enorme. A reprovação tem subjacente um juízo de valor que a retenção não tem. Quando reprovo alguém estou a dizer: O que fizeste é reprovável, isso não se faz; isto está errado, vai para o teu lugar e volta ao princípio.
terça-feira, 20 de julho de 2021
domingo, 18 de julho de 2021
Sobre a utilidade das reprovações, em dois pontos de vista.
Daniel Lousada
Ponto de vista do aluno que fui.
Como qualquer aluno que se preze, não fui imune a reprovações. Reprovei portanto. Reprovei no 4º ano do liceu, ao tempo considerado um ano de escolaridade muito propenso a este tipo de eventos.
Do que senti, quando me vi reprovado, recordo ter dito «Lá vou ter que empinar, outra vez, a “me§da” da botânica» [um dos conteúdos da disciplina de ciências naturais à qual, muito a custo, consegui positiva]. Reprovar significava [julgo que significa ainda] repetir todas as disciplinas, a partir do início, tenha ou não negativa a todas, saiba muito ou pouco ou coisa nenhuma de todas elas.
Não foi por culpa da botânica que reprovei. Mas isso não me dispensou de ter que voltar ao sistema reprodutor das plantas, de decorar novamente os nomes dos órgãos que compõem uma flor, de voltar a empinar os nomes das ordens e classes de plantas e plantinhas. E não pensem que à segunda o empinanço foi mais fácil!
Agora perguntem-me o que sei do que “aprendi” de botânica!
Não quero com isto dizer que o trabalho que a botânica me deu tenha sido inútil; que só o que recordamos vida fora é útil. Bem pelo contrário. O que aprendi de botânica não fez de mim um botânico. Mas deu-me a consciência de que um dia soube botânica, da mesma forma que em tempos soube resolver uma raiz quadrada, um saber que em qualquer altura posso recuperar, haja necessidade ou interesse em fazê-lo.
Poderia ser diferente?
Ponto de vista do professor que fui
Uma escola de lugar único [1 professor – 4 classes], final de um ano escolar, nos inícios dos anos 70. Aquela criança do 1º ano junta letras, soletra palavras em carreirinha e chega ao fim da frase sem memória do que leu no início. Ao ensaiar a conversa a ter com ela, dou- me conta que iríamos viver juntos outra vez, quer ela reprovasse quer não! Então, vou reprová-la para quê? – interroguei-me. Não fosse professor de uma turma que juntava as 4 classes e, talvez, não tivesse chegado à pergunta, confesso: haveria, certamente, outra turma, outro professor, em “melhores condições”, com quem repetir o percurso que não concluiu comigo. Olho-a então uma vez mais. Faltam-lhe automatismos na leitura, é certo, mas, surpreendentemente [mais atenta, talvez, ao que me ouvia dizer aos “grandes” do que à tarefa que tinha em mãos], sabia o que alguns da 4ª classe não sabiam sobre Viriato e as lutas que este travou com os romanos, que D. Afonso Henriques, foi o 1º rei de Portugal, que o rio que passa em Chaves é o Tâmega, que o comboio passava por Vidago, Vila Pouca de Aguiar e terminava na Régua, … E dei por mim a pensar na minha dificuldade em me organizar no meio de todos aqueles programas, que naquelas condições a divisão do programa por anos de escolaridade, por vezes, era mais empecilho do que ajuda. Então, procurei olhar os quatro programas como se fossem um só, na procura da ideia de um programa para cumprir em quatro anos.
Pensar a aprendizagem por ciclos de aprendizagem, para além do 1º ciclo não é tarefa fácil. E, pela manifestação de vontades a que assisto, não vislumbro a possibilidade de procurar alternativas nos sistemas educativos que, parece, resolveram ou estão em vias de resolver o problema. Continuo a ouvir dizer que Portugal não é a Finlândia ou um qualquer outro país mais bem posicionado nestes campeonatos. E não é de facto: nesses países vivem os que lá vivem; não são portugueses os que por lá moram; como não são portugueses os seus políticos e, já agora, os seus professores.
domingo, 13 de junho de 2021
Da Pedagogia aos pedagogos
Os conhecimentos, uma vez que se transmitem entre seres humanos, são indissociáveis da relação que permite a sua transmissão. Digamos que, num primeiro momento, podemos chamar a esta transacção pedagogia. Deste ponto de vista, a pedagogia não é, contrariamente à representação que habitualmente damos como certa, um simples veiculo, que transportaria o conhecimento de um individuo até ao outro; ela é o que une dois sujeitos a um objecto numa configuração singular, que determina largamente o uso, em si mesmo, do conhecimento. Porque um veículo pode ser mais ou menos rápido e potente, pode conter mais ou menos objectos e ser mais ou menos atractivo, mas o que é transportado é indiferente ao veículo, não mudando nem a natureza dos objectos transportados, nem a forma como se enviam ou recebem. Mas, em matéria de transmissão de conhecimentos, as modalidades da transacção mudam tudo. Todos o experimentámos já, e os alunos vivem-no diariamente.
Se a transacção assenta numa ameaça (uma sanção ou privação de afecto) o metabolismo da aprendizagem não produz conhecimentos «objectivos» novos, mas apenas um conhecimento que se inscreve numa relação de submissão, um conhecimento que coloca a criança numa relação de obediência ao outro, que só será mobilizado, com facilidade, perante uma nova ameaça. Do mesmo modo, se a transacção assenta na identificação com o outro, ou na sedução, há a forte probabilidade da mesma criança se apropriar do conhecimento, numa relação de dependência face à imagem idealizada que tem do transmissor. Supondo que o dito transmissor, por uma ou outra razão, venha a decepcioná-la, o que foi transmitido poderá ficar comprometido.
Pelo contrário, se a transacção se constrói a partir de um questionamento partilhado e uma descoberta formalizada, o conhecimento poderá ser metabolizado como objectivado: quem aprende será, ao mesmo tempo, mais sábio e mais autónomo: mais autónomo porque mais sábio e mais sábio porque mais autónomo. Com efeito, a autonomia não é uma capacidade «abstracta», independente dos conhecimentos adquiridos; constrói-se através de e com os conhecimentos, sempre que estes sejam transmitidos numa transacção emancipadora, que responda aos problemas que o professor soube partilhar, e a partir dos quais colocou recursos, explicações, obras à disposição do sujeito.
Assim, qualquer que seja a actividade de transmissão – seja familiar ou escolar, se desenvolva num clube ou num museu, diante de um computador, de um espectáculo ou de um livro – ela comporta uma dimensão propriamente pedagógica, que é preciso identificar e cujos desafios e efeitos devem ser analisados. Na sala de aula, o mais pequeno gesto tem, em si mesmo, um alcance educativo, diz algo do que se constrói enquanto relação com o saber e, num sentido mais amplo, do que se perfila como tipo de ser humano e de sociedade.
