terça-feira, 15 de outubro de 2024

Da investigação em pedagogia

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Não consigo conceber a actividade universitária como uma justaposição entre duas funções — o ensino e a in­vestigação — que, infelizmente, são reconhecidas e valo­rizadas de forma muito desigual. Para mim, não existe ape­nas um simples hífen entre as duas palavras, professor e investigador, mas uma relação consubstancial que torna cada uma das duas actividades inconcebível sem a outra. É o próprio sentido da palavra «universidade», em refe­rência a um possível — mas obviamente nunca realizado — projecto «universal» de partilha de conhecimentos en­tre os seres humanos. A investigação universitária deve es­tar imbuída da vontade de transmitir o saber, de fazer do conhecimento um meio de ligação entre as pessoas, de construir pontes entre as culturas, de dar ao maior nú­mero possível de pessoas os instrumentos necessários para compreender o mundo e de contribuir para o escla­recimento do debate público...

Não compreendo certos colegas que dizem perder tempo com os estudantes e que prefeririam dedicar-se à «inves­tigação pura». Compreendo-o tanto menos, quanto acho que o valor da investigação é testado pela capacidade de transmitir a sua abordagem e os seus resultados. O ensino desempenha, assim, um papel fundamental para o inves­tigador: é um instrumento precioso de formalização e um meio de sair do egocentrismo. O projecto de ensino abre a investigação à universalidade possível do conhecimento, tal como a exploração da investigação liberta o ensino do dogmatismo repetitivo.

Estou, evidentemente, consciente da desconfiança que ro­deia o meu trabalho de investigação na universidade. Nas ciências humanas, continuamos a depender de uma con­cepção positivista e experimental da investigação: a expo­sição de metodologias, essencialmente quantitativas, con­tinua a ser, muitas vezes, o único critério de cientificidade reconhecido. Como se a finalidade da investigação não fosse, muito simplesmente, produzir modelos — que de­vem, evidentemente, ser bem fundamentados e discuti­dos — que nos permitam compreender o mundo e agir dentro dele. Com as concepções que hoje dominam a «in­vestigação», creio que as maiores e mais reconhecidas fi­guras históricas, aquelas que fizeram progressos decisivos na educação, não teriam encontrado lugar na universi­dade: nem Jean-Jacques Rousseau, nem Jean-Gaspard Itard, nem Célestin Freinet, nem mesmo, noutros domí­nios, Sigmund Freud ou Denis Papin!

Pela minha parte, acredito na possibilidade de uma inves­tigação que combine observação e invenção, documenta­ção meticulosa e construção de propostas coerentes, re­ferência ao passado e o trabalho em associação com os professores. Não creio que o investigador deva estar numa posição de superioridade em relação aos profissionais, ao ponto de pretender dizer a verdade por eles. Os investiga­dores — pelo menos em pedagogia — devem submeter o seu trabalho ao teste da transmissão e oferecê-lo à inteli­gência colectiva. É por isso que não tenho qualquer vergo­nha de me ter comprometido no domínio da divulgação: desde que não renuncies à substância, ganhas sempre em expor-te. E eu prefiro expor-me ao julgamento do maior número possível de pessoas do que impor as minhas pre­tensões metodológicas e a opacidade do que tenho a dizer a um número restrito de pessoas, que se sentem lisonjea­das por fazerem parte do cenáculo... É obviamente mais arriscado, como é, por definição, o projecto de ensinar. Qualquer professor te dirá: ensinar nunca é um dado ad­quirido. É também por isso que me vejo neste trabalho e que gosto tanto de o fazer.

Por isso ainda dou aulas todas as semanas. É uma activi­dade que me é indispensável.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Pedagogia e Emancipação

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Comecemos por um dos principais pensadores da edu­cação emancipadora, Paulo Freire. Trabalhador social brasileiro, Freire começou por reflectir sobre a educação antes de se doutorar em filosofia, em 1959, sobre a re­lação entre educação e liberdade. Em seguida, volta-se para a educação popular, concentrando-se na alfabeti­zação dos camponeses. Em 1964, o governo brasileiro confiou-lhe a responsabilidade por um programa nacio­nal de educação. Essa experiência foi interrompida pela ditadura militar, que o levou ao exílio durante quinze anos. Foi neste período que produziu a maior parte das suas reflexões pedagógicas, que viriam a ter um enorme impacto, especialmente durante os anos de transição democrática no Brasil, onde se tornou praticamente o pedagogo oficial [1]. Embora tenha trabalhado apenas no contexto da educação popular, é, no entanto, um dos autores mais representativos das "pedagogias críticas", ou seja, aquelas que promovem a transformação social e estão ligadas à luta contra a opressão [2].

Para Freire, qualquer trabalho sobre a opressão começa com a busca dos seus fundamentos e de como ela funci­ona como sistema. Descreve isto como "consciencializa­ção", que não se limita à tomada de consciência da sua condição de oprimido (para isso, ninguém precisa de qualquer tipo de pedagogia), mas na qual os mecanis­mos de opressão são explicitados. Neste sentido, esta nova consciência dirige-se tanto aos dominantes como aos dominados. Mas, ao contrário da versão neoliberal da emancipação, este trabalho não tem como objectivo permitir que os oprimidos se tornem dominantes. Pelo contrário, o objectivo da tomada de consciência é abolir todas as formas de dominação — a única condição para uma verdadeira emancipação social. É por isso que as pedagogias críticas influenciadas pelo modelo de Freire são feministas, anti-racistas e anti-capitalistas. São peda­gogias libertadoras. Neste sentido, ajuda a libertar-se de todas as formas de dominação social.

