quinta-feira, 7 de março de 2024

A reestruturação dos Ciclos do Ensino Básico.

Daniel Lousada

No século passado ainda [final dos anos oitenta, inícios dos noventa talvez], foi lançada a ideia de estender o modelo de monodocência até ao sexto ano, eliminando desta forma o 2º Ciclo do ensino Básico. Julgo que a formação de professores do Ensino Básico, que junta a uma formação generalista uma variante disciplinar, contemplava já esta possibilidade. A ideia não avançou, e continuamos onde estamos. 

Os argumentos a favor ou contra esta ideia são conhecidos. Há-os para todos os gostos na net. Não vou, portanto, listá-los aqui. Começo então por comentar a opinião daqueles que, ao verem este tema discutido no relatório "Educação 2022", defendem que, "numa altura de grande escassez de professores, presente e futura, nada acontece por acaso"[1]. Também nesta coisa dos acasos é possível encontrar acasos para todos os gostos. Quando, no tempo do governo de Passos Coelho, a fenprof parecia abrir porta à divisão do currículo do 1º Ciclo em "fatias"[2], dizia-se, não por acaso também, haver excesso de professores. Não é portanto por acaso que, nesta sucessão de acasos, sejam ora os interesses da tutela ora os interesses corporativos a trazer o tema da fusão entre ciclos para a agenda.

Uma coisa parece certa: de acordo com o jornal Público, o tema é assunto, pelo menos, no programa da A.D., mas desconheço em que termos. Nisto da leitura de programas eleitorais, sou como a generalidade dos portugueses: fico-me pelo que se diz. Por vezes, é certo, nestas coisas, nem o que se escreve se faz, quanto mais o que se diz. Mas, à cautela, o melhor é estarmos atentos e prepararmos-nos para reagir ao que pode vir por aí.

A fusão de ciclos, mantendo a monodocência, ou avançando com a pluridocência a partir do 3º ano, são hipóteses pensadas no passado. Fica por saber o que esta pluridocência significa. É que entre a docência partilhada com um professor coadjuvante, e a divisão do currículo em disciplinas, leccionadas por professores especialistas nos respectivos conteúdos disciplinares, a diferença é enorme. 

Há compatibilidade entre monodocência e pluridocência? Sim. Não é preciso dispensar o modelo em vigor no 1º Ciclo, para permitir a entrada de professores especialistas desta ou daquela área disciplinar. Têm é de entrar para apoiar e não para substituir o professor titular, à semelhança do que acontece, por exemplo, com a educação especial. Mas isto, a meu ver, implica que se repense o serviço de apoio aos professores e seus alunos, e o perfil dos respectivos especialistas [3].

No 1º Ciclo, o que se passa com a disciplina de inglês, nas situações que observo, reflecte um modelo incompatível com o regime de monodocência. Faz parte do currículo deste Ciclo, mas parece um corpo estranho a correr fora dele. Para mim, que apoio, convictamente, a extensão da monodocência até ao 6º ano, não me faria impressão alguma ver a língua inglesa a partir mesmo do 1º ano, desde que a sua entrada se desse como mais um instrumento de cultura que nos liga ao mundo, interligada com outras componentes do currículo [4]. Como nem todos os professores do 1º Ciclo sabem o mínimo dos mínimos, indispensável para ensinar inglês, há o especialista que os coadjuva, podendo o professor do 1º Ciclo, que se mantém na sala de aula, como figura tutelar de referência, aprender com ele, apoiando os seus alunos enquanto aprende com eles [5]. Seria a aprendizagem cooperativa professor/aluno, no seu melhor, atrevo-me a dizer.

____________________________

[1] Comentário partilhado na página do Facebook de "Inquietações Pedagógicas".
[2] "A reorganização do 1º CEB que se defende, (...) implica o fim do regime de docência com um único professor para todas as áreas curriculares" [Jornal da FENPROF nº 274, Dezembro 2014, p.18].
[3] Aqui não posso deixar de entrar num assunto que, talvez, não seja do agrado dos professores de educação especial que, a meu ver, não são todos especialistas na área de especialização de que a escola precisa. Por exemplo, o que aprendi sobre deficiência mental, serviu-me de muito pouco [para não dizer nada], no apoio que fui chamado a prestar às crianças portadoras daquele tipo de deficiência. Mas isto são fados de outro fadário, que ficam para “cantar”.
[4] Sérgio Niza defendia, há alguns anos, que os conteúdos nucleares do 1º Ciclo são os Estudo do Meio, identificando os conteúdos da língua portuguesa e da matemática, como instrumentos de cultura, naquela visão integrada que tem caracterizado o seu currículo
[5] Assim, por exemplo, quando na área do Estudo do Meio, no Bloco 1 - À descoberta de si mesmoas crianças são levadas a identificar-se pelo seu nome, a identificar os seus pais e outros familiares, e respectivas profissões, os amigo, o lugar onde vivem, etc., poderiam brincar com a língua inglesa: I am ..., my name is ..., my best friend is ..., etc.

domingo, 3 de março de 2024

O que é cooperar?

Nicolas Go
Versão portuguesa de Daniel Lousada

Cooperar é “trabalhar juntos”.

Do latim opus, que significa tanto o trabalho quanto a obra, a palavra designa o produto concreto do trabalho [operari signi­fica trabalhar]. O prefixo cum [“com”] indica que o tra­balho é feito em conjunto. É, portanto, a associação de duas ideias, a do trabalho e a do que é comum. É uma certa forma de trabalho, cuja propriedade é que seja feito em comum. Mas o que é esse comum? E como se concebe esse trabalho? CONTINUAR A LER >>>

sexta-feira, 1 de março de 2024

Pedagogia: em busca de um tempo presente de alegria de viver

Nicolas Go
Versão portuguesa de Daniel Lousada


Práticas

Sabemos bem que a obra de Proust não relata o percurso de quem procura o que perdeu, mas que se apresenta como a criação literária de um mundo sensível. Da mesma forma, a pedagogia não trata o tempo como algo que deve ser racionalizado para não ser desperdiçado. Molda um tempo de subversão das instituições escolares. Abre a pos­si­bilidade de um outro mundo, um tempo presente de ale­gria de viver, um tempo de poder supremo sobre o traba­lho.

O tempo perdido é o de um presente sem desejo, LER MAIS >>>

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Educação: entre "ducere" e "agere"

Nicolas Go

Sabemos que pedagogo deriva do grego paidagôgos – “aquele que guia as crianças” –, uma palavra composta de paidos – que se refere a um filho e que pode ser interpretada também como criança – e do verbo agein, que significa "conduzir, guiar". Na antiguidade, o pedagogo não era o professor, era o empregado [normalmente um escravo] encarregado de acompanhar a criança à escola, [levava-lhe a sacola e a lanterna com que iluminava o caminho do seu jovem amo], e tinha como função a formação e a educação moral ou, no sentido metafísico, a de "condutor de almas".

Uma grande maioria das palavras gregas são as de uma civilização de pastores, guias de rebanhos. O termo agein – conduzir – está próximo de agelê, que significa rebanho, manada, e que acabou por se transformar, no latim, em agere, que quer dizer agir. Isto para dizer que o significado de conduzir que é atribuído à palavra grega agein tem o sentido de "empurrar à frente". Como é que se conduzem os rebanhos? Empurrando-os à frente. Não é o pastor que programa o caminho dos animais, são os animais que, por si sós, na exploração que desenvolvem através do pasto existente, controlam o caminho de acordo com as suas necessidades. É uma relação rebanho/pastagem. O pastor limita-se a estimular os que param ou se perdem. A evolução da língua, em latim, levou ao termo ducere, que significa também "conduzir", mais precisamente, "conduzir indo à frente", e foi deste verbo que derivou a palavra educação. Temos então "ducere” – “conduzir indo à frente" – e “agere” – “empurrar à sua frente" ou fazer caminhar. Dois tipos de pedagogia.