O filósofo Henri Bergson – que não podemos chamar, de ânimo leve, de «pedagogista» – explicava com prazer, a importância que atribuía à forma de corrigir testes: começava sempre pelas notas piores e tinha o cuidado de comentar cada teste, destacando os seus aspectos positivos; depois, à medida que as notas iam melhorando, começava com as críticas, até chegar às melhores dos quais destacava os erros mais graves. O aluno que falhava na sua dissertação, não ficava tão desanimado, uma vez que tinha visto reconhecido o que tinha feito bem, enquanto que aquele que tinha tido boa nota, via as suas insuficiências como algo a melhorar. Desta forma, tanto um como o outro encontravam-se em condições de progredir: o primeiro apoiado nos seus pontos fortes, o segundo desafiado a trabalhar as suas imperfeições.
Este episódio, um pouco antigo, tem o mérito de realçar que nada no acto de ensinar é independente de um projecto pedagógico explícito ou implícito. Não há transmissão pura, nem aula, em que os conhecimentos circulem numa relação ética consistente, que não antecipe o futuro nem prefigure o mundo. Ninguém pode negar, como a própria Hannah Arendt defendia, a necessidade de «transmitir o mundo». Isto implica, evidentemente, questionar conteúdos e métodos. Mas responder a perguntas como «o que ensinar?» e «como?», não nos dispensa de fazer a pergunta fundadora: que futuro construímos para os nossos filhos, através da forma como vivemos com eles o acto de transmissão, em si mesmo? Neste sentido, não seria rigoroso dizer de um professor que «ele não tem pedagogia». Há sempre uma pedagogia mesmo que pareça discutível, irresponsável, ineficaz ou que a rotulemos de tradicional, mas que é preciso olhar de perto, se queremos tentar compreender o que se joga na sala de aula.
Por conseguinte, a pedagogia está presente em toda a transmissão, mesmo coextensiva com esta última: a forma como os adultos organizam, vivem e usam as instituições educativas, para garantir o vínculo entre gerações, remete-nos sempre para escolhas as quais, evidentemente, temos todo o interesse em encarar de frente, para aprofundá-las e compreender o que está em jogo, assumi-las ou recusá-las.
«Obedecemos sempre a uma teoria, mesmo aqueles que se queixam de teorias. Quem não tem uma de qualidade, reconhecida, apoiada em estudos, segue talvez, sem o saber, uma pouco credível, que, não sendo objecto de reflexão ou crítica, não é sequer necessário concordar com ela mesma», escrevia já Henri Marion no seu Dictionnaire de pédagogie et d’instruction primaire,.. [3]
Mas se bem que haja sempre pedagogia na transmissão, é sempre de uma pedagogia que se trata. Por vezes esta pedagogia leva-nos a uma doutrina bem identificada, permitindo-nos falar de «pedagogia socrática», «pedagogia Freinet», «pedagogia Montessori» ou, mesmo, «pedagogia institucional». Outras vezes, trata-se de um conjunto de convicções e práticas mais ou menos precisas, que derivam quer de uma tradição («como a aula dialogada») quer de uma inovação da moda («como a aula invertida»), com frequência, uma e outra tão pouco analisadas e questionadas.
Pessoalmente creio que a compreensão, por parte dos actores sociais, do que «fabricam» diariamente, constitui um incentivo decisivo para avançar, ao mesmo tempo, até um maior profissionalismo e exercício da cidadania. Assim, é melhor que vejamos o que está em jogo e que, desta forma, possamos contribuir para inscrever a sua actividade no debate democrático, necessário à construção do bem comum. No entanto, não deixo de ter em conta os riscos que correm os profissionais, quando se aventuram por este caminho, porque a instituição prefere, com frequência, os executores que se colocam ao serviço da «máquina», aos que teimam em querer colocar a máquina ao serviço dos seres humanos. Desta forma proletarizamo-nos, no sentido estrito da palavra: tal como a máquina obrigava, durante a revolução industrial, a trabalhar por turnos, com o objectivo de rentabilizar o investimento, a «máquina-escola» exige, hoje em dia, que se sirva escrupulosamente os seus objectivos, utilizando sistematicamente os métodos científicos e preenchendo meticulosamente as suas tabelas de Excel.
Digamo-lo claramente: a falta de cultura pedagógica dos nossos responsáveis institucionais, a ignorância da história das doutrinas educativas, por uma boa parte dos professores, o retrocesso ou mesmo o desaparecimento total da reflexão pedagógica da formação inicial e contínua dos professores, permitiu que a «máquina-escola» imponha, no seu conjunto, procedimentos cada vez mais estandardizados, em nome da sujeição aos resultados, da lealdade institucional e da verdade científica. As classificações internacionais ditam a sua lei de ferro: a escola deve preparar os alunos para que estes estejam conforme as classificações que estes testes apontam; e os professores estão acima de tudo ao serviço deste objectivo. A evidence-based policy não se discute.
Ora, justamente, numa democracia, se há algo que é preciso fazer com a educação e a pedagogia é discuti-las. São por excelência objectos de discussão, já que determinam, e muito, o nosso futuro. São objectos políticos no sentido mais nobre do termo. No entanto, para discutir pedagogia falta ainda compreender como se constroem os seus discursos e os seus modelos. Pois bem, quando analisamos, com um pouco de rigor, a história das doutrinas pedagógicas, vemos que, de Jean-Baptiste de la Salle, inventor das classes homogéneas e do modelo simultâneo, a Carl Rogers, promotor de um ensino não directivo, assente nos princípios da psicologia de Lewin, passando por Makarenko, que depois da revolução bolchevique instituiu na colónia Gorki, um sistema de socialização assente na rotação sistemática de tarefas e funções, ou por último Claparède, fundador do Institut Jean-Jacques Rousseau de Genebra e autor em 1921 de L’École sur mesure, todos os sistemas pedagógicos articulam, sistematicamente, três elementos: por um lado, as finalidades teológicas, filosóficas ou políticas; por outro, os conhecimentos disponíveis sobre a criança e seu desenvolvimento, sobre as aprendizagens e sobre as condições de socialização; e por último, as propostas práticas, institucionais ou instrumentais.
O que complica as coisas é que estes três elementos são, ao mesmo tempo, absolutamente necessários e totalmente heterogéneos entre si. Sempre educamos para alguma coisa, apoiando-nos nos conhecimentos que permitem ter controlo sobre o real, em instituições e com técnicas capazes de dar as mãos ao seu projecto, como dizia Pestalozzi, que durante toda a sua vida procurou encarnar, com o seu método, a filosofia do seu mestre Jean-Jacques Rousseau. Não obstante, se bem que estes três elementos devam constituir uma configuração coerente, pertencem a registos distintos, que dispõem de sistemas de legitimação radicalmente diferentes: as finalidades remetem-nos para uma reflexão sobre os valores, sobre os conhecimentos e dados estabilizados pela investigação e as práticas para uma criatividade instrumental. Devemos, portanto, sobre todas as propostas pedagógicas, perguntarmo-nos, ao mesmo tempo, sobre a sua coerência interna e sobre a validade dos elementos que configuram de forma original.
De facto, existem «pedagogias» que se limitam a justapor finalidades e práticas sem estudar, aplicando os conhecimentos de que já dispomos, se as suas práticas são as adequadas para atingir as suas finalidades.