Como nos lembra o prefácio de Irène Pereira, o "mé­todo" de Freire para alfabetizar os camponeses é muitas vezes confundido com a sua pedagogia, que vai muito mais longe: é uma forma de pensar a emancipação atra­vés da educação. Ao colocar a relação entre o professor e o aluno — que ele descreve como "diálogo" — no cen­tro da sua pedagogia, Freire opõe-se à pedagogia ban­cária. Vista como o produto de uma situação dialógica, a aprendizagem, para Freire, implica igualdade na relação ensinante-ensinado, não tanto igualdade de conheci­mentos mas igualdade de posições, no sentido em que cada um está envolvido numa relação cujo resultado, em termos de transmissão de conhecimentos, depende da qualidade do diálogo.

Neste sentido, Freire distingue-se de uma das obras fétiche dos pedagogos de vanguarda, Le Maître ignorant de Jac­ques Rancière. Para este filósofo, existe uma equi­valên­cia estrita de conhecimentos entre quem ensina e quem aprende. Rancière baseia a sua concepção da educação nas teorias de Joseph Jacotot, um professor do século XIX, que conseguiu ensinar francês a alunos cuja língua não compreendia, guiando-os simplesmente através de uma edição bilingue. Desta experiência, Jaco­tot derivou para um "método de ensino universal" base­ado na ideia de que o aluno pode passar sem o profes­sor. A partir deste sistema, Rancière deduziu que existe uma equivalência estrita entre o aluno e o professor: se este último aceitar abolir o domínio que lhe é conferido pela sua "autori­dade", o seu magistério, facilitará a aprendizagem; pelo contrário, qualquer explicação é uma tentativa de domi­nar. A horizontalidade pedagó­gica, a ausência de distin­ção entre os que sabem e os que não sabem, é uma con­dição prévia para a aprendi­zagem e a emancipação. Neste modelo, o único papel do professor é o de consci­encializar os alunos de que são capazes de aprender sem ele. Ensinar não é transmitir conhecimentos, mas utilizar a própria inteligência do professor para esclarecer o aluno. Enquanto a pedago­gia tradicional revela a inca­pacidade dos alunos de pas­sar sem o professor, a peda­gogia antiautoritária promo­vida por Rancière "põe em prática a capacidade que o aluno já possui" [3]. Em suma, o professor que pretende compensar a ignorância dos seus alunos legitima o ciclo perpétuo de desigualdade que justifica a sua condição de existência como profes­sor.

Para uma boa parte da esquerda radical, Le Maître igno­rant é a bíblia da pedagogia emancipatória. Sensibiliza para a re­lação de dominação inerente a qualquer rela­ção educa­tiva e recorda-nos, com razão, a igualdade da inteligên­cia e que "todos e todas são capazes de..."[4]. No entanto, apesar de Jacotot ter testado o seu "método de ensino univer­sal", ele foi es­sencialmente experimen­tado num contexto universitá­rio ultra-elitista e burguês, e foi desde o início objecto de críticas e controvérsias [5]. A sua eficácia, ou mesmo a sua transposição para um contexto de ensino de massas, da escola primária ao li­ceu, não é plausível, tendo em conta o que sabemos so­bre as teorias da aprendizagem e o seu carácter social­mente diferenciado. Menos eté­rea e mais contemporâ­nea, a pedagogia de Freire, um profissional que traba­lhava com as classes populares, parece mais transponí­vel para a resolução das relações de dominação num contexto pedagógico, precisamente porque insiste na "praxis" (acção-reflexão). Além disso, a abordagem de Freire parece permitir ultrapassar o anta­gonismo entre Bourdieu e Rancière [6].

Se compreendemos as críticas muitas vezes feitas a Bourdieu quanto ao peso do determinismo e do fata­lismo que decorre das suas análises, não podemos acusá-lo de se ter limitado a descrever os mecanismos de dominação sem procurar remediá-los. A sua "peda­gogia racional" deve ser acrescentada à lista das propos­tas emancipatórias [7]. Entre elas, a preocupação de re­du­zir a distância entre o professor e os alunos, mas tam­bém entre os alunos: em primeiro lugar, a distância so­cial, uma vez que se pede ao professor que elimine as noções implícitas inerentes à cultura escolar”; e, em se­gundo lugar, a distância inte­lectual, uma vez que se trata de colmatar as lacunas de conhecimento entre os dois parceiros da relação educa­tiva. O GRDS (Groupe de Re­cherche sur la Démocratisation Scolaire) e sociólogos da educação, como Stéphane Bonnéry e Sandrine Garcia, trabalham estas propostas em termos de "pedagogia da explicitação"[8], que deve também ser associada aos tra­balhos sobre o "currículo oculto" iniciados por sociólo­gos como Basil Bernstein [9]. Para estes autores pioneiros sobre a relação entre as práticas linguísticas nos meios populares e a reprodução das desigualdades na escola, os métodos de ensino ex­plícitos deveriam ser promovi­dos em oposição aos que eles descreviam como "invisí­veis".

À sua maneira, Freinet conciliava todas estas posições quando escrevia, em maio de 1933, no seu editorial para L'Éducateur prolétarien: "Não formamos a criança: for­necemos-lhe o máximo de elementos, o máximo de ins­trumentos, o máximo de possibilidades para que, par­tindo do que ela é, no seu meio, possa atingir a realiza­ção individual e social de que é capaz. [...] O dever dos educadores não é agradar aos poderosos do momento; a nossa tarefa é outra – temo-lo afirmado sempre: é for­mar cidadãos conscientes. Pois bem! Levamos simples­mente o nosso papel a sério!” Não é necessário multi­plicar os exemplos até ao infinito para perceber até que ponto todas estas ideias emancipatórias merecem ser trabalhadas, experimenta­das e integradas na formação de professores. Porque to­das elas têm um potencial emancipador, desde que se dirijam às crianças que mais precisam delas, e desde que se concentrem em quebrar todas as formas de domina­ção, o que é uma condição prévia para a construção de uma verdadeira igualdade e de uma escola comum. Em vez disso, estas pedagogias permanecem confinadas ao interior da investigação uni­versitária e ao mundo mili­tante, sob o olhar benevolente dos destruidores de es­colas públicas que ocupam os mi­nistérios do governo Macron. É, pois, urgente trabalhar no sentido de as po­pularizar e fazer com que sejam apropriadas por outras correias de transmissão — en­quanto esperamos por me­lhores dias.