* In "A criança autora: para a construção de uma prática de emancipação >>>

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

D' "A sociedade do resumo"

Rosário Rosa e Daniel Lousada

No "perfil" de um amigo (o perfil é do facebook, mas o amigo é de verdade), damos com o artigo "A sociedade do resumo" [09.02.2024], de Filipe Gil, editor do Diário de Notícias.

A propósito do livro "Smart Brevity", que explora "o poder de dizer mais com menos", Filipe Gil não resiste a comparar o comportamento da sua geração com o comportamento da geração actual, face ao consumo dos bens de cultura:"Naquele tempo" (o seu), "há menos de trinta anos, os bons alunos explicavam, es­creviam e, pasme-se, pensavam", dando a entender que os bons alunos, hoje, não explicam, não escre­vem e, pasme-se, não pensam! Será? Não sabemos! Como não sabemos, e Filipe Gil não explica, se os bons alunos não pensam porque não explicam como querem que expliquem; ou se não explicam porque escrevem o que pensam na mesma forma rápida e sucinta, que já naquela época safou o autor da “soci­edade do resumo”, em tantos testes e exames, com notas acima da média, dando-lhe acesso à desejada categoria dos bons alunos.

Mas sabemos que os 30 anos que medeiam os tem­pos a que Filipe Gil se refere não conheceram altera­ções tão significativas no sistema educativo portu­guês que permita que, hoje, um aluno que não leia e não pense possa ser um bom aluno, assim como não acreditamos que o sucesso dos bons alunos de ontem passasse pela leitura de muitos livros, com muitas pá­ginas[1] e por um pensamento aprofundado sobre os assuntos. Há trinta anos, eram também muito poucos os que "explicavam, escreviam e pensavam", a maio­ria lia apenas o estritamente necessário[2] para atingir os objetivos definidos pela escola. As excepções exis­tiam, como continuam a existir, no presente.

Então o que leva Filipe Gil a convocar a “sociedade do resumo” para acusar os jovens de hoje da falta de pensamento?

Curiosos, e para não nos metermos a comentar o as­sunto completamente às escuras, fomos à procura do livro, que Filipe Gil identifica de "quase auto-ajuda", e encontramos uma amostra (gratuita) da versão di­gital, disponível na Amazon. A leitura da amostra sa­tisfez a nossa curiosidade, dispensando-nos do inves­timento no livro, por falta de entusiasmo pelo con­ceito. “Não nos adaptámos ao excesso de informa­ção", é a constatação de partida, legítima a nosso ver, dos autores de smart brevity, administradores de uma empresa de média, dedicada a ganhar dinheiro com a informação tratada, que disponibilizam aos "leitores mais influentes e exigentes para consumi-la - CEOs, líderes políticos, gestores e curiosos viciados em notícias", oferecendo-lhes a notícia em menos pa­lavras, breves apontamentos, talvez .

Aqui chegados, achamos que só na falta de entusi­asmo pelo modelo de negócio em que assenta o con­ceito de smart brevity nos aproximamos de Filipe Gil; de tudo mais que defende no seu artigo, afastámo-nos. “Estamos a deixar que esta sociedade do resumo aconteça", diz o editor do DN, qual representante das gerações dos "trinta e muitos, quarentas e cinquen­tas", como se a sociedade que identifica “do resumo” dependesse da nossa autorização ou da vontade dos jovens que critica para acontecer.

Quanto a nós, o que vivemos hoje em dia, na forma de ‘resumos’ está longe de ser algo que apenas atinge os mais jovens, e não conseguimos identificar-nos ou embarcar neste tipo de "guerras geracionais" de va­lor, assentes em descrições que, a nosso ver, são úteis apenas para excluir a hipótese de que estamos errados ou, como refere Maria Zara Coelho[3], de a es­cola estar enganada, de os adultos que o fazem, e so­bre ela escrevem, estarem a deixar fugir cada vez mais a realidade que pretendem modelar: é o triunfo da cultura prescritiva de que fala Machado Pais[4], jus­tificada pela massificação do ensino, sujeito cada vez mais a uma economia de escala. Infelizmente, na es­cola, como nos jornais que a contam, as perspectivas tão diversificadas dos jovens pouco valem”[5].

Vivemos, como sempre vivemos, num mundo feito de “ondas” que, indiferentes a quaisquer tentativas de controlo, e não se deixando navegar (apenas sur­far), seguem o seu caminho influ­enciando a nossa forma de pensar. Acontece que a maior parte dos jo­vens da nossa geração (a tal dos trintas, quaren­tas, e mais) deixavam-se, apenas, ir na onda! Quer dizer, sem de­safio e sem escolha, limitavam-se a segui-las sempre rumo às praias que lhes eram indi­cadas. Não sendo mais possível garantir que os jovens seguem a onda indicada, resta-nos, com eles, identificar as on­das que melhor nos servem, cuidando que somos ca­pazes de surfá-las para não nos deixarmos afogar por elas. Até porque não são só os jovens que correm o risco de não chegar à praia. E hoje, quer pela dimen­são quer pela na­tureza das on­das, não fica claro o lu­gar de quem aprende e de quem ensina neste pro­cesso de surfar: em muitos aspectos, não estamos se­guros de estar suficiente­mente habi­litados para surfá-las: só em co­operação com os jo­vens – e eles connosco – nos manteremos à tona.

”O modo como pensa­mos depende do modo como co­municamos”[6] – defende Castells[7] –, ou como sur­famos, diríamos mantendo a analogia. E, neste sen­tido, afirmamos a urgência de encarar a dimensão ge­racional, não numa lógica de oposição, mas de rela­ção. Como pen­sam os jovens, como se relacionam entre si? De que forma procuramos conciliar os seus interesses (se é que procurámos conciliá-los) com os interesses de uma escola tão pouco flexível?[8] Tudo desafios que só no interior de uma profunda reflexão pedagógica é possível enfrentar. Um problema da pedagogia que, na falta dela, se agudiza dia após dia!

VERSÃO EM PDF DISPONÍVEL >>>

___________________________________________________

[1] Embora presente em muitos professores e na sociedade em geral, a ideia de que os estudantes (bons ou maus) “não pensam” é absurda. Os jovens pensam, e provavelmente não pensam menos do que as gerações anteriores, até porque o mundo em que vivem é muito mais complexo: estruturas enfraquecidas; enorme volume de informação diversificada e contraditória; incerteza e risco na percepção do futuro ...
[2] Convém recordar que o livro era quase um bem de luxo, raro nas casas das famílias portuguesas.
[3] Jovens no discurso da imprensa portuguesa: um estudo exploratório. Análise social, vol XLIV (191), 2009, pp. 361-377.
[4] 2001, p. 414
[5] Neste afã de olhar o lado negro do mundo, não vêem que o futuro se vai fazendo, de preferência de forma participada, envolvendo os jovens.
[6] Não há pensamento sem comunicação. E o outro está sempre presente quando pensamos, mesmo no diálogo interior que aprendemos a fazer na sua ausência, a partir dos inúmeros diálogos que tivemos com ele.
[7] Ver registos vídeo: Escola e internet>>> e O poder da juventude é a autocomunicação>>>
[8] O interesse, aqui, tem o sentido que lhe é atribuído por Daniel Pennac, que o distingue do desejo: o que desejamos nem sempre é do nosso interesse. Quantos alunos conhecem o programa (não os conteúdos dos manuais escolares), que faz parte do seu contrato com a escola, essencial na construção das pontes entre os interesses em confronto?


sábado, 10 de fevereiro de 2024

Tecnologia Digital: Extensão ou substituição? Mais outras interrogações e a pedagogia no horizonte

Tema em desenvolvimento, iniciado a partir das interrogações de Isabel Calado, que tomamos a liberdade de fazer nossas, saídas da 75ª "Tertúlia Inquietações Pedagógicas".