Queremos, por exemplo, formar para a solidariedade e fraternidade (finalidades importantes) através da colaboração. Para isso, recorremos ao trabalho de grupo e à elaboração de projectos colectivos, organizamos viagens de estudo, criamos uma página web, praticamos teatro e jogos colectivos, e até promovemos comunidades de crianças em autogestão. Mas estamos realmente seguros, de que estas actividades promovem uma autêntica colaboração? De facto, a psicologia ensina-nos que para que todos contribuamos para o progresso colectivo, é preciso que o grupo possua uma rede de comunicação «homogénea», que cada um tenha algo a trazer aos demais e que o trabalho colectivo não se possa realizar sem a implicação de todos; que o funcionamento do grupo tenha sido desenhado de forma a que ninguém possa assumir o poder indevidamente, e que ninguém fique afastado ou encerrado num papel secundário de autómato. A generosidade das intenções não garante, por si só, a eficácia do dispositivo; é preciso que este seja concebido e regulado, em função do que sabemos sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente, das interacções entre pares, da relação entre os objectivos de aprendizagem de cada um e a tarefa a realizar por todos. [4]
Sabemos bem, por exemplo, desta aliança entre, por um lado, um radicalismo ideológico que transforma a luta contra as desigualdades de acesso ao conhecimento, num princípio absoluto e, por outro, a busca sistemática, em todas as áreas, de todas as manifestações possíveis destas desigualdades. Em nome de uma solidariedade legítima com as classes populares, procuramos por todo o lado, graças à «sociologia crítica», o factor, por mínimo que seja, que possa aumentar ou deixar que perdure a injustiça; podemos identificá-lo na economia, na organização escolar, nos estereótipos transmitidos por programas e manuais, e, claro, nas próprias práticas pedagógicas, elas mesmas, suspeitas de falta de lucidez, neste domínio. E com razão, evidentemente. Nunca se é suficientemente lúcido, em tudo o que constitui um entrave ao primeiro dos direitos da criança: o direito à educação. Bourdieu – ou mais precisamente uma interpretação «bourdieusarde» de Bourdieu – desenvolve, com enorme eficácia, uma retórica de denúncia, assente em estatísticas implacáveis ou terríveis estudos de caso. O perigo está, então, em conjugar radicalismo com impotência: «Não mudar nada antes de tudo mudar», denunciava já nos anos 60, o discípulo de Freinet e fundador da «pedagogia institucional» Fernand Oury. Porque, instalar-se na postura de revolucionário conservador, é definitivamente bastante cómodo. Queremos uma «mudança de lógica» da sociedade e da instituição escolar. Exigimos «meios que rompam radicalmente com a política de austeridade e que permitam o desenvolvimento do serviço à altura das ambições da república». Negamo-nos a «inclinarmo-nos ante os ditames tecnocráticos de uma administração totalmente convertida às virtudes do neoliberalismo». E não temos a mínima tolerância com aqueles que procuram, todos os dias, criar alguns espaços de emancipação possível. A doutrina não tem apelo: entre a ilusão e a válvula de segurança, os militantes pedagógicos não fazem mais do que reforçar um sistema que precisa, pelo contrário, ser combatido passo a passo.
E aqui estão os profissionais esmagados entre finalidades, tão generosas como gerais, e conhecimentos científicos, tão indiscutíveis como implacáveis. Por último restam aqueles que afastando toda a reflexão sobre as finalidades fingem poder basear as práticas pedagógicas somente em dados científicos.
O cientificismo, essa velha ilusão… mesmo que acreditemos estar na vanguarda da modernidade. A crença naïf na omnipotência da ciência tem as suas origens nas fantasias mais arcaicas. No século XIII, por exemplo, Frederico II de Hohenstaufen, à frente do poderoso Sacro Império Romano Germânico, rodeou-se dos maiores sábios da época, para resolver um problema que, em sua opinião, era decisivo na educação das crianças: qual era a sua «língua natural»? Que língua falariam, de forma espontânea, se nenhum adulto lhe dirigisse a palavra, se nenhum condicionamento social interviesse no seu desenvolvimento? Retirou os recém-nascidos a várias mães e colocou-os à responsabilidade de amas, que os criaram com máscara e foram proibidas de pronunciar qualquer palavra que fosse, diante delas. Mas o príncipe não pôde averiguar qual era a «língua materna» do homem, porque os bebés, assim tratados, com total carência de afectividade e relações, morreram muito rapidamente….
Embora, evidentemente, a ninguém ocorra reproduzir semelhante experiência, o homem continua fascinado pela ideia de chegar ao conhecimento das «leis naturais da criança» [5] e de que, uma vez descoberto o seu funcionamento mental, seria possível prescrever, com certeza total, os métodos que permitiriam o seu desenvolvimento óptimo. No século XIX foi a frenologia que encarnou esse projecto, com os desvios racistas e eugénicos que já conhecemos. [6] Na década de 1920, vimos, de vez em quando, esta perspectiva no que se denominou de «psicopedagogia», apoiada principalmente nos trabalhos de Piaget, e que propõe uma visão prototípica da aprendizagem, ocasionalmente chamada «construtivismo». Piaget descreveu o desenvolvimento da inteligência, colocando em destaque procedimentos mentais regidos por um duplo processo de assimilação (o sujeito incorpora a exterioridade) e acomodação (o sujeito transforma-se, nesta relação, com o real). Segundo ele, graças a este processo, o sujeito passa de um estado ao outro e pode, progressivamente, construir conhecimentos novos. Mas o que procurava Piaget era o que denominou o «sujeito epistémico», quer dizer, o «sujeito em estado puro», na sua «estrutura mental universal». Ninguém pode censurar que o procurasse e que realizasse toda uma série de observações e experimentações, para neutralizar, precisamente, os factores contingentes, diferentes conforme os sujeitos e os contextos nos quais cresciam. No entanto era – e continua a ser – muito arriscado apoiar-se somente nos seus trabalhos, para criar práticas pedagógicas, nas quais inevitavelmente, intervêm dimensões afectivas e socias, relacionais e institucionais. Seria confundir uma metodologia científica perfeitamente legítima, que isola deliberadamente certas determinantes, com a realidade na sua complexidade; seria fazer ontologia com a epistemologia, sem ter em conta os factores que foram omissos, de forma sistemática, nem os valores aos quais não se deu direito de entrada. Por este motivo, sem dúvida, a psicopedagogia foi mais objecto de ensino para os alunos das «escolas normais» (de magistério), que não transformou, significativamente, as práticas pedagógicas. [7]
Esquecida a psicopedagogia, chega a neuropedagogia! Se acreditarmos no que nos diz esta nova disciplina será possível, graças aos conhecimento dos mecanismos cerebrais, que todas as crianças acedam à aprendizagem, até mesmo determinar o seu comportamento, em áreas tão decisivas para a construção da sua personalidade, como a atenção, a motivação, a criatividade, o sentido de responsabilidade, etc. As neurociências, na medida em que permitiriam construir uma autêntica ciência da «vida mental» [8], proporcionar-nos-iam, desta forma, os meios para estimular e estruturar a actividade neuronal, susceptível de modificar o estado mental ou afectivo da criança, tudo em função do que queiramos desenvolver nele. Sempre a mesma fantasia: passar do conhecimento dos mecanismos «naturais» à prescrição sistemática de boas ferramentas, para ensinar e aprender. Ignorar a questão das finalidades em favor de um cientificismo superficial!