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[1] Ler o prefácio d’Irène Pereira à Paulo Freire, La Péda­gogie des opprimés, Agone, 2021.

[2] Ler Laurence De Cock et Irène Pereira (dir.), Les Péda­gogies critiques, op. cit. 

[3] Jacques Rancière, “Sur le maître ignorant “, Mul­ti­tu­des.net.

[4] Infelizmente, o slogan “Todos podem” também foi cooptado por neoliberais e neurobeatos. Stanislas Dehaene, autor em 2007 da popular obra Les Neurones de la lecture é a figura de proa desta neurobeatitude. (...): "A longo prazo, o seu sonho seria unificar as ciências sob a bandeira de um cognitivismo capaz de produzir nada mais nada menos do que uma teoria global do cérebro, mas também dos diferentes aspectos da actividade humana – direito, economia, política, etc. – com base na hipótese de que as leis que actuam nos processos cerebrais se encontrariam, em particular, nas realizações sociais". Não poderia haver expressão mais clara da vontade de contornar o factor social na luta contra as desigualdades educativas. Sob a capa da filantropia, o grande capital, ajudado por políticos e cientistas sem escrúpulos, tenta influenciar reformas educativas baseadas no ideal empresarial. Esta visão individualista, dificilmente compatível com a escola pública, enfrenta uma grande oposição, pelo menos por parte dos professores [Laurence de Cock, À l’école du scientisme et de la neurobéatitude – um dos capítulos do livro que que faz parte este texto: École publique et émancipation sociale].4. Eva Codognet et Guillaume Tremblay, «Joseph Jaco­tot, pédagogue radical, 1770-1840», Democra­tisa­tion-scolaire.fr, 3 février 2020. 4. Eva Codognet et Guillaume Tremblay, «Joseph Jaco­tot, pédagogue radical, 1770-1840», Democra­tisa­tion-scolaire.fr, 3 février 2020. 

[5] Eva Codognet et Guillaume Tremblay, «Joseph Jaco­tot, pédagogue radical, 1770-1840», Democra­tisa­tion-scolaire.fr, 3 février 2020

[6] Charlotte Nordmann, Bourdieu/Rancière. La poli­tique entre sociologie et philosophie, Amsterdam, 2006. 7 Pierre Bourdieu et Jean-Claude Passeron, Les Hé­ri­tiers…, op. cit., p. 114. 

[8] Stéphane Bonnéry (dir.), Supports pédagogiques et in­égalités scolaires, La Dispute, 2015 ; Sandrine Garcia et Anne-Claudine Oller, Réapprendre à lire. De la querelle des méthodes à l’action pédagogique, Seuil, 2015. 

[9] Basil Bernstein, Langage et classes sociales. Codes so­cio-linguistiques et contrôle social, Minuit, 1975.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Carta a Emílio [de Rousseau]


Há mais de dois séculos que nascestes da imaginação de Jean-Jacques Rousseau. Rapidamente te tornaste uma referência e, sem dúvida, continuas a sê-lo hoje para aqueles que, como nós, acreditam que a educa­ção é a grande obra dos homens. És uma referência e, no entanto, muito poucos se dão ao trabalho de ler a tua história. Citam-te, ignoram-te ou, na maior parte das vezes, agarram-se desesperadamente a al­gumas recordações escolares, como a gravura de um famoso livro de literatura, que te mostra a admi­rar uma paisagem alpina, na companhia de um jo­vem clérigo da Saboia. Para dizer a verdade, és agora pouco mais do que um nome, uma referência e uma reverência obrigatórias para os estudantes de letras ou de filosofia. E, quando tentamos traçar os contor­nos da tua imagem, parece que, na maior parte das vezes, dás a mão a um preceptor deseperadamente sério, um argumentador incansável, que aproveita o mais pequeno acontecimento para te dar uma lição, que nunca te concede um momento de lazer ou de desatenção que ele não tenha expressamente pre­visto.

Quanto ao resto, nada de extraordinário... um cate­cismo ideológico bem conhecido: as crianças são boas, devem ser deixadas a desenvolver-se longe de influências sociais perversas, imersas na natureza au­têntica e com todas as oportunidades para estimular a sua inteligência. A ciência não se aprende na sala de aula, inventa-se em situações concretas que lhe dão sentido; o conhecimento não se transmite, im­põe-se como uma necessidade para explicar o que vemos, compreender o que sentimos e dominar o que nos dizem.

Claro que sabes tudo isto perfeitamente e o que di­zemos aqui deve parecer-te trivial. O que real-mente te perguntas é por que razão te interrogamos sobre a escola e os debates que a abalaram no final do sé­culo XX. É que há uma multidão inumerável de alu­nos, do jardim de infância ao ensino secundário, que poderíamos ter abordado sobre os efeitos da escola, na sua personalidade, no seu destino social, na sua visão da existência e da humanidade... Todos teriam sussurrado as suas esperanças de ver o mundo da es­cola tornar-se uma es­cola do mundo; ter-nos-iam confidenciado o seu desejo de um pro­fessor ideal que os ou­visse, os compreen­desse e os arrebatasse com o seu entusiasmo; teriam também confes­sado a dificuldade de se emanciparem do pro­fessor admirado, de passarem sem ele, de o traírem para lhe serem fiéis. A submissão, a dependência, o sofrimento, a renún­cia, o esforço, a vontade, o desejo, o interesse, a ale­gria, o tédio, a cólera, tudo isso teria, sem dúvida, vindo à tona com a complexidade da aprendizagem.