Embora a minha preocupação, como professor, no que diz respeito à tecnologia digital, tenha ido no sentido do uso que lhe poderia dar como instrumento auxiliar do meu trabalho, de tirar o melhor partido dela, no dia-a-dia da sala de aula, hoje acho que acompanharia Isabel Calado, na sua preocupação, e estaria muito mais preocupado com o que a tecnologia pode fazer connosco, e não tanto com o que nós podemos fazer com ela

Trata-se, sem recusar o conforto que a tecnologia traz às nossas vidas, de pensar o seu uso de um modo que não nos faça seus escravos, que nos paralisa quando nos afastamos dela.

CONTINUAR A LER EM>>>

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Um apelo à resistência


Nem toda a inovação é, de facto, inovação, alerta Philippe Meirieu. Nem toda a inicia­tiva inovadora leva ao progresso.

A palavra inovação, na prática de muitos, re­mete para um conceito que se alastra de uma forma ambígua, que não questiona os seus fins: “Para que tudo fique na mesma é preciso que algo mude”, diz o príncipe de Salina, personagem do romance histórico "O Leopardo", de Giuseppe Tomasi. A inovação pode, aliás, esconder um retrocesso, ou uma abordagem comercial virada para o lucro, como é o caso da marca “Montessori”, que se tem expandido numa caricatura pedagógica, espécie de franchi­sing, que se alimenta do prestígio da peda­goga italiana. Nesta visão comercial, a peda­gogia surge como receita vendida por uma “casa-mãe”, com os seus centros de forma­ção,* que cuida que os utilizadores aplicam cor­rectamente a receita, usando os produtos (planos, materiais didácticos) fornecidos . 

Queres uma pedagogia inovadora? – pergun­tam-nos, certos vendilhões – Não penses mais. Nós já pensamos por ti. Temos a inova­ção que procuras ao preço de...

É preciso resistir ao endeusamento da “inova­ção” que faz de nós actores apenas. “O pro­fessor que inova não se submete a protocolos estandardizados”, defende Philippe Meirieu. E, citando Jules Ferry e Jaurés, continua: “Não faremos homens livres com professores sub­missos. A República não ensina por nenhum catecismo”. Devemos vivenciar e não apenas proclamar os valores republicanos, para que nenhum aluno seja excluído do conheci­mento, conclui Meirieu.

________________________

* Algo que não é necessariamente mau, face à ausência propostas de trabalho que nos mobilizem!



sábado, 9 de dezembro de 2023

Sobre os resultados dos alunos portugueses no Programa PISA 2022

Não sou muito de pasmar mas, de vez em quando, há coisas que me deixam pasmado: O presidente da "Sociedade Portuguesa de Matemática" acha que os resultados dos alunos portugueses, no Programa Internacional PISA 2022 se devem, entre outros momentos de avaliação intermédia, à falta de exames no final dos 1º e 2º Ciclos.

É caso para dizer que o sr. José Carlos Santos acredita, tal como eu quando era muito miúdo, que o termómetro faz baixar mesmo a temperatura - "Vamos lá tirar a febre", diziam-me quando me colocavam o termómetro debaixo do braço.

Acreditar que os exames no final de cada ciclo, ou quaisquer outros, têm "poder curativo", é o mesmo que dizer que, perante uma doença, basta fazer os exames que o médico prescreve, para ficarmos curados. Mas como não acredito que o presidente da SPM acredite no valor curativo dos exames, atrevo-me a imaginar que ele acredita no seu valor preventivo mas que, por razões que desconheço, não o queira admitir: sem exames que os policiem, os professores, desleixados que são, desleixam-se no seu trabalho! Será esta a conclusão a que chegou?

E já agora: Se, como dizem algumas "mentes peregrinas", as provas de aferição não motivam o esforço dos alunos, porque os resultados destas provas não se reflectem nas suas notas de avaliação, porque não dizer então que os resultados do Programa PISA estão contaminados da mesma falta de empenho? Afinal, o resultado dos testes deste programa também não se reflecte na nota dos alunos! Mais, tal como nas provas de aferição, quando foram criadas, os alunos que participam no programa PISA, são selecionados por amostragem. Isto porque o seu objectivo não é avaliar os alunos mas os sistemas educativos.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Sobre os desafios que a aplicação ChatGPT e outras aplicações de inteligência artificial nos colocam


Duas versões lado a lado: a versão original em francês, e a versão portuguesa, trabalhada sobre um rascunho produzido pelo Chat GPT, antecedida de um apontamento [nota prévia], que dá conta da atenção que deve merecer-nos o uso que crianças e jovens fazem desta aplicação. Fica o convite à leitura.
 
Para aceder ao texto em pdf, com as duas versões, seguir a ligação que se segue:
"Chat GPT mata o desejo de aprender" - versão PDF >>>


***
NOTA PRÉVIA - Daniel Lousada

Como utilizador de tecnologias digitais, fui seduzido pelo Chat GPT e outras aplicações do mesmo género. Como não ser seduzido? Em segundos ele copia, de uma língua para a língua que eu pretendo, uma quantidade de páginas que me levariam largos minutos a copiar. Copia mas não traduz, dir-me-ão. Mas, não sendo tradução, é rascunho sobre o qual posso traba­lhar num trabalho de texto, que vou confrontando com o texto original. Não dispensa, portanto, o traba­lho de análise que só quem conhece minimamente as línguas em confronto é capaz de fazer, e que lhe permite atrever-se na tradu­ção. A mim, na escrita desta versão, não me dispensou do uso dos dicionários de francês, francês-português e do dicionário de sinónimos. Como não dispensa nin­guém da informação prévia que permite a pergunta sobre o assunto que a motiva. Se não sabes porque é que perguntas?”, diria João dos Santos.*

Como rascunho, a escrita que esta aplicação de inteligência artifi­cial oferece não é, assim, texto acabado, longe disso. E mesmo que as suas traduções fossem tecnicamente perfeitas (algo de que estão longe), seriam a “perfeição da máquina”, semelhante à perfei­ção da máquina do afinador de pianos: passado pela má­quina, o piano fica afinado; a afinação de cada nota está lá no lugar certo; mas, no fim, há qualquer coisa a faltar: faltam aquelas “imperfeições" que lhe dão o “tempera­mento” que o distingue como “aquele piano”. En­tão, é a vez do ouvido do afinador de pianos entrar em acção, fazendo um ajuste mínimo aqui e outro ali, até encontrar o “temperamento” certo que não está ao al­cance de nenhuma máquina. Um temperamento que, no caso da escrita, traduzo por "sabor do texto”, aquele ca­rácter que o distingue e que, muitas vezes, nos deixa adi­vinhar a identidade do seu autor. “Por vezes, para conseguir escrever, é preciso lu­tar contra a gramática”, diz Paulo Freire. Ora, a máquina não sabe lutar contra a gra­mática: limita-se a reproduzir a gramática que o progra­mador lhe deu.