Como destacava o filósofo Emmanuel Fournier, «as representações neurocientíficas insinuam-se-nos. Infiltram-se na nossa linguagem e condicionam o nosso pensamento. Desde então, na nossa forma de falar, já não procuramos o prazer, mas as hormonas que nos dão esse prazer. São os nossos lóbulos frontais que planificam os nossos actos, os nossos circuitos da emoção que dão cor às nossas vidas com alegria, etc. E deixamos que esta linguagem pense por nós, com tanta naturalidade, que nos colocamos nas suas mãos com a maior das inocências. Quem ousaria revelar-se contra a sua gramática? [9]
Eficácia é a palavra-chave para aqueles vêem na neuropedagogia uma forma de revolucionar o sistema escolar e que nos deixa antever perspectivas assustadoras. Assim, acreditando no médico e especialista em inteligência artificial Laurent Alexandre, «a era da ideologia pedagógica está a chegar ao seu fim, para dar lugar à prova estatística do «learning analytic». A aprendizagem converte-se numa autêntica ciência, apoiada na observação da estrutura do cérebro e dos seus modos de resposta. O sistema irá sair da idade das manualidades para a idade da tecnologia […]. O aparecimento de gravadores cerebrais não invasivos, baratos e capazes de medir continuamente numerosas constantes, permitirá relacionar estes dados com as nossas características cognitivas, para optimizar o ensino» [10]. Desta forma, segundo ele, poderemos aceder, rapidamente, a um conhecimento preciso das características cognitivas, afectivas e sociais de um indivíduo, a partir da análise de seu telemóvel. E esboça o seguinte: bastará distribuir, o mais depressa possível, tabletes e telemóveis entre as crianças, e a «inteligência artificial dos gigantes informáticos permitirá determinar, com grande precisão, as melhores características pedagógicas para cada aluno». Rapidamente, poderemos desenvolver o neuromarkting sistemático e vender programas de ensino e educação – mesmos de reeducação – aos pais e, desta forma, cada criança poderá «beneficiar» de um «ensino estritamente personalizado» e dispensar-se de ir à escola, porque pode trabalhar, todo o dia, diante de seu monitor ligado a um computador gigante, provavelmente nas ilhas Caimão, para poder fugir aos impostos… Bom, como Alexandre, confiemos que os GAFA [11] não fiquem com o monopólio de semelhante tecnologia. Convencido de que não é possível travar o progresso da tecnologia, o seu desejo é que a educação pública se transforme, o mais depressa possível, num «viveiro de start-ups inovadoras», para que os nossos filhos não tenham uma «educação made in Califórnia, em 2040» [12].
No seu livro La guerre des intelligences. Comment l’intelligence articielle va révolutionnar l’éducation [13], Laurent Alexandre vai, todavia, mais longe: afirma que a escola é «uma tecnologia obsoleta e prevê a sua industrialização» e «robotização». E explica: «No fim, a escola encarregar-se-á mais de gerir cérebros do que transmitir conhecimentos». É verdade que o êxito mediático de Laurent Alexandre e o seu estatuto de cronista, em vários meios de comunicação social, não fazem dele especialista em previsões, reconhecidas pela comunidade científica, mas parece representativo de uma violação de fronteira que, a verificar-se, seria, no mínimo, preocupante. De facto, em sua opinião, perante o «confronto de inteligências» hoje aberto, os estados deveriam utilizar as «biotecnologias do desenvolvimento cognitivo», mobilizar todos os recursos do neuro-aumento, para combater as desigualdades genéticas, e melhorar, sistematicamente, o coeficiente intelectual dos nossos filhos: «a escola transformar-se-á transhumanista e será considerado normal modificar os cérebros dos alunos, utilizando toda a panóplia de tecnologias possíveis» … No entanto, Laurent Alexandre teme que a hibridização de computador e cérebro nos leve até um «transhumanismo radical» - «a saída do cérebro para fora de si mesmo», a sua «automatização completa» até ao ponto de ser possível descarregá-lo» - e, para evitá-lo, sugere que se substitua o lema francês Liberdade, Igualdade e Fraternidade pelos três pilares da nossa humanidade, segundo ele: «preservar os nossos corpos de carne e osso», «salvar a nossa individualidade» e «deixar espaço para ao acaso». Pois, fiquemos então tranquilos! Ele, que acaba de explicar-nos que a nostalgia, que tenta travar o crescimento das neurotecnologias e da neuroeducação, são equiparáveis a um sindicato de ferradores que, em, 1905, tentou opor-se à introdução do automóvel, aceita traçar linhas vermelhas, para que possamos conservar a nossa dignidade! Dignidade, um conceito, ainda assim, mais antigo que o sindicato de ferradores! Talvez um sinal de uma ruptura possível com a ilusão cientificista do progresso infinito, pela ciência?
___________________
[1] Immanuel Kant, Réflexions sur l’éducation (1776-1787), Paris, Vrin, 1993.
[2] Hannah Arendt, «La crise de l’éducation», La Crise de la cuture (1967), París, Gallimard, «Folio», 1989.
[3] Publicado sob a direcção de Ferdinand Buisson no tempo em que foi criada a Escola da República francesa. Ferdinand Buisson, Dictionnaire de pédagogie et d’instruction primaire, edição compliada por Patrick Debois e Philippe Meirieu, Paris, Robert Laffont, «Bouquins», 2017, p. 694.
[4] Dediquei os meus primeiros trabalhos científicos a esta questão, mostrando o carácter altamente ambíguo das práticas de grupo não reguladas: cf. Philippe Meirieu, Apprendre en groupe?, tomo I: Itinéraire des pédagogies de group, tomo II: Outils pour apprendre en groupe, Lyon, Chronique sociale, 1984.
[5] Les Lois naturelles de l’enfant é o título da obra de sucesso de Céline Alvarez publicada em 2016, pelas edições Les Arènes.
[6] A frenologia é uma teoria proposta pelo neurologista austríaco Franz Joseph Gall (1757-1828), sobre a localização das funções cerebrais e a correlação entre a forma do crâneo e as características das pessoas (está na origem, por exemplo, da teoria do criminoso nato). A obra principal de Gall viria a ter o título (traduzindo para português), Anatomia e fisiologia do sistema nercoso em geral e do cérebro em particular, com observações sobre a possibilidade de reconhecer várias disposições intelectuais e morais do homem e dos animais pela configuração da sua cabeça.
[7] O grupo francês de educação nova (GFEN) falaria de auto-socio-construção dos conhecimentos. Inscrito numa intenção política forte (Todos somos capazes!), apoiando-se nos trabalhos de Henry Wallon e propondo situações de aprendizagem centradas na génesis do saber, diferencia-se da psicopedagogia tradicional e propõe uma pedagogia coerente. E aqueles que, como eu trabalham, nas situações problema, tomam de empréstimos alguns elementos de Piaget e colaboradores, mas sobretudo de Vygotsky (a zona de desenvolvimento proximal) e de Bachelard (o conceito de obstáculo), esforçando-se por articulá-los à volta do conceito de projecto – proveniente da educação nova –, por inscrever-se numa finalidade de transmissão/emancipação. Ao procurar realizar uma tarefa, ao mesmo tempo difícil e acessível, o sujeito deve encontrar um objectivo-obstáculo que, graças a um conjunto de recursos, poderá superar e, de seguida, transferir à sua própria iniciativa. (Philippe Meirieu, Apender sim, mas como?, Porto Alegre Artmed 2002).