E, no entanto, não é a eles, que tinham tanto a dizer sobre a escola, que nos dirigimos, mas a ti, que nunca lá estiveste.... É que, olha só, tu és a figura emblemá­tica da mais célebre das utopias educativas. E, numa altura em que a pedagogia é vista por alguns como o último perigo, uma ameaça para a cultura e até para a unidade da nação, sentimos que eras o mais indi­cado para nos ajudar a pensar. Há quase duzentos e cinquenta anos que andas a reflectir sobre isto, e é óbvio que tiveste muito tempo para pesar os prós e os contras.

É por isso que nos dirigimos a ti e não a Jean-Jacques. Jean-Jacques, nós conhecemos; temos todos os co­mentadores de que precisamos; todos os anos nos trazem a sua quota-parte de exegeses, cada um mais erudito do que o anterior. Mas tu és a voz muda neste caso. E nós, que falamos muito, estamos mais interessados nos mudos. É contigo que gostaríamos de perceber uma série de coisas. Porque todos os grandes princípios que hoje estão a ser contestados foram experimentados por ti ao longo dos anos. Sen­tes a pressão todos os dias, e até as mais pe­quenas consequências na tua cabeça e no teu corpo. Consi­deraste todas as objecções. Porque ninguém, mais do que tu, foi mergulhado numa situação edu­cativa simultaneamente radical e coerente.

É por isso que gostaríamos que nos ajudasses a en­contrar o caminho, através do emaranhado de dis­cursos sobre a educação, no final do século XX. Gos­taríamos que nos ajudasses a colocar as coisas em perspectiva, a seguir os truques totalitários e mistifi­cadores dos pedagogos, mas também a salvar o que, nas suas propostas, permanece «incontornável», como se diz nas gazetas de hoje. Gostaríamos de ser impiedosos com todas as tentações simplificadoras e demagógicas, não tanto em nome de um rigor inte­lectual que cada um julga possuir sozinho, mas por­que te amamos e aos teus semelhantes o suficiente para não corrermos o risco de te prejudicar. Sejamos claros: o nosso plano não é poupar-te a todos os pro­blemas e sofrimentos, var­rer o chão diante de ti como faziam os reis e os pa­pas, mas queremos que nos ajudes a distinguir o que te engrandece do que te diminui, o que te torna um ser capaz de humani­dade do que te condena à de­pendência ou à violên­cia. Como podes ver, esta é uma tarefa difícil. Mas tu vais ajudar-nos.

Quando os políticos e aqueles que os comentam, pais e avós, fabricantes de livros didácticos e fazedo­res de histórias, ligas de verdadeiros estudiosos e so­ciedades que se acreditam estudiosas, pensadores da Sobornne e da televisão… quando todos, na reali­dade dizem tudo e qualquer coisa sobre a Escola e a pedagogia, pode ser útil invocar aquele que, aos nos­sos olhos, conhece melhor o problema. Quando fa­la­mos de educação, esquecendo que falamos de pe­dras vivas, realmente precisamos de alguém que co­nheça as coisas por dentro, alguém que se tenha dado a separar o essencial do acessório, alguém que nos ajude a alinhar o pêndulo com as horas.

Emílio, volta depressa, eles enlouqueceram… sem ti é provável que nos arrisquemos a ficar loucos tam­bém

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Conhecimentos ou competências?

De cada vez que jogamos com um par de palavras de forma dicotómica, corremos o risco de simplifi­car consideravelmente as coisas, ou mesmo de as cari­ca­turar. Tentemos, contudo, definir rapida­mente estes dois ter­mos a partir do uso que lhes dou. Para mim, os conheci­mentos e as competên­cias são mediações educati­vas que permitem aos alunos, que as adquirem, es­ca­par, pelo menos par­cialmente, à violência das si­tuações físicas, psicoló­gicas e sociais que os envolvem. Umas e outras po­dem ser adquiridas de ma­neira superficial, amon­toa­das no curto prazo, para passar num exame, por exemplo; mas também po­dem ser inte­grados na di­nâmica intelectual de um sujeito e contribuir efec­tivamente para a sua eman­cipação. CONTINUAR A LER >>>

sábado, 7 de setembro de 2024

Dos conflitos que o digital provoca

Uma discussão sem fim à vista!
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Tratemos os ecrãs pelo que são: instrumentos cujo valor depende do seu (ab)uso. Então, nem proibição nem afastamento, mas controlo – palavra que deveria ser proclamada palavra de ordem –. Mas é mais fácil proibir. Até porque a proibição dispensa-nos do trabalho de pensar soluções, inclusive com as nossas crianças e jovens, que os ajudem a manter uma «relação» saudável com estes dispositivos. CONTINUAR A LER>>>

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

O crepúsculo da crítica

P
odemos, com razão, sentir-nos incomodados pelo facto de o termo “crítica” evocar vários significados diferentes. Está frequentemente ligado à existência de um perigo ou de uma ameaça: falamos de uma situação ou de circunstâncias críticas, de uma idade crítica ou de uma doença que atingiu uma fase crítica. Mas a crítica – neste caso o substantivo – é também a actividade que põe à prova uma realidade ou uma ideia: submete-a a um certo número de critérios para estabelecer a sua validade e os seus limites. É um processo de clarificação. “Crítica” e ‘crise’ têm a mesma origem semântica. O grego krinein significa tanto ordenar, peneirar, separar, distinguir como escolher, decidir. Numa “crise”, é preciso sair da situação crítica. Mesmo quando associada a uma crise, a crítica tem um valor positivo: não apenas como uma investigação ou exame para encontrar as causas (conhecido como diagnóstico), mas como algo que, paradoxalmente, decorre dela e conduz necessariamente a uma “saída da crise”, a um repensar do julgamento e, eventualmente, à consideração do novo. Uma crise só se torna catastrófica se lhe respondermos com ideias pré-fabricadas”, escreveu Hannah Arendt. Mais do que em qualquer outra circunstância, a crise exige a crítica. A crítica é também “decisiva”.