Daqui a atenção que deve merecer-nos o uso que as cri­anças e os jovens fazem deste tipo de aplicações. Mas como atender aos seus usos, se formos incapazes de re­sistir àqueles que pretendem proibir a sua entrada na sala de aula?


* * *

Chat GPT mata o desejo de aprender - Alain Bentolila

Este texto é dedicado a todos aqueles que confundem "élévation" com "élevage” **


Querer saber não é sinónimo de querer aprender. Esta distância necessária entre saber e aprender está agora a ser posta em causa pelas redes sociais, que celebram a conivência em vez de explicitarem as diferenças, e já não convidam ao diálogo, mas fecham as pessoas numa “bolha". O ChatGPT insere-se nesta lógica de imensos perigos. Mas o perigo maior que representa para as nossas escolas não se resume à fraude que pode permitir, pois encontraremos sempre os meios técnicos para a evitar. A ameaça reside antes numa relação distorcida com o conhecimento. Como diz, e muito bem, Philippe MEIRIEU, "este robot de conversação, com a sua capacidade de dar respostas em tempo recorde, satisfaz o desejo de saber e mata o de­sejo de aprender". Afinal, para que serve fazer perguntas, para que serve tentar construir laboriosamente respostas se, com um simples clique, podemos mobilizar toda a inteligência do mundo para as trazer até nós com um esforço mínimo. Pedir a um robot de conversação que escreva uma declaração de amor, ou utili­zar a mesma ferramenta para dizer ao nosso  melhor amigo o quanto estamos tristes com a morte da sua mãe, tornar-se-á em breve um lugar-comum, e deixaremos de nos aperceber até que ponto este desprendimento apouca a nossa intenção, até que ponto enfraquece o nosso envolvimento.


Aprender a ler e saber ler

Muitas vezes, pensamos que se alguma criança, algum aluno, não lê, é porque não tem curiosidade alguma, ne­nhum desejo de saber. Isto nem sempre é verdade! Pelo contrário, é o frenesim, “a pressa da chegada”, que a leva a entrar em pânico e a bloquear. Saber antes de ter aprendido; saber sem se dar tempo para aprender; eis o que estas crianças desejam. Qualquer espera, qual­quer demora, imposta por um processo de aprendizagem laborioso, desmobiliza-as e pode, frequentemente, levá-las a uma raiva reprimida, que as paralisa. Na sua maioria, estes alunos, estas crianças, ar­dem de vontade de saber. Estão dispostos a fazer tudo para conquistá-lo, excepto esforçar-se por construir o seu próprio sentido a partir das escolhas dos outros. Saber, sim! Dar-se ao trabalho de aprender com rigor, não! O que os irrita até à exasperação é serem confrontados com uma actividade em que a informação não é mais orientada pe­los laços da confirmação imediata. Uma actividade que, como muito bem diz Serge Boimare, lhes impõe "um tempo de suspensão, um tempo de pausa para uma elabo­ração mínima, porque o que há para compreender não se dá de imediato”. Este "tempo suspenso", necessário à aprendizagem, pode provocar, junto da criança, dispersão e desordem. Ela experimenta-o como um vazio, uma falha, porque a dúvida e a incerteza são demasiado dolorosas para que ela possa estimular a actividade do pensamento. Em vez de sentir aquela ansiedade ligeira e normal, que surge naturalmente ao dar-se conta do que ainda não sabe, e que deveria encorajá-la a construir o seu próprio caminho, é invadida por uma frustração terrível, quando tem de fazer associações, ligações, numa palavra... investi­gar. Por outras palavras, é a impaciência de querer ver, como por magia, as imagens a formar-se na sua mente; é o desejo, praticamente impossível, de querer compreen­der sem ter feito nada para isso; é finalmente a recusa em conceder um prazo, por mínimo que seja, ao trabalho pelo saber, que explica a sua dificuldade, ou melhor, a sua dis­função cognitiva. Gostariam de sair do túnel sem precisarde tempo para escavar. Não é por incompetência ou preguiça que al­gumas crianças se recusam a ler. Não devemos resignar-nos a essa recusa com o pretexto de que não são "feitas da mesma massa que faz leitores", ou que as crianças de hoje gostam mais de jogos de vídeo do que de livros.... Enredadas que estão num universo onde reina a conivência, a passividade e a ambiguidade, habituaram-se a aceitar apenas textos cujo sentido lhes é amplamente conhecido de antemão. Por conseguinte, desconfiam de qualquer "aventura de compreensão" que possa impor a distância e convidar à critica e à argumentação.

O desejo de ensinar deve encontrar o desejo de aprender

Amanhã, como todos os dias, cada professor abrirá aporta da sua sala de aula, para encontrar aí cerca de vinte "filhos de alguém", alguns dos quais sem saberem exatamente por que estão ali e outros que prefeririam estar noutro lugar. Cada um deverá deixar à entrada à entrada as dúvidas que o atormentam, as suas esperanças, frequentemente frustradas, para todas as manhãs renovar o "voto do professor": Nenhum de vós sairá da sala de aula como entrou. Todos vós tereis aprendido coisas que vos são desconhecidas mas, acima de tudo, tereis compreendido coisas que mal sabeis existir, e assim sabereis pensar com mais liberdade e discernimento. Mas esta vontade magistral de formar a inteligência de cada aluno, de maneira singular, deve encontrar neles o desejo de aprender, porque, a menos que fracasse na sua função essencial, a escola não pode desinteressar-se da força que faz aproximar a mensagem da criança e das motivações que a levam a acolhê-la. São essas virtudes de curiosidade e coragem que estão hoje em perigo, e são elas que a escola e a família devem transmitir às crianças, ao mesmo tempo como um desafio e uma promessa. Pais e professores devem acompanhá-las, da pesquisa à descoberta, da regra reconhecida à regra aplicada, para que aceitem o esforço intelectual e o domínio emocional que lhes permitirão dissipar as trevas e, assim, merecer que a sua inteligência interprete livremente o conhecimento sem traí-lo. É nossa responsabilidade mostrar-lhes que o desconhecido é um desafio que devem enfrentar, aceitando que o prazer do conhecimento não é mais do que um justo retorno ao seu investimento intelectual. Ensinar as crianças a valorizar o esforço porque ele traz promessas de um maior poder sobre o mundo é, sem dúvida, a melhor defesa que podemos construir contra a tentação irresistível de se render ao CHAT GPT.

Se, como eu, acreditas que o propósito do ser humano é o desejo de descoberta, a curiosidade de compreender, é o apetite pela investigação, a alegria do intercâmbio entre seres humanos, então não te deixes encantar pelas proezas do CHATGPT, que pretende disponibilizar toda a inteligência do mundo aos teus filhos, organizada de acordo com critérios que eles desconhecem, e tratada com algoritmos aos quais eles nunca terão acesso. Em vez disso, presta atenção aos "porquê pai, porquê mãe, porquê professora?" que uma criança te dirige; como um apelo para olhar e questionar o mundo juntos. Desprezar esse apelo, enviado da inteligência de uma criança à tua inteligência, é o mesmo que dizer-lhe que as suas perguntas legítimas não valem um momento de reflexão partilhada. Na escola e em casa, devemos-lhe esse momento de suspensão, em que o adulto se diferencia da máquina, para responder com amor, como ninguém mais responderia, porque ela é o que é, e tu és o que és. Em resumo, na escola e em casa, fala uma e outra vez ainda..., ouve uma e outra vez novamente, discute, argumenta, conta histórias; e... Olha, olhos nos olhos, essa criança. Aprende a manter o seu olhar que te questiona, que às vezes te avalia e, na maioria das vezes, te implora que lhe assegures que ela não é um fardo, mas o sujeito de uma relação que não dispensas.