[8] Stanislas Dehaene, Vers une science de la vie mental, Paris, Collège de France/Fayard, 2014 e Le Code de la conscience, Paris, Odile Jacob, 2014.
[9] Le cerveau, gage de bonne éducation?, conferência de Emmanuel Fournier no colóquio L’Aventure des neurosciences», Angers, 2 de Junho de 2015.
[10] Laurent Alexandre, L’Éducation doit libérer ses innovateurs, L’express, 18 de Outubro de 2017, p. 22.
[11] Acrónimo de "Google Amazon Facebook Apple".
[12] Pode estar tranquilo! De acordo com o artigo de Caroline de Malet, no Le Figaro, de 10 de Abril de 2018 (Como a Inteligência Artificial está a penetrar no mundo da educação), as Start-ups francesas, aliadas, por vezes, de grandes editoras – como Hachett e – e relacionadas com grupos internacionais – como Hnewton –, trabalham com afinco, na implementação de assistentes pedagógicos, que propagam, a partir da análise do funcionamento cognitivo de cada aluno e graças à inteligência artificial, conteúdos e estratégias de aprendizagem personalizados. Segundo dizem, a tecnologia está preparada. É apenas uma questão de vontade e de investimento».
[13] Paris, Jean-Claude Lattès, 2017.
sábado, 5 de dezembro de 2020
A banalização da identidade profissional dos professores
António Nunes
“Desejo que revindiquemos, dos Jardins de Infância ao Ensino Superior, a possibilidade de pôr em prática dispositivos pedagógicos inspirados nas pedagogias cooperativas e institucionais, que permitam a cada um e cada uma “ter o seu lugar” num coletivo, quer dizer, não ocupar todo o espaço mas também não ser excluído, sub-repticiamente ou brutalmente, dele. É por isso que me parece essencial reafirmar a Escola como uma “instituição” que incarna os valores da República, e não um “serviço” encarregado de satisfazer, individualmente, os pedidos dos utilizadores.”[1]
1. O Expresso do dia 24 de novembro do corrente ano, num artigo intitulado “Gulbenkian ajuda alunos carenciados com mentorias e aulas extra”, dá-nos conta de um programa intitulado de GAP – Gulbenkian Aprendizagem, que pretende apoiar “pelo menos 5.000 alunos dos ensinos básicos e secundário", de forma que estes possam recuperar aprendizagens ligadas às disciplinas de Português, Inglês e Matemática e, ao mesmo tempo, que possam “desenvolver competências importantes para o estudo autónomo”.
Para isso irá selecionar alunos pertencentes a grupos socioeconómicos mais desfavorecidos, num universo de cerca de 120 escolas do país. Estas mentorias poderão ser realizadas de formas diferentes: apoio individual, ou em pequenos grupos ou mesmo dentro da sala de aula.
Sabemos também que já existe nas nossas escolas apoios realizados por jovens mentores - pessoas com formação superior - que se oferecem, segundo o artigo, e passo a citar, a “dedicar o seu tempo a tentar fazer a diferença numa escola”. Estes jovens pertencem à “Teach For Portugal [2]” que tem como objectivo “não deixar nenhuma criança para trás durante o seu percurso escolar, desenvolvendo o seu potencial ao máximo, desde os resultados académicos até à gestão emocional.” Para isso têm um “Mentor na sala de aula e na escola (que) permite dar mais atenção aos alunos, criar coesão e resolver situações repetitivas de abandono, desistência, desmotivação e conflito [3].”
Dito isto, e pensando serem estas iniciativas, quer por parte da Gulbenkian, quer por parte deste grupo de jovens, de saudar, gostaria de fazer algumas considerações que entendo serem pertinentes, quer à escola, quer, principalmente, aos professores e à sua Identidade Profissional. É que, os professores devem ter, verdadeiramente, um compromisso com a educação e com os seus alunos e, desta forma, assumir a fragilidade do ato pedagógico, das permanentes contradições que este lhes impõe e da complexidade que as relações humanas muitas das vezes apresentam.
2. Partindo de um conjunto de preocupações manifestadas por alguns intelectuais, na passagem do seculo XIX até cerca dos anos 30 do século XX, podemos ver, com relativa facilidade e evidência, uma panóplia de preocupações relativamente à escola e, principalmente, ao papel do professor na sala de aula e dos saberes necessários à profissão.
1866. "Para educar mestres não basta expor princípios de ciência, é preciso ensinar a ensinar, ensinar pedagogia" (João de Andrade Corvo)
1887. “Se a profissão do magistério é uma profissão científica como qualquer outra, o professor precisa de um período de aprendizagem, que o habilite a entrar capaz e dignamente no exercício das suas funções" (Ferreira Deusdado).
1915. “Um recrutamento de professores só pode ser feito por quem conheça perfeitamente as necessidades do ensino. O recrutamento de técnicos só pode ser conscientemente feito pelos seus iguais" (Adolfo Lima).
1930. “O Estado organiza o plano geral dos estudos, formula os objectivos a realizar mas aos professores e só a eles compete a organização dos programas dos cursos, isto é, a selecção das matérias, a concretização dos exemplos e a escolha dos métodos e processos adequados à realização dos fins que se tem em vista" (Eusébio Tamagnini).
1932. "Os que frequentam esta Escola Normal sabem muito bem que ela é um instituto de educação profissional: vem aqui aprender-se a ser educador, como numa faculdade de medicina se aprende a ser médico" (Alberto Pimentel Filho)
Encontramos nestes pequenos excertos um conjunto de considerações cuja natureza nos dirige, de forma nítida, para um leque de preocupações que poderemos centrar naquilo a que chamamos de legitimação da profissão de professor. Neles, deparamo-nos com uma combinação de imagens construídas à volta de três eixos: a profissão gerida pelos “seus iguais”, um poder próprio e intrínseco da profissão e, fundamentalmente, um saber particular, exclusivo e claramente identitário destes profissionais.
3. A docência, ou dizendo de uma outra forma, o ato de ensinar, impõe uma determinada prática social, cultural, moral, ética e política, isto é, torna o professor num “carrejão e guardião” da missão que a sociedade lhe confiou, esforçando-se por conseguir, através da pedagogia, romper as barreiras e fronteiras que muitos alunos carregam consigo, impostas quer pela família, quer pela sociedade ou, noutros casos, fazendo mesmo parte do seu próprio desenvolvimento ou do seu património genético.
4. Para ensinar bem não basta ter domínios, por muito bons que sejam, de um determinado tipo de conhecimento, é determinante ter deste uma compreensão da sua raiz histórica, cultural, científica e social. O conhecimento, em cada profissão, é guiado por um conjunto de valores que lhe dão, naturalmente, sentido e objetivos, servindo, desta forma, todos aqueles “a quem se presta um serviço e às metas sociais mais abrangentes que se pretendem alcançar com esse serviço.” (Smylie, Bay, e Tozer, 1999).