Neurociência cognitiva na sala de aula

Olivier Houdé

Ensinar é uma arte que deve basear-se em conhecimen­tos científicos actualizados. Ao fornecer informações so­bre as capacidades e os constrangimentos do “cérebro que aprende”, a psicologia experimental do desenvolvi­mento infantil e a neurociência cognitiva podem ajudar a explicar por que razão certas situações de aprendizagem são mais eficazes do que outras.

Em contrapartida, o mundo da educação, informado como está pela prática quotidiana – o estado actual da pe­dagogia – pode sugerir ideias originais para experimen­ta­ção. Desta forma, está a desenvolver-se um fluxo bidi­reccional do laboratório para a escola. Estas descobertas es­tão também a começar a ser ensinadas aos estudantes nos Institutos Nacionais Superiores do Ensino e da Educa­ção (Inspé) em França. Uma dinâmica semelhante está a ser estabelecida, da escola à universidade, na Bélgica, na Suíça e no Canadá (Masson e Borst, 2017), os países fran­cófonos abrangidos por este livro.

Esta atenção ao aluno e ao seu cérebro, em termos de expectativas, de limitações e de potencial de aprendiza­gem, inscreve-se no espírito dos pioneiros das novas pe­dagogias do século XX, como Maria Montessori em Itália, Célestin Freinet em França e Ovide Decroly na Bélgica (Houdé, 2018).

A loucura da neuroeducação é tal que é preciso acalmar as coisas desde o início. Foi o que fiz recentemente numa coluna da revista Cerveau & Psycho intitulada “L'école des cerveaux. Neuroeducação: magia ou ciência?" Refe­rindo-me ao livro best-seller de Céline Alvarez, Les Lois naturelles de l'enfant (Alvarez, 2016), recordei aos leito­res a necessidade de uma avaliação científica séria do im­pacto educativo “não laboratorial” de tais aplicações prá­ticas das ciências cognitivas e cerebrais nas escolas.

Se quisermos uma abordagem rigorosa, o método expe­rimental estrito deve ser aplicado aqui, na medida do pos­sível, nas ciências da educação ou da neuroeducação, tal como foi aplicado nas ciências médicas, desde Claude Ber­nard no século XI (actualmente, falamos de medicina ba­seada na evidência). Em primeiro lugar, deve haver um pré-teste, um pós-teste ime­diato e um pós-teste diferido, rigorosamente idênticos e, em segundo lugar, todo o pro­tocolo de ensino experimen­tal deve ser comparado com um grupo de controlo, em tudo idêntico. Este é o ABC da educação baseada em provas e em resultados de investiga­ção.

Com este objectivo em mente, o meu laboratório do CNRS, LaPsyDÉ, lançou uma grande experiência participa­tiva desde o início do ano lectivo de 2017 com o grupo Nathan e a sua plataforma digital Lea (L'école aujourd'hui), uma co­munidade educativa que já inclui mais de 80.000 pro­fes­sores de escolas de todo o mundo francófono.

Em 2011, o neuropsicólogo Xavier Seron escreveu um texto crítico sobre a neuropedagogia em relação ao seu domínio de especialização: a matemática (Seron, 2011). Nele, demonstra, de forma muito documentada, que a complexidade das interpretações cognitivas e comporta­mentais da activação cerebral, bem como as contradições entre os investigadores sobre essas mesmas interpreta­ções, continuam a tornar as transposições pedagógicas difíceis, ou mesmo arriscadas.

O psicólogo cognitivo Michel Fayol exprimiu reservas se­melhantes, sublinhando que a análise clássica do compor­tamento e do desempenho dos alunos, em acompanha­mento transversal (por grupo etário) e/ou longitudinal (as mesmas crianças ao longo dos tempos), é actualmente mais eficaz do que a abordagem, ainda demasiado hipo­tética, de olhar para o cérebro. Estas objecções estão re­sumidas, entre outras, num excelente Inquérito sobre a neuropedagogia da jornalista de ciências humanas Mar­tine Fournier (2016).

No entanto (e é o ponto de vista do professor que estou a tomar aqui), os professores, eles próprios dotados de um espírito crítico, que não tomam a (neuro)ciência pelo seu valor facial, que detectam contradições em relação à sua experiência no terreno (ou às suas leituras cruzadas), mas que estão ansiosos por formação, já têm um desejo legítimo de iluminar as suas práticas, de as melhorar, através de novos conhecimentos e teorias científicas (isto é, validadas, publicadas) sobre o cérebro dos alunos. Isto está intimamente ligado à análise tradicional do compor­tamento e do desempenho.

Nós, psicólogos e neurocientistas, temos portanto o de­ver de os esclarecer neste domínio (em conformidade com Ansari et al., 2012, e Sigman et al, 2014), reconhe­cendo (i) o grau de incerteza destes novos dados, (ii) a necessidade de uma avaliação científica dos métodos de ensino que deles se podem deduzir e, sobretudo, (iii) perspectivando-os com os conhecimentos e as teorias clássicas que já adquiriram (por vezes, neste caso, apoia­dos, qualificados ou, pelo contrário, invalidados), nomea­damente na psicologia do desenvolvimento infantil, da aprendizagem e da educação. Não se trata de reinventar ou revolucionar tudo, mas de completar o edifício histó­rico das ciências da educação, no sentido mais sólido do termo, ou seja, a neurociência actual.