_________________________________


A qualidade dos re­sultados obtidos com os assistentes artifici­ais inteligentes de­pende criticamen-te da qualidade da in­formação que lhes fornecemos  - a esti­mulação” (António Dias de Figueiredo, in Jornal de Letras, 29 de Novembro a 12 de De­zembro, 2023).

** Uma dedicatória cheia de ironia que se perderia numa tradução literal. Enquanto “Élévation" está relacionado com elevar ou levantar algo, "élevage" tem a ver com criação ou reprodução de animais.  Assim quem confunde “Élévation” com “élevage” não iria além da percepção que o significante lhe dá. Não seria, portanto, capaz de distinguir a acção de ajudar alguém a “elevar-se”, da acção de reprodução e criação de animais.

 

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

ChatGPT, uma aplicação de inteligência artificial, que não é possível ignorar, nem é sensato descartar


O maior perigo do ChatGPT não está na fraude que ele pode permitir, mas na sensação que dá de estarmos a falar com um humano e que inverte completamente o sentido da relação educacional - diz Philippe Meirieu -. Ele fornece respostas objectivas imediatas, dispensando, assim, a dinâmica do questionamento. Promove certezas que aprisionam o pensamento... Vai totalmente contra o que se espera de um professor: suscitar interrogações que libertam de preconceitos.

Philippe Meirieu, ao reconhecer a legitimidade das preocupações dos professores que temem que esta aplicação isente os seus alunos dos trabalhos de investigação e de escrita, defende (até por isso) que se traga o ChatGPT para a sala de aula, incentivando o estudante a formular perguntas de diferentes formas, para comparar respostas, confrontando-as com as respostas dos manuais e enciclopédias. De certa forma, promove-se a utilização das sugestões destes dispositivos como rascunhos, sobre os quais há que fazer todo um trabalho de identificação das proposições menos claras, deslizes semânticos, erros grosseiros até, que levam a mal entendidos que é necessário corrigir. Algo semelhante à tradução para português, realizada pelo ChatGPT, que acompanha a versão original de Philippe Meirieu, publicada pelo “Le Monde”, e que CONVIDAMOS AGORA A LER>>> 

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Da necessidade do tempo estendido

A gravura com a imagem de Eugénio de Andrade
foi extraída do site da Livraria Bertrand
Este poema de EUGÉNIO de ANDRADE merece lugar de destaque em qualquer espaço, como convite à pausa. Por exemplo, numa sala de aula, quando o tema convida à reflexão, ou aquela proposta de escrita leva ao impulso de escrever sem parar, sem a pausa que permite observar se o escrito, antes de ser dado como pronto, corresponde à intenção que levou à sua escrita.

Convém então perguntar: Será que o que sentes, vês, ouves..., merece essas palavras? São essas as palavras capazes de mostrar tudo isso?

Em tudo na vida, como diria Jorge Carrión o que mais nos merece, dispensa-nos a pressa de chegar, pede-nos um tempo estendido: "o desejo não pode ser imediatamente saciado - diz Carrión -, porque então deixa de ser desejo, transformar-se em nada"*. Ou como escreveu Vergílio Ferreira, “o desejo alcançado não esgota o desejar”.**

Daniel Lousada

____________________________

* in "Contra a Amazon e outros ensaios sobre a humanidade dos livros".

** in “Pensar”

terça-feira, 10 de outubro de 2023

A Pedagogia e o Digital: ferramentas para decidir

1. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que a horizontalidade das trocas que promovem não exclua a procura da verdade.

2. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que o imediatismo que elas promovem não exclua  a exigência da pausa que permite a reflexão.

3. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que  a educação tenha como objectivo ajudar os alunos a ingressar no simbólico.

***

É preciso fazer uma pergunta simples que, por si só, nos pode permitir identificar algumas chaves para a acção quo­tidiana, que ao mesmo tempo nos ajuda a focarmo-nos no que importa: em que condições o uso das tecnologias digi­tais nas escolas pode contribuir para o desenvolvimento do pensamento?

1. A utilização das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que o carácter hori­zontal das trocas que elas favorecem não exclua a procura da ver­dade. A tecnologia digital, através da Internet e de todos os instru­mentos de comunicação "em tempo real" que ela permite, modificou radicalmente o acesso à informação. Qualquer estudante, da escola primária à universidade, tem acesso instantâneo a um manancial de dados. A investiga­ção docu­mental, outrora confinada ao mundo abafado das bibliote­cas e dos centros de documentação, está agora à distância de um clique, a partir de qualquer lugar, sem re­quisitos es­peciais. Os motores de busca são consultados sis­tematica­mente e abrem uma quantidade fabulosa de docu­mentos de todos os tipos: textos digitalizados, fotografias e vídeos, textos de arquivo e peças noticiosas. Tudo isto dá a im­pres­são de que o conhecimento está a tornar-se acessível a to­dos, e que cada estudante está ao mesmo nível face ao acesso à “cultura”.

É claro que raciocinar assim é ignorar o paradoxo que está no cerne de todas as políticas culturais, já apontado por Bourdieu no seu estudo sobre os museus: o simples au­mento da oferta aumenta as desigualdades porque se apoia na procura daqueles que têm o capital simbólico, para de­se­jar apropriar-se dos bens culturais assim oferecidos. E tanto mais que, no caso da Internet, ignoramos também a natureza da "investigação" que aquela oferta permite.

CONTINUAR A LER >>>

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Digital e Modernização Educativa

A propósito de "Educação, reforma do ensino e fim dos livros em papel", publicado em >>>

A utilização do digital na sala de aula, não define, por si só, a modernidade dos processos de trabalho praticados, embora haja quem defenda que instrumentos mais evoluídos possam ser factor determinante na mudança para práticas de trabalho mais eficazes.

Não é pela fraca utilização do digital na sala de aula que Portugal tem, eventualmente, uma educação do século XIX, mas porque a organização do trabalho de aprendizagem dos alunos tem evoluído muito pouco desde então. Atualizando o que Freinet e Salengros escreveram em "Modernizar a Escola" (1960), um instrumento do século XIX também é do século XXI se responder aos seus desafios [*] O livro, só por ser digital, não melhora a qualidade da aprendizagem e do ensino, se não se ensinarem os alunos (e, já agora, os professores) a tirar partido de todas as suas potencialidades. Mais ainda, se não for garantida a qualidade do digital para todos os utilizadores, qualquer que seja o seu poder económico (coisa que a pandemia revelou não ser fácil de garantir), as desigualdades tendem a aprofundar-se. Enquanto não se garantir a qualidade do digital para todos, não se metam em "guerrinhas" com o livro em papel.

Já no que diz respeito aos instrumentos de escrita, enquanto estes não permitirem uma escrita à mão igual ou superior, NÃO SE METAM COM O PAPEL. Pelo menos com as crianças do ensino básico.