5. Para se tornar um profissional de educação, o professor depende, pois, de um articulado de características, que passam, por exemplo, por uma boa formação pessoal, por valores morais sólidos e, muito, por uma boa formação profissional, que o ajude a lidar com a surpresa e o inesperado, na certeza de que o ato pedagógico é único e irrepetível, sendo a pedagogia “por natureza, um trabalho sobre situações particulares” (Meirieu, 2002). Desta forma, recorrendo a Nóvoa (in Santos, L.L., 2013) “só a pedagogia – uma pedagogia conduzida pelos professores – conseguirá reintroduzir sentido na escola e nas aprendizagens”
6. Com tudo isto, regresso à notícia do Expresso e fico-me com uma pergunta à qual me atrevo a dar uma resposta, em jeito de provocação: qual o lugar ocupado pelos professores perante as crianças em dificuldade? Quando estas situações acontecessem a que profissionais teremos então que recorrer? Se se tratasse da área da saúde, aos médicos e enfermeiros, da justiça, aos juízes e advogados…, e falando da educação? Naturalmente aos professores, esses herdeiros da pedagogia e dos pedagogos. Essa herança exige-lhes, contudo, um compromisso ético, o de educar todas as crianças e de ter sempre presente que só há ensino quando há aprendizagem, não podendo nunca ficar resignados com as dificuldades dos seus alunos, nem tão pouco desistir de os continuar a ensinar.
Bibliografia
MEIRIEU, Philippe (1991). Le choix d`éduquer – Éthique et Pédagogie. Issy-les-Moulineaux: ESF Editeur
MEIRIEU, Philippe. (1998). Aprender... Sim, mas como? Porto Alegre: Artes Médicas.
MEIRIEU, Philippe. (2002). A Pedagogia entre o dizer e o fazer: a coragem de começar. Porto Alegre: Artes Médicas.
SANTOS, L.L. (2013). Entrevista com o Professor António Nóvoa. Educação em Perspectiva, Viçosa, v. 4, n. 1, p. 224-237, jan./jun.
SMYLIE, M. BAY, M. e TOZER, S. (1999). Preparing teachers as agents of change. In G. A. Griffin (Ed.), Ninety-eighth Yearbook of National Society for the Study of Education. (Vol.1, pp.29-62). Chicago: University of Chicago Press.
1] Meirieu, P. “L´école dáprès”... avev la pédagogie dávant? Entrevista ao “Le café pédagogique” em 17.04.2020.
[2] “A Teach For Portugal existe desde 2018, fazendo parte da rede internacional Teach For All, que atua há mais de 30 anos, em 58 países.
Recrutamos e formamos pessoas de várias áreas profissionais para integrarem o nosso Programa e serem aliados de uma escola durante 2 anos letivos, com foco nos 5.º e 6.º anos.
Estas pessoas, que chamamos de Mentores, têm a função de acompanhar um ou mais professores, atuando em sala de aula. Dinamizam também atividades/projetos que correspondam às necessidades de desenvolvimento dos alunos.”
[3] Os “Mentores Teach For Portugal (...) estão preparados para participar em sala de aula, apoiar em estudo individualizado, desenvolver competências pessoais e sociais dos alunos, realizar várias atividades pedagógicas e lúdicas, entre outros exemplos. O Mentor TFP não é contratado pela escola, mas sim pela Teach For Portugal.”
segunda-feira, 2 de novembro de 2020
Educação para a Cidadania
Haverá questões cujo tratamento seja vedado à escola, de reserva exclusiva das famílias como pretendem alguns? – Interroga-se Ana Maria Bettencourt * –. Associo-me às suas preocupações e dou comigo a questionar-me, não sobre o conteúdo mas sobre a forma da disciplina de “Educação para a Cidadania”.
Polémicas à parte, que a abordagem de um ou outro conteúdo levanta, tenho uma dificuldade enorme em ver uma área com esta importância tratada como qualquer outra disciplina, com conteúdos listados num programa, que se descarregam ao ritmo marcado num horário [todas as semanas, naquele dia, àquela hora]. E tenho mais dificuldade, ainda, em vê-la avaliada de acordo com critérios de avaliação que dão direito a negativa, porque não se sabe a matéria, e que, por via disso, se pode reprovar. Até porque o que se impõe na educação para a cidadania não é apenas uma reforma dos currículos [elencando cada vez mais e mais conteúdos] mas que se convoque a pedagogia. É que, nesta área, o que é determinante, não se aprende de ouvido. Pedagogia, sempre a pedagogia, tão necessária no debate educativo e, estranhamente, quase sempre ausente.
terça-feira, 27 de outubro de 2020
Escola ou ensino doméstico *
Não podemos de forma nenhuma estigmatizar as famílias que fizeram esta opção pessoal, quase “intimista”, do ensino em casa. No entanto, com todas as suas lacunas, a importância da escola mantém-se incontornável.
A Escola é, antes de tudo, um lugar indispensável à socialização e que, de algum modo, faz uma ruptura simbólica com a família. Não se trata apenas do local onde as crianças vão para aprender. É um local onde elas vão aprender a aprender com os outros, para encontrar pessoas vindas de outros sítios, com histórias diferentes, com outras convicções que não só aquelas existentes nas suas famílias.
Este encontro com a alteridade e a diferença é essencial para o desenvolvimento da criança. Em termos de abertura de espírito, o colectivo escolar tem virtudes que o ensino familiar não permite, ou só muito excepcionalmente terá condições de oferecer… Percebemos as objecções das associações de pais, que afirmam que a escola não tem suficientemente em conta as aspirações dos seus filhos no que toca à criatividade, ao contacto com a natureza e de não estar atenta aos problemas individuais, aos handicaps de alguns que têm mais dificuldade em acompanhar uma turma. E isso é verdade!
Se na ideia do Presidente francês a escolarização, e não só a instrução, se torna obrigatória, vai ser preciso que a Educação Nacional faça um esforço real em direcção de todas estas crianças que hoje têm escola em casa. Trata-se, aqui, de ter mais em conta as suas personalidades e singularidades. Melhorar também os contactos, a “mistura entre todos”.
A aprendizagem reduzida ao contexto familiar têm o problema de não oferecer um colectivo, o grupo de que a criança precisa para se realizar. Ela também precisa de alguém que não seja um familiar para incarnar a transmissão de conhecimentos de uma forma rigorosa: é importante distinguir o registo familiar, que é do domínio afectivo, e o registo das aprendizagens cognitivas, mesmo que não exista nenhuma barreira entre os dois.