Como Maurice Merleau-Ponty salientou no Collège de France em meados do século XX, trata-se de “ensinar a ciência em construção” (o lema desta prestigi­ada institui­ção). No início do século XXI, adoptemos a mesma abor­dagem das ciências cognitivas e do cérebro para os pro­fessores, desde o jardim de infância até à uni­versidade.

Contrariamente à “neurociência top-down”, ou seja, a neurociência imposta de cima para baixo por neurocien­tistas que não sabem fazer melhor, cada um dos autores deste livro, tal como eu, acredita numa neurociência edu­cativa baseada na investigação participativa (as aulas Cogni são um exemplo) e na partilha de conhecimentos (aqui as fichas técnicas, os conselhos práticos, os teste­munhos, etc.). Isto garante um empenhamento real e du­radouro dos professores através da investigação-acção e de um intercâmbio frutuoso entre o laboratório e a es­cola.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Neurociências e Pedagogia: Um diálogo de valores

A propósito do encontro de Philippe Meirieu com Grégoire Borst

A pedagogia e as neurociências podem realmente trabalhar em conjunto? Foi esta a questão debatida a 24 de janeiro pelo pedagogo Philippe Meirieu e pelo psicólogo neurocientista Grégoire Borst, a convite do CÉMÉA DA BÉLGICA, em associação com o OBSERVATOIRE DE LA RÉSILIENCE-BORIS CYRULNIK e o INSTITUT POUR LE DÉVELOPPEMENT DE L'ENFANCE ET DE LA FAMILLE (IDEF)

GRÉGOIRE BORST e PHILIPPE MEIRIEU partilham os mesmos valores. Assim que os dois oradores foram apresentados, JEAN-FRANÇOIS HOREMANS, o mestre de cerimónias da noite, sublinhou a sua convergência: "Os nossos dois convidados são humanistas". Desde o início das suas intervenções, ambos falaram da necessidade de atribuir aos professores a responsabilidade de decidir sobre o caminho a seguir. Os professores não são executores!

Para os dois protagonistas, o papel dos investigadores é claro: fornecer um corpus de conhecimentos científicos susceptíveis de esclarecer a complexidade de cada situação singular. Se era de esperar que PHILIPPE MEIRIEU salientasse que esta reflexão se baseia em valores, não esperávamos, necessariamente, que um neurocientista fosse tão insistente neste sentido.

A preocupação com os alunos e as famílias em dificuldade, a tomada de posição sobre a necessidade da heterogeneidade, a luta contra todos os determinismos, o respeito profundo pelos professores e pela profissão complexa que exercem (com particular atenção ao trabalho no jardin-de-infância), o respeito inquestionável pelos alunos e, mais amplamente, pelas crianças e adolescentes como sujeitos, a valorização dos alunos pelo investimento no seu do progresso e a rejeição do paradigma desmoralizador da comparação social, etc. GRÉGOIRE BORST não só enuncia estes valores, como também os relaciona, sistematicamente, com os trabalhos da psicologia cognitiva.

A IMPORTÂNCIA DA METACOGNIÇÃO

GRÉGOIRE BORST deu grande importância à metacognição. Do seu ponto de vista, não é acumulando mais horas de matemática (por exemplo), e cada vez mais precocemente, no percurso escolar de um aluno, que as escolas se tornarão mais "eficientes". Pelo contrário, isso tende a aumentar a ansiedade dos alunos mais desfavorecidos. Pelo contrário, é apoiando os processos metacognitivos, desde os primeiros anos do jardim-de-infância, integrando-os nas estratégias pedagógicas adequadas a cada um.

O investigador partilha connosco o essencial do trabalho do seu laboratório, apresentando os princípios e as funções da inibição: os alunos devem aprender a resistir aos automatismos do pensamento, reconhecendo as armadilhas das situações e das rotinas que temos tendência em activar se não tivermos cuidado.

PHILIPPE MEIRIEU, por seu lado, recordou um certo número de fundamentos da educação: não basta ensinar para que os alunos aprendam; cada situação pedagógica é única e o conhecimento científico só pode contribuir para isso (a inteligência das situações continua a ser uma "arte de fazer"); o princípio da educabilidade é o principal fundamento de qualquer adulto responsável pela educação; a superação das representações espontâneas exige a imposição de um adiamento do imediatismo e a autonomia intelectual educa-se através de estratégias diversificadas.

Em todos estes pontos, PHILIPPE MEIRIEU mostra que não existe qualquer barreira entre a pedagogia e as neurociências, mesmo que as duas abordagens possam levar à utilização de aspectos e conceitos diferentes.

HÁ NEUROCIÊNCIAS E NEUROCIÊNCIAS... 

PHILIPPE MEIRIEU destaca também as "diferentes sensibilidades". Assim, detém-se no conceito de desenvolvimento, caro a Jean Piaget. Teme  a abstenção pedagógica dos professores que esperam que o desenvolvimento faça o seu trabalho: "A pedagogia não é a arte do desenvolvimento pessoal, mas o trabalho da superação colectiva". Reitera também que não podemos reduzir um sujeito ao que observamos dele.

GRÉGOIRE BORST concorda, afirmando que o behaviorismo é uma armadilha em que podemos cair se não estivermos sempre conscientes dos seus riscos. Seguindo os passos de JEAN PIAGET, os investigadores do laboratório LaPsyDÉ (Laboratório de Psicologia do Desenvolvimento da Criança e da Educação da Universidade de Paris), de que este investigador faz parte, puderam demonstrar os importantes contributos, mas também os limites, da obra do famoso pai da epistemologia genética.

Os investigadores do seu laboratório ajudaram-nos a compreender como a concepção linear do desenvolvimento da inteligência, em etapas que se sucedem numa ordem imutável (segundo o "modelo da escada"), é uma teoria muito discutível. Em apoio a este trabalho, salientam até que ponto os erros de raciocínio podem ser tidos em conta, desde muito cedo, e que as grandes diferenças interindividuais se explicam pela capacidade, maior ou menor, de inibir os nossos automatismos e resistir às nossas rotinas.