Daniel Lousada

____________________________________

[*] Ler a propósito, "Inovação ou o jia visto pintado com outras cores?" >>>

terça-feira, 3 de outubro de 2023

O digital veio para ficar e ficou mesmo [ponto]

Algum dia, em nome da preservação do ambiente, ou de qualquer outra causa, que não vislumbro, num futuro que não sei como será, cenário de ficção científica, apocalíptico talvez, o livro em papel será objecto de museu!

Vem isto a propósito do debate sobre os usos e abusos da utilização dos instrumentos digitais na escola, que me traz o desconforto de estar na presença de um de­bate sem rumo e sem foco. Elege-se o smartphone como inimigo e, de re­pente, não é só este dispositivo que está em causa, mas to­dos os dispositivos electrónicos, como supor­te da in­forma­ção em geral, e do texto em particular. Somos o oito ou oi­tenta, vamos do endeusamento do digital à sua diaboliza­ção, com uma rapidez surpreendente (efeito de “Maria vai com as outras”, que nos dispensa da capacidade de pen­sar?).

Até há bem poucas semanas, quando se fa­lava dos perigos associados ao digital, não era o seu uso, em geral, que era posto em causa, mas o seu uso sem con­trolo. Agora, dizem-nos que “a simples proximidade de um telemóvel é capaz de distrair os estudantes (...), prejudicar a gestão da sala de aula (...) e pôr em risco a interacção humana”, como que a admitir que o trabalho na sala de aula (se de trabalho se pode falar, nestas condições) se desenrola em roda livre [1].

O que caracteriza a escola como espaço educativo, é o con­trolo do trabalho de aprendizagem que nele se realiza. Não se vai para a escola para usar os instrumentos de trabalho (digitais ou quaisquer outros), à vontade do fre­guês, sem critérios ou sem qualquer objectivo educativo no horizonte. En­tão, a questão está em saber em que condi­ções, e por quem, esse controlo é exer­cido. Aliás, como dizia António Nunes, no programa Antena Aberta, a propósito da entrada, na es­cola, das tecnologias de infor­mação e comu­nicação, “há momentos em que a voz é importante e as ca­netas estão paradas [2]. Ora, é precisamente ao professor que compete gerir estes momentos: decidir sobre os tempos em que os smartphones estão ligados ou desligados. Não acho, assim, pelo que se diz e escreve, que seja um problema que resulte da proximidade dos alunos com estes dispositivos, mas da dificuldade, ou mesmo da incapacidade, que grande parte dos professores sente, em gerir aqueles tempos. Conse­quência de uma autoridade (a sua), que a cada dia sentem que estão a perder e pensem que, desta forma, ela possa ser restau­rada? [3]

Se da presença dos smartphones, na sala de aula, se pode dizer que le­vanta, em muitos casos, problemas difíceis de gerir, já da substituição dos manuais escolares, em papel, pelos correspondentes digi­tais, não vejo que problemas possa trazer. Os ta­blets que suportam os manuais esco­lares permitem o acesso a conteúdos que não queremos que se­jam acessíveis aos nossos alunos? Fácil: bloqueie-se o seu acesso nesses dispo­sitivos; façamo-los dispositivos dedica­dos à leitura de manuais es­colares e de mais informação re­lacionada com eles.

Bastou a Sué­cia travar às quatro rodas, na digitalização dos ma­nuais escola­res para que, entre nós, se levantasse um coro de vozes a reivindicar idêntica decisão. Como se, o livro em papel, só consiga entrar na sala de aula através do ma­nual escolar... Esquece-se que, o que se passou na Suécia, foi o resultado de uma soma de excesso, que valeria a pena analisar, não vá começarmos nós, agora, a soma de outros excessos mas de sentido contrário [4].

Para mim e para outros como eu, que gostam de livros, o manual escolar é um “livro” que não é livro. É coisa da es­cola, um instrumento de trabalho que, sendo bem feito (seja qual for o seu formato), poderia ser ligação a outros livros, esses sim, a merecerem ser lidos ou consul­tados. Além do que, o livro digital (e-book) também é li­vro, e são cada vez mais as editoras que, a par da edição em pa­pel, apostam neste formato. Pela parte que me toca, con­fesso, são mais os livros que compro, hoje, neste formato do que em papel. Leio-os, nos dispositivos dedicados à sua lei­tura, com o mesmo prazer ou desprazer, de­pendendo do conte­údo, excepto no ecrã de um pc.

Claro que, dir-me-ão, “sentes o mesmo prazer a ler e-books, porque passaste pelo livro em papel antes de chegar a eles. Quer dizer, construíste uma relação com os livros, que trans­por­tas agora para o digital; ao lê-los, na tua cabeça está, de certa forma, um livro”. E é verdade, ou acho que é verdade: o desenvolvimento do gosto pela leitura de um livro faz-se também da relação (afectiva), que conseguimos estabelecer com o objecto que suporta o texto. Quem gosta de ler tam­bém gosta de livros. Quem gosta de livros também gosta de ler. Os miú­dos precisam de estar rodeados de livros para que possam relacionar-se com eles. Se não estão em casa, deveriam estar na escola, na sala de aula. 

O manual esco­lar digital só é concorrente do livro em papel se deixarmos que seja. Na Sué­cia, quiseram que o digital fosse con­cor­rente do analógico. E ele fez o que lhe compe­tia: deu cabo da concorrência! Porque deixa­ram que desse! Agora fazem marcha atrás, num processo em tudo seme­lhante, mas em sentido contrário, respei­tando, suposta­mente, as conclu­sões da "ciência". Temo que se esqueça que, em edu­cação, nem tudo (para não dizer nada) é científico; o que acontece, nesta área, tem em conta as ciências, certamente (da educação e outras), mas a sua aplicação não é científica, é pedagógica: uma acção inserida na busca do sentido do acto educativo, na sua relação com os instrumentos pedagógicos que melhor o servem [5]. Valeria a pena, certa­mente, trazer a voz dos pe­dagogos para o debate.

Estranho mundo, este em que vivemos. Valorizamos o digital nas nossas vidas, mas não sabemos (nem procuramos saber) o que fazer para ajudar as nossas crianças e jovens a usá-lo de uma forma saudável! Apetece dizer, com Philippe Meirieu, “Velho devaneio filosófico: reduzir o mundo àquilo que podemos pensar dele ou àquilo que per­cebemos dele. E, para ter a certeza de lá chegar, fazê-lo en­trar in­teiri­nho no nosso campo de visão...” [6].

Entretanto, chegam-me notícias que dão conta de escolas que proíbem os smartphones nos recreios, aparentemente com a adesão dos miúdos: “Foi quase como se tivesse auto­rização para brincar” [7].

O recreio é um daqueles espaços que, embora na escola, é um espaço, de certa forma, sem controlo. Não é sobre estes espaços que escrevo. É sobre o uso dos dispositivos digitais em espaços controlados, que me atrevo a pensar. E que só neles é possível aprender a usá-los de forma sau­dável. Por­que se não há um espaço onde as crianças possam apren­der, elas aprendem, de qualquer forma, em qualquer es­paço, correndo o risco de aprender mal: no recreio, por exemplo. Nestes espaços, não con­tro­lados, e só nestes, que, tantas vezes, nem vigiados são, admito que o uso destes dispositivos possa ser vedado, não sem antes procurar que a decisão seja vista como legítima, aos olhos de todos quantos serão afetados por ela.

E já agora, uma provocação, ou nem tanto: porque não vedar o uso do smartphone no espaço familiar, pelas mesmas razões com que se pretende proibir o seu uso na escola?