O que estrutura psicologicamente a criança é: “os meus pais gostam de mim, fazem-me descobrir aquilo que eles gostam; o meu professor faz-me descobrir um mundo de modo mais amplo, independentemente das escolhas da minha família”.**
* No original: “Face à l'instruction à domicile, Philippe Meirieu plaide pour l'école, "rencontre de l’altérité et de la différence". LER >>>
** Vejo a família como algo próximo de uma comunidade. (…) O que é decisivo aí são as relações afectivas. (…) O que une uma comunidade são as forças centrípetas que fortalecem o vínculo em torno de algo que aproxima as pessoas.
domingo, 18 de outubro de 2020
Crenças e práticas profissionais dos professores *
François Jarraud |
Professores confrontados com imposições de mudança
Géraldine Farges, que coordena este número, está bem ciente de que a palavra "crença", aqui identificada com as convicções pedagógicas dos professores, é problemática. Os artigos desta edição visitam 10 países com sistemas e práticas diferentes: Estados Unidos, França, Coreia do Sul, Tunísia, Brasil, três países da África Ocidental, Canadá, Suíça, Bélgica e Polónia. Na Polónia, "para compreender a resistência dos professores polacos ao conhecimento que lhes é ensinado na formação", o autor fala de teorias pessoais. Na Tunísia e na África Ocidental, fala-se de "crenças ancestrais" ou "tradicionais", na Suíça "crenças prévias", na Coreia do Sul "crenças epistemológicas", nos Estados Unidos "referências culturais" e em França "normas".
Por detrás desta gama de fórmulas, pode-se adivinhar toda uma sociologia da situação dos professores na sociedade. Porque a questão subjacente a esta questão é a da aplicação das concepções decididas para os professores. Como diz G Farges, "pensadas em conjunto, as crenças e práticas dos professores permitem-nos dar um novo olhar à mudança educacional". Pois esta "resistência" [palavra, por vezes, utilizada nos artigos] parece universal.
Entre resistências e apoios à formação?
Um óptimo exemplo é dado pelas escolas "sans excuses", em expansão nos Estados Unidos, graças ao financiamento de grandes fundações. Estas escolas, privadas [charter schools] escolarizam crianças em risco de minorias étnicas. Praticam uma disciplina com punições que seriam consideradas inaceitáveis entre nós. Empregam jovens professores, obrigados a seguir protocolos muito rigorosos e precisos, à imagem do que a “Agir pour l'école”, apoiada financeiramente pelo Ministério da Educação, está a tentar praticar em França.
No entanto, explicam JW Golann, A Weiss e K Gegenheimer, nem todos os professores respeitam os currículos; há os conformistas que aderem totalmente ao tipo de educação destas escolas; há os imitadores incapazes de entrar no modelo; existem conciliadores que adaptam as práticas da escola aos seus valores; finalmente, existem os resistentes. Os autores concluem convidando os futuros professores a descobrir o seu perfil.
Na Polónia, E Filipiak mostra como as crenças pessoais dos professores podem ser um apoio para a sua formação. "Para que os professores repensem a escola, assumam o desafio de abrir a cultura escolar a outras perspectivas e se envolvam no processo de mudança, é necessário preparar o terreno, trabalhar com as suas teorias e crenças pessoais... Nesta abordagem, revelou-se importante fornecer ferramentas conceptuais, que permitissem aos professores participar nos debates, contribuindo para a reinterpretação e mudança das suas próprias práticas. Os exemplos de projectos desenvolvidos demonstraram que, ao criar uma comunidade de aprendestes, analisando e participando em práticas semelhantes, os professores desenvolvem modos de entendimento partilhado, formas de pensar e agir colectivamente: um sentido de acção".
A resposta de uma profissão submissa
Crenças, teorias pessoais, normas…, Maurice Tardif [do Quebeque] dá-nos as chaves de uma análise sociológica para compreender o que está a acontecer, esta famosa "resistência à mudança". Para ele, a questão coloca-se porque os professores se tornaram profissionais submissos. "As crenças colectivas [de professores] não são verdadeiras nem falsas porque a formação de professores não é científica, como as permanentes controvérsias a seu respeito mostram: é uma construção social, produzida por vários grupos e organizações [estado, universidades, autoridades escolares e patronais, sindicatos de professores e ordens profissionais. fundações privadas, etc.] que tentam defini-la de acordo com as suas perspectivas e interesses”. Para ele, "estas crenças testemunham (...) a situação socioprofissional dos professores em relação a uma formação sobre a qual têm muito pouco controlo, e que sempre foi definida e imposta pelas autoridades políticas e educativas, bem como pelas elites académicas. Neste sentido, estas crenças exprimem a racionalidade de uma profissão submissa, cuja função é formar outros, mas que tem muito pouco a dizer sobre sua própria formação".
Maurice Tardif mostra como a profissão de professor se tornou uma profissão amarrada às imposições da sua hierarquia. A peculiaridade de uma profissão submissa é que a sua própria formação lhe escapa. "Os milhares de estudos dedicados, desde os anos 80, aos conhecimentos profissionais dos professores, indicam que estes assentam em bases que são simultaneamente incertas e heterónimos para as suas práticas profissionais (…). Observa-se que a maioria das categorias de conhecimento [de currículos, objectivos educativos, contexto social, disciplinas a ensinar, etc.] provém de grupos de actores [académicos, investigadores, funcionários públicos, especialistas em currículos, etc.] que não são professores e que não pertencem, directa ou directamente, à profissão docente". Numa profissão sem voz, os conhecimentos específicos, que poderiam afirmá-la, não contam.
"As crenças colectivas dos professores provêm de uma espécie de "racionalidade cognitiva" [Boudon, 1993], através da qual os professores exprimem as razões para acreditar no que acreditam, com base na sua experiência enquanto professores. Os professores, em geral, acreditam que aprenderam a ensinar, principalmente, através da sua experiência de trabalho escolar, e não através do que aprenderam nas escolas de formação. Muitos professores acreditam, também, que a competência pedagógica é principalmente uma questão de personalidade, talento e mesmo vocação, e não de formação. São uma resposta às relações de submissão, em que se sentem amarrados.
Tensão entre eficiência e submissão
Françoise Carraud prefere encarar a questão a partir das representações, que apoiam as opções que os professores experimentam: o que é para eles um "bom trabalho"? E isto leva-a a analisar duas situações que todos os professores conhecem. "Ter uma turma que funciona", constituída por alunos que garantem o sucesso dos professores, na sua missão de transmissão do conhecimento. Ter uma turma que funciona permite-lhes afastar o “fantasma da (sua) impotência”. A segunda situação é aquela em que se tenta medir o grau de eficácia que pode ser atribuído aos professores e às suas práticas, de acordo com contextos socio-geográficos. Quando se pretende avaliar este grau de eficácia, os professores refugiam-se no seu próprio sentimento de eficácia, enfatizando, antes de mais, a eficácia de uma "turma que funciona”. E aqui surge “o debate entre o padrão de eficácia, que é quase impossível de medir, e o de utilidade. Ser professor é ser útil, útil às crianças e adolescentes que, sem o professor, não conheceriam a ‘cultura’. Esta noção de cultura, que é polimorfa e instável, também é debatida, mas permanece no interior da profissão docente".