PHILIPPE MEIRIEU prossegue nestas reservas com uma observação que pode ser resumida no facto de que "em educação, a solução não está contida no problema como a noz na sua casca, ela é o fruto da inventividade dos professores. [...] Embora, por vezes, existam remediações oportunas, as soluções pedagógicas procuram-se, inventam-se e (re)descobrem-se no património pedagógico, entre outros lugares".

A IMPORTÂNCIA DA CULTURA

Por fim, menciona os objectos culturais, fazendo referência a JEROME BRUNER, para quem a cultura dá forma ao espírito . Os conteúdos culturais não devem ser esquecidos em favor de mecanismos puramente cognitivos. Parece-me – depois de ter escutado GRÉGOIRE BORST – que esta "seta" tinha como alvo outros neurocientistas, menos preocupados com o lugar fundamental da cultura no percurso do aluno. 

Na parte final da sua intervenção, PHILIPPE MEIRIEU dirigia-se, sem dúvida, aos mesmos destinatários quando concluiu com uma preocupação: a imposição da "escola eficaz". Este paradigma utiliza os inquéritos internacionais e os seus resultados como instrumento de medida, de que reconhece o interesse algures, mas volta a chamar a atenção para a tendência destes de limitar a aprendizagem ao que pode ser observado.

Para ele, este é um sinal do comportamentalismo em que "alguns colegas estão a tropeçar". Esta visão do ser humano", diz PHILIPPE MEIRIEU, "ignora o projecto de cada um, a mobilização das pessoas através de intenções". A sua preocupação prende-se, portanto, com a deriva tecnicista, impulsionada por uma investigação centrada no que é estritamente quantificável e observável, "ignorando assim a intencionalidade em favor do comportamento".

O autor salienta igualmente as importantes diferenças que estabelece entre motivação e mobilização, sendo a primeira considerada, demasiadas vezes, como um pré-requisito da actividade e a segunda como aquilo que se pretende alcançar através desta.

UMA DISCUSSÃO EM VEZ DE UM DEBATE

GRÉGOIRE BORST esclareceu-nos sobre as funções que atribui aos instrumentos de medida, denunciando os testes institucionais (nomeadamente os nacionais), cujos resultados fornecem poucas informações úteis aos professores, uma vez que já são observáveis no quotidiano da sala de aula. Outras dimensões, como o bem-estar, a metacognição e a inibição (pensar contra si próprio), poderiam permitir prever a resiliência de um certo número de alunos e seriam úteis para os professores.

PHILIPPE MEIRIEU concluiu com uma das suas máximas: "é preciso medir com medida", e sugeriu três precauções a este respeito: não esquecer aquilo a que chama a “Jurisprudência de Binet” : os testes da escala métrica da inteligência só fazem sentido quando são bem sucedidos; é necessário distinguir e articular critérios e indicadores para fundamentar as nossas escolhas; e evitar utilizar a medição como um instrumento sistemático de comparação e de competição.

GRÉGOIRE BORST concordou, dando exemplos de práticas escolares que valorizam a comparação social, por vezes sem o conhecimento dos professores que as criaram. Alargou a questão da avaliação, insistindo sobre a variabilidade das capacidades de cada indivíduo (nomeadamente entre os 4 e os 11 anos), e o período da adolescência, que ainda anuncia mudanças profundas devido ao que chamou "uma reconfiguração completa do cérebro".

Por outras palavras, do ponto de vista cognitivo, nada é completamente certo. Estas posições não podem deixar de encantar o homem que fez do princípio da educabilidade uma das suas maiores batalhas.

Em certos aspectos, GRÉGOIRE BORST traz a sensibilidade de uma nova vaga de neurocientistas, como ALBERT MOUKHEIBER ou SAMAH KARAKI, que aceitam o seu compromisso com os valores. Isto não significa que tenham perdido o seu rigor científico. A visão cautelosa de GRÉGOIRE BORST sobre a capacidade das neurociências para transformar a educação é um lembrete bem-vindo da necessidade de trabalhar ao lado daqueles que se vêem, todos os dias, contra a parede.

Grégory Delboé


segunda-feira, 22 de julho de 2024

Que estratégias pedagógicas para um mundo-projecto? *

Versão portuguesa de Daniel Lousada

Como podemos iniciar uma verdadeira prática de Educação Ambiental, que traga o mundo às nossas vidas, traga os outros à vida no mundo e permita que o mundo seja um lugar de projectos e não apenas um mero objecto? Cinco princípios, simples, parecem-me ser o caminho a seguir: são retirados da grande tradição dos “pedagogos históricos” que tanto têm para nos ensinar, de Pestalozzi a Korczak, de Ferrer a Makarenko, de Freinet a Oury, de Maria Montessori a Germaine Tortel, de Cousinet a Paulo Freire e muitos outros...