DISPONÍVEL em PDF >>>


[1] Onde o smartphone põe em risco a interacção humana, não é na sala de aula, onde é utilizado como instrumento de trabalho. O risco ocorre em espaços sociais não controlados, e em espaços familiares que os usa como “amas”.

[2] “Computadores na escola: quais os aspectos positivos e quais as des­vantagens”. Programa passado, em simultâneo, na TSF e na RTP2, em No­vembro de 2012.

[3] “O verdadeiro problema não é o declínio da autoridade, é o facto de se colocar em rivalidade as autoridades entre si no seio do próprio processo educativo (...). Aquilo que está verdadeiramente em causa não é restau­rar a autoridade mas de torná-la legítima aos olhos daqueles que estão sujeitos a ela, não só a fim de que a aceitem mas também de que a respeitem” (Philippe Meirieu, in O mundo não é um brinquedo, Porto, edições ASA, 2066: p. 28).

[4] O recuo da Suécia é algo mais complicado do que o simples processo de voltar atrás na digi­talização dos manuais escolares. Porque não é ape­nas a digitalização dos manuais que está em causa. Avançaram tão rapi­damente, e de um modo tão radical, neste proces­so de digitalização do ensino, que chegaram ao ponto de trocar não só o livro em papel pelo e-book, mas também de apostar na irradicação do papel, trocando-o pelo pixel, o que levou ao uso do teclado como instrumento privilegiado de escrita.

[5] "Viver é resolver problemas. É isso que é decisivo" - diria Karl Popper, se fosse chamado ao debate - "O mundo põe problemas à vida. Ao mesmo tempo a vida é o pressuposto do problema (...) e as teorias que colocamos ao mundo são tentativas de resolução de problemas". E não é pelo facto de ser retirado do espaço onde ele se manifesta que um problema deixa de ser problema.

[6] Philippe Meirieu, O mundo não é um brinquedo, Porto, Edições ASA, 2006: p.199.

[7] In Público on-line: 1 de Outubro, 2023.

"DESCAMISADOS"


Não vou fazer história nem contar estórias sobre a vida de Eva Duarte de Perón, mas… sim, lembrei-me dela e da sua relação com os “descamisados”, na sua Argentina, e dos movimentos por justiça social 

Justiça social é o que falta neste mundo que desrespeitamos todos os dias. Numa população de cerca de 8,04 de bilhões de pessoas, mais de 780 milhões vivem abaixo do limiar da pobreza e 11% da população total vive em pobreza extrema, sem conseguir satisfazer necessidades básicas de alimen­tação, saúde, acesso a água e saneamento. *

Não vou fazer análise sócio-política sobre os dados que acabo de expor e que se encontram ao al­cance de quem os quiser consultar. Basta olharmos à nossa volta: as filas para aceder a uma re­feição diária, aos sem abrigo que estão nas ruas, defendendo-se do frio e dos ataques, nas estações de metro ou em qualquer pardieiro à espera que um qualquer cigarro, mal apagado, os faça desapa­recer.

A miséria encapotada é mais que muita: filhos que continuam em casa dos pais apesar de trabalha­rem e desejarem a sua independência, novas famílias que não se formam, “velhas famílias” que se aguentam na mesma casa apesar de já não terem nada em comum, filhos que não sabemos amar e educar, depositando na escola o que devia ser feito em casa. Sofremos pelos pais, pelos filhos e netos que não temos por perto. Despovoaram-se aldeias, onde só ficaram os “velhos”, abandonados e tris­tes, sem o poder reivindicativo de sindicatos que os defenda, num mundo de cada um por si.

Depois, porque não estamos bem, olhamos de “soslaio” e desconfiança todos aqueles que nos pro­curam, fugindo das guerras, da fome, da violência, e que, em vez da segurança que procuram, são acolhidos por gente que se aproveita da sua fragilidade, para os explorar sem qualquer escrúpulo. Já fomos de tudo: emigrantes e imigrados, refugiados e estrangeiros. E, apesar disso, sem querer entrar na verdade da nossa história, fica-me a sensação de que não conseguimos evitar que o nosso passado colonizador contamine as nossas acções.

Não, não “somos todos um só”. A proximidade cultural, que o processo de mundialização nos permi­tiu imaginar, está longe de se concretizar. Não basta dizer, como afirma o biólogo americano Alan Templeton, que não existem raças e que as diferenças genéticas entre as mais distintas etnias são insignificantes, que o conceito de raça não é biológico mas cultural.

_______________________________

*10% da população mundial controla 76% de toda a riqueza deste planeta, 50% dos mais pobres vão sobrevivendo com 2%, nós “os médios”, temos que trabalhar muito e ter alguma sorte para usufruir dos 22% que restam...

terça-feira, 26 de setembro de 2023

A literatura como motor de conhecimento

Percorro as páginas de "Tempo de erros", relato autobiográfico de M
UHAMMAD CHUKRI [1], e detenho-me ao ler:«O demónio da Literatura apoderou-se de mim e eu comecei a interessar-me mais pela leitura de obras literárias do que pela psicopedagogia ou pelo regulamento escolar». E leio mais adiante: «O professor de psicopedagogia apanhou-me a ler Os Miseráveis e expulsou-me da aula aos gritos: "Isto é uma sala de aula, não uma biblioteca"». E dou comigo a divagar à volta de uma escola, onde a literatura é porta de entrada, se não de todos, de grande parte dos saberes: E se as salas de aula estivessem implantadas no interior de uma grande biblioteca, fossem também as suas salas de leitura, com paredes de vidro a deixar ver as estantes e portas de acesso a dar para ela? Um cenário de ficção, obviamente!

«As histórias, como as parábolas, os enigmas e os símbolos, dirigem-se à área mais reflexiva da pessoa, onde o afeto e o conhecimento se unem, para nos fazer desejar, admirar e sonhar», diz PEDRO CUNHA, ao que JOSÉ MATIAS ALVES acrescenta«Unir o afeto ao conhecimento, ligar a emoção à razão. Assumir que não há saber sem sabor. Fazer de cada lição uma história, uma resposta»[2].

Sei pouco das razões que levaram MUHAMMAD a trocar a aula de psicopdagogia pela leitura d'Os Miseráveis (Certamente, mais do que as que me levavam a desenhar bonecos, enquanto fazia de conta que tirava notas da aula). Mas gosto de pensar que algumas estarão algures por ali E não sei também o que faz, hoje, um professor, que apanha um aluno a trocar a sua aula pelo “demónio da literatura”: pedir-lhe para fechar o livro e estar atento à lição? Não sei! Mas prefiro imaginar, talvez, a ouvi-lo perguntar o que está a ler, a ouvir as razões que o levaram à trocaE procurar, quem sabe, ligações prováveis entre os conteúdos do livro e da aulaIsto imaginando como possível, que um aluno escolha a leitura de uma obra literária, para "fugir" da sala de aula. Algo improvável, num tempo em que o smartphone tende a desviar-nos do livro ou mesmo da leitura de textos, literários ou não [3].