Géraldine Farges conclui. "Se as crenças profissionais dos professores forem consideradas como um factor determinante no desenvolvimento das suas práticas, ou mesmo a serem tomadas como ponto de partida para actividades de formação, estas, quer individuais quer colectivas, devem também cumprir as directrizes institucionais. Daqui resulta, que as crenças dos professores são centrais na construção da profissão docente, mas também marginalizadas pelos sistemas educativos, que não toleram uma tão grande diversidade de crenças. Há, portanto, aqui um ponto de tensão: com maior autonomia, os professores sentem-se mais eficazes [e acreditam mais no que fazem], correndo o risco de se afastarem do projecto político em que a sua acção educativa está mais globalmente enraizada". Esta é, mais do que nunca, a questão.
sábado, 17 de outubro de 2020
Em defesa de uma escola para este século *
Rodrigo Arénas |
O modelo escolar está num impasse. A escola já não responde aos problemas que as crianças enfrentam, se é que alguma vez respondeu.
O papel da educação está a ser profundamente atacado. Quer a consideração da educação como um produto, que a escola comercializa, como a proletarização da profissão docente, estão a perturbar os fundamentos da instituição escolar. Assiste-se, hoje, à ideia de que os professores podem ser restaurados à sua “antiga glória”, como se houvesse alguma glória nisso!
A escola está ligada à República e aos seus valores; não existe apenas para aprender a ler, escrever e contar. Ela deve, acima de tudo, proporcionar às crianças os meios de que estas necessitam para agirem no e sobre o mundo.
A tecnologia digital está também a mudar a escola que, ao resistir [por impulso] à mudança, é incapaz de fornecer o básico. Há toda uma aprendizagem por fazer! Sem uma estrutura consistente que os apoie, os estudantes são transformados em utilizadores de uma tecnologia que os domina. Durante o confinamento, os professores, desprovidos da forma artesanal que caracteriza a sua profissão, viram-se apenas treinadores de aplicações e software. E, no final, o que se viu foi o sector privado a engordar à custa dos défices do sistema Nacional de Educação.
Precisamos de quebrar o modo como a escola se estrutura. Precisamos de uma escola construída para os mais frágeis; uma escola capaz de organizar aulas que integra vários níveis, que ensina as crianças a encontrar soluções através da colaboração e da solidariedade. Precisamos de uma escola que procura a felicidade das crianças, que sabe como ir para além do quadro disciplinar. Uma escola que saiba reagir à pressão de tremendas desigualdades sociais.
As desigualdades sociais são o principal problema da escola e estão no topo da lista de preocupações dos pais. E, no entanto, parece que aceitamos a ideia de que a escola não tem como agir nesta área. Nalguns discursos, por vezes, a desigualdade social é vista mais como algo que nos desculpabiliza, pelo que não fazemos, do que um desígnio à volta do qual nos deveríamos mobilizar. Ora, aceitar a ideia de que a escola faz apenas o que pode nesta área, é abrir a porta aos que pensam que, na escola, é cada um por si.
Estamos numa encruzilhada. Nunca, como hoje, os desafios do desenvolvimento sustentável foram tão estruturantes. Quem pode dizer que a ecologia não é uma questão central para as gerações futuras? Mas a escola não responde a esta pergunta. O mesmo se aplica à tecnologia digital. Se a escola não se preparar para ela, então será o GAFAM ** que prevalece.
* No original, “Plaidoyer pour une Ecole du XXIème siècle”. Entrevista publicada no “Le Café Pédagogique", aqui condensada em forma de artigo.
** Sigla para Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, as cinco maiores empresas da Internet, cujos orçamentos correspondem ou excedem os dos estados mais ricos do mundo...
quinta-feira, 15 de outubro de 2020
Compreender a utilização do digital pelos jovens
No início deste século, quando começamos a inquirir sobre este fenómeno, constatamos que, mesmo nos meios mais desfavorecidos, todos os jovens procuravam o acesso aos meios informáticos e à internet. Quase todos, de um modo ou de outro, estavam regularmente em contacto com estas tecnologias.
Hoje, quando se fala de fractura digital e info-exclusão, esquecemos que o acesso à informática e a utilização destes meios são não só uma marca social mas também um fenómeno de aculturação e, mais importante, de inserção social.
Tudo passa, inicialmente, por uma prática individual e, depois, pela comparação e trocas entre pares. Quando questionados sobre como é que tinham desenvolvido as suas capacidades na utilização do tratamento de texto e envio de mensagens, estes jovens responderam sempre: desenrascámo-nos! Um entusiasmo motivador, mas sobretudo uma aculturação, que não passava pelo domínio das técnicas, mas antes de tudo pela compreensão do que está em jogo: a exclusão social, na maior parte das vezes. Então partiam, simplesmente, à procura, sem bússola, da escola, pelo menos.
As redes sociais digitais estão aí, os smarttphones generalizaram-se, o acesso à web democratizou-se. E, no entanto, parece desconhecermos o tipo de relação que os jovens têm com a sociedade, através dos meios digitais. Multiplicam-se as análises acusatórias, enquanto que, ao mesmo tempo, a indústria e o comércio, percebem perfeitamente as forças e as fraquezas deste estado de coisas: por um lado, a atracção por estes objectos e, por outro, a fraca resistência a um consumo generalizado [publicidade, manipulação] que relativiza não só as técnicas, como também as suas múltiplas utilizações.
O professor enfrenta jovens para quem a utilização dos meios digitais são uma banalidade. Está perante duas linhas de força: as imposições dos programas oficiais, e as competências demonstradas por eles. O fosso entre estas duas realidades, tantas vezes falado, revela a incapacidade da escola em abandonar “o modo de cumprir” os programas, as regras oficiais, nem sempre de acordo com as necessidades dos alunos.
Em 2010, um programa francês [Curiosphère], já desaparecido, dava conta da nova vida relacional introduzida pelo uso do telemóvel, e das questões que isso colocava à escola. Dez anos depois, constatamos a ausência de transformações, ou de decisões políticas, para além da inquietante proibição de utilização de equipamentos pessoais, nos estabelecimentos de ensino, por clara falta de visão – Resultado, apenas, da agitação mediática à volta do digital entre os jovens, feita a partir de notícias espectaculares [especulativas, na maior parte dos casos], realçando o lado negativo do seu uso, evocando como verdade, para apoiar a análise, uma ou outra investigação científica, que deveria ser, apenas, ideias a discutir.
Foi preciso o confinamento desta Primavera, para nos confrontarmos de novo com a relação entre as práticas digitais dos jovens e o mundo escolar. Se muitos educadores reivindicam a escola como um lugar de interacção e de construção social, esquecem-se quase sempre de perguntar “mas como?”, tendo em conta o contexto e as práticas sociais. Com os meios digitais, as pessoas e em particular os jovens [categoria que de forma nenhuma é homogénea] desenvolveram novas formas de construção da sua sociabilidade. Ora, a sociedade que se construiu com esta escola, instituiu formas de relacionamento social que nunca tiveram em conta estas transformações [O choque do confinamento foi um parêntesis e um revelador do que se passava]. Para se levarem em conta estas novas transformações, vai ser preciso aprofundar a maneira como os jovens, as crianças, as famílias, utilizam estes meios no seu quotidiano. Da mesma maneira que os professores devem ser convidados a melhor conhecer os seus alunos, no modo como estes se projectam, através dos dispositivos tecnológicos que utilizam.
Falta, muitas vezes, a atitude de observação e analise colectiva baseada em referências fundamentadas, mesmo que discutíveis. Ora, neste domínio, a pedagogia da controvérsia é uma óptima base de trabalho para pais e professores.