  1. Fazer tudo sem fazer nada": era o lema de Rousseau. Os pedagogos chamam-lhe “organizar o ambiente”. “Não nos ocupamos das pessoas, ocupamo-nos do ambiente, dos dispositivos, estruturamos o espaço e o tempo”, diz Makarenko. A nossa reflexão, neste domínio, continua a ser insuficiente, e os professores são demasiado idealistas: fixados nos conteúdos, indiferentes às condições em que estes são transmitidos. A este respeito, podemos, legitimamente, ficar chocados com a falta de trabalho sobre a organização do próprio ambiente escolar, incluindo, por vezes, por aqueles que afirmam ensinar educação ambiental. O próprio ambiente escolar é, demasiadas vezes, abandonado. Não falamos da reflexão sobre a arquitectura escolar, que está ainda a dar os primeiros passos. Nem sequer mencionemos o facto de que, por exemplo, as autoridades locais, responsáveis pela construção das escolas, não disporem de um caderno de encargos nacional, que imponha um mínimo de exigências pedagógicas. Sem esquecer o facto de que, em muitos casos, qualquer educação ambiental será imediata e totalmente contrariada pelo próprio ambiente escolar, que viola as regras estabelecidas. As crianças não salvarão o planeta se não as colocarmos num ambiente escolar onde possam compreender a interacção entre o homem e o ambiente, experimentar a ligação entre o privado e o público e ter espaços onde possam aprender não a “desfrutar” da natureza, mas a viver com ela.
  2. Trabalhar com: este é um segundo princípio pedagógico essencial. Trabalhar com as crianças tal como elas são, e não como gostaríamos que fossem. Claro que preferíamos que elas estivessem já educadas, mas elas não estão educadas – isso é connosco! E temos de “lidar” com crianças concretas, crianças que têm uma história, um passado, condicionamentos e problemas, que estão muitas vezes marcadas pela vida. Temos de “ir em frente”, não nos resignarmos, mas pegar nelas onde estão e acompanhá-las, trabalhar com elas para as levar mais longe. Édouard Claparède definiu como lema da Maison des Petits que fundou em Genebra: “A escola onde as crianças não fazem o que querem, mas querem o que fazem”. Não se trata, portanto, de abandonar as exigências da educação, bem pelo contrário, mas de fazer com que os educadores tomem as crianças onde elas se encontram, para as ajudar a progredir. As crianças estão num “mundo-objecto”... cabe-nos a nós, na sala de aula, criar situações educativas que lhes permita experimentar um “mundo-projeto”.
  3. Fazer “como se” para fazer de facto: fazer “como se” as crianças fossem capazes quando ainda não o são... Esta é a grande dificuldade que confronta todo o educador. Uma criança não é, por definição, um ser livre e responsável; mas o papel do educador é antecipar razoavelmente o futuro, para o fazer acontecer. Antecipar o suficiente, para que a criança perceba o desafio e o supere. Não antecipar demasiado, para além do que é possível, para evitar o desânimo. Desta forma, ao trabalharmos em conjunto, para lançar desafios, que permitam às crianças superarem-se a si próprias e avançarem, estaremos, gradualmente, a permitir-lhes fazer o que não sabiam e não conseguiam fazer. É uma bela alternativa ao comportamentalismo, desde que mantenhamos a preocupação de permitir o aparecimento de comportamentos responsáveis, de respeito pelos outros e pelo meio ambiente, mas recusando, como método educativo, o adestramento.
  4. Fazer coisas aqui para aprender a fazer coisas noutro lugar: esta é a questão central da “transferência”. A educação ambiental coloca, claramente, a questão da transferência. De facto, as limitações do modelo behaviorista residem, precisamente, no facto de ignorar a questão da transferência. Porque o que eu aprendo a fazer mecanicamente aqui, se não o compreender, se não o souber projectar noutro contexto, só o poderei fazer aqui, exactamente nas mesmas condições, e logo que o professor vire as costas, logo que o tempo de escola acabe, tudo o que aprendi será totalmente inútil. A educação ambiental deve, portanto, interessar-se particularmente pela transferência, e ter os meios para o fazer, porque trabalha precisamente sobre os contextos; e a transferência é precisamente uma “métrica dos contextos”: variamos os limites, aproximamos e afastamos as fronteiras do mundo, para nos compreendermos, progressivamente, no mundo. A educação ambiental consiste em ensinar os alunos a situarem-se num determinado espaço e num determinado tempo, começando pela própria sala de aula, pelo bairro, pela cidade, por uma zona rural, e depois alargar progressivamente as suas observações, regressando regularmente ao ponto de partida, verificando a coerência do “sistema”, antes de avançar em mais explorações.
  5. Trabalhar em conjunto: a cooperação escolar é, na minha opinião, um princípio fundamental da educação ambiental. Para mim, não pode haver uma verdadeira educação ambiental sem a aplicação persistente de uma abordagem pedagógica cooperativa, sem aprender a trabalhar em conjunto, em que o sucesso não se faz em detrimento dos outros, mas com eles. Onde aprendemos com eles enquanto eles aprendem connosco. Onde descobrimos o prazer de aprender juntos. Porque o conhecimento não é um bem de consumo. No mundo comercial, quanto mais se tira de algo, menos sobra; quanto mais se dá, menos se tem. No domínio do conhecimento, é o contrário: quanto mais se dá, mais se domina o próprio conhecimento, mais se partilha e mais rico se fica! Uma bela prefiguração do que poderia ser um mundo onde o desenvolvimento se baseia na solidariedade, que beneficia todos! Temos de aprender, com os nossos alunos, que a informação partilhada é uma informação enriquecida, mesmo que isso signifique que já não posso exercer o poder sozinho. E sobre este plano todos nós temos muito a progredir nas nossas instituições mútuas. A informação é, demasiadas vezes, entendida como uma oportunidade para exercer poder. É verdade que quem partilha a informação renuncia a algumas das suas prerrogativas. Mas, de um ponto de vista pedagógico, quem sabe partilhar informação, na realidade, sabe também multiplicar o que diz e o que faz; deste modo, entra na lógica da verdadeira cooperação, a do desenvolvimento solidário.

Conclusão

Em suma, a educação ambiental não é, evidentemente, uma disciplina marginal ou uma matéria suplementar, que se possa acrescentar aos programas escolares, acrescentando uma hora aqui ou outra ali. A educação ambiental, tal como tentei apresentar-vos, é uma educação para a responsabilidade e para a cidadania planetária e, como tal, é o próprio exercício, no domínio educativo, desse “princípio de responsabilidade”, em relação ao futuro, que o filósofo Hans Jonas transformou na pedra de