Para assinalar o "Dia Mundial do Livro", algumas escolas fazem do livro a "estrela do dia". Em todas as tur­mas, seja qual for a disciplina, no tempo agendado, os alunos lêem em voz alta excertos de uma obra previa­mente escolhida para o efeito. Assim, durante um curto espaço de tempo, os alunos trocam a matemática, a mú­sica, a educação física,... pela literatura, num ritual que António Nóvoa classificaria de "pro­jecto de ano bis­sexto"[4] ou para a fotografia que provoca a notícia, dirão mui­tos de nós, e pouco mais. Não é, então, "fugas da sala de aula", através da leitura de obras literárias, que procuro, mas encontrar portas que se abram à sua en­trada, nos lugares onde não é suposto a entrada da lite­ratura. Mas, com um currículo partido às fatias, como fazer entrar a literatura, com as suas histórias [ou histó­rias apenas], em todas as disciplinas? Nem todas elas têm esta “vocação” literária, é certo. Mas isto não signi­fica que os diferentes saberes, que te­mos para ensinar, não possam ser contaminados pela litera­tura [5]. Mas para isso é preciso aproveitar todas as opor­tunidades, criando-as se preciso for, de fazê-la pre­sente [6] e não apenas, provocando a sua “entrada a mar­telo”, no Dia Mundial do Livro

Daniel Lousada




[1] Muhammad Chukri, Tempo de Erros, Lisboa, Antígona [Ver citação >>>]
[2] José Matias Alves, Uma pedagogia da fascinação [LER>>>]
[3] Não se trata de recusar o digital como suporte do texto. Para mim o livro digital (e-book) também é livro, e não deveria ser misturado no sim ou não à presença do smartphone na sala de aula [assunto que espero abordar em breve].
[4] António Nunes conta que António Nóvoa, aquando da visita a uma sala de aula, de uma escola, na cidade do Porto, refere-se ao trabalho da professora nos seguintes termos: "Vê-se bem que nesta sala não existem projectos de anos bissextos", quer dizer, projectos que acontecem apenas em dias festivos e com pouco ou nenhum conteúdo educativo.
[5] Na busca de ligações com a psicopedagogia, leio n'Os Miseráveis, que entretanto revisitei: «Se uma alma é deixada na escuridão, pecados serão cometidosE a responsabilidade não é de quem comete o pecado, mas daqueles que causam a escuridão (...). Certamente nós falamos connosco mesmos; não há um ser pensante que não tenha experimentado isso. Alguém até poderia dizer que a palavra é um mistério ainda mais magnífico quando, dentro do homem, ela viaja de seu pensamento até à consciência, e retoma da consciência ao pensamento»Victor Hugo, Os Miseráveis, Círculo de Leitores, 1982: vol. 1, pp. 26 e 311.
[6] A título de exemplo, o poema de Manuel António Pina, Coisas que não há que há, traz a literatura para o planeamento [VER>>>]; e O pequeno livro da desmatemática, leva a matemática até ao universo das histórias. 

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Inovação ou o já visto pintado com outras cores?

"(...) Insistimos muito menos no aspecto novidade do que no da adaptação às necessidades do nosso século. Uma técnica de escola tradicional pode perfeitamente integrar-se nas nossas concepções, se permitir e facilitar as formas de trabalho que preconizamos",* defendem Freinet e Salengros na pequena brochura a que deram o título de "Modernizar a Escola".* E desvalorizam o valor da novidade: do que a escola precisa é de definir-se pela actualidade [modernidade, no dizer deles] das suas propostas, e não pela sua novidade ou da novidade dos instrumentos que usa; do inovar por inovar ou como instrumento de propaganda, acrescento eu.

A história recente da educação mostra-nos uma escola obcecada pelas inovações que não são outra coisa mais do que "novidades velhas”, mesmo velhas, na maior parte dos casos, pintadas com outras cores, disfarçadas de coisa nova: fazem-nas aparecer com estrondo para logo se esfumarem passada a surpresa inicial, destronadas por outras com cores mais atraentes; inovação apenas para quem não sabe nada da sua história. E esta obsessão é de tal forma que, por vezes, não basta trazer para a escola este ou aquele instrumento pedagógico, é preciso transformá-lo numa caricatura: o projecto pedagógico, por exemplo, quando exige a participação de todas as disciplinas, mesmo que não caibam todas nele! É o instrumento pedagógico a ocupar o lugar de destaque e não o problema pedagógico que é suposto um projecto resolver. Então, o que começou por ser um instrumento, é como que elevado à condição de pedagogia, um mantra a que é necessário aderir por inteiro: o projecto pedagógico transforma-se em "pedagogia do projecto", a diferenciação pedagógica em "pedagogia diferenciada" …, e até a pergunta, essencial no desenho de um projecto, se transforma numa pedagogia: a “pedagogia da pergunta”.**

Inovar? Sim, quando é necessário inovar, mas conscientes de que a inovação não tem de ser novidade, de que a sua preocupação não é essa: impressionar pela novidade que traz. Mas não querendo impressionar pela novidade, tem, no entanto, de trazer algo de novo em si, que identifique a inovação que propõe. Do latim innovatione [renovação], manifesta-se numa forma renovada, que incorpora novas funções, necessárias para responder melhor aos novos desafios educativos; ou pode ser, simplesmente, um olhar sobre um objecto do passado, que actualiza as suas possibilidades no presente: "O mais importante não é o novo que se vê, mas o que se vê de novo no que já tínhamos visto", diria Vergílio Ferreira.*** É este olhar e só este, que se deve pedir aos professores. É com este olhar que precisamos convocar os saberes dos pedagogos do passado, que nos fizeram chegar aqui: Freinet [entusiasta das tecnologias do seu tempo, o que não teria feito com os recursos tecnológicos de que dispomos!], Montessori, Dewey, ... e tantos outros. Mas lançar o nosso olhar sobre eles não é deixar que ressuscitem numa escola, como se fosse possível uma escola Freinet, ou uma escola Montessori. Reconhecer a actualidade pedagógica de alguns dos seus instrumentos, ou mesmo todos, é uma coisa, outra bem diferente é ressuscitá-los por inteiro numa proposta que exclui, à partida, todas as outras. Daqui a importância da história da pedagogia, que não nos deixa levar ao engano.

Repito: do que a escola precisa é de definir-se pela actualidade das suas propostas, e não pela sua novidade ou da novidade dos instrumentos que usa. Ou pior, pelo nome do passado que afixamos a uma proposta para lhe dar crédito.

"Qualquer que seja a aparência da novidade, eu não mudo com medo de perder com a troca", escreveu Montaigne. Eis a máxima necessária para resistir àquela novidade feita "inovação", que nos pede adesão por impulso.

__________________________

C. Freinet e R. Salengros, Modernizar a escola, Lisboa, Dinalivro, 1977.
** Laurence de Cock, referindo-se ao que designa de «pedagogias alternativas» escreve: "No sistema educativo público, permite aos ministérios manter um discurso de «modernização» sem gastar o mínimo euro".  Quer dizer, se alguma coisa está a falhar não é por falta de apoio, mas da pouca vontade em inovar. Só que, diferentemente do que nos querem fazer crer, "mais do que a multiplicação de exortações ministeriais à inovação, ela depende também da liberdade que é deixada aos professores para fazerem experiências nas salas de aula e para se dotarem de ferramentas de acompanhamento de avaliação dos resultados. As reformas educativas recentes vão exactamente no sentido inverso. Não é, portanto, às pedagogias alternativas que é preciso apontar o dedo, mas à escolha que uma instituição faz de privilegiar umas em detrimento de outras; de as utilizar de forma distorcida tendo como objectivo camuflar as injustiças escolares" [Ler Mais >>>]. 
*** Vergílio Ferreira, Pensar, Lisboa, Bertrand Editora, Lisboa, 1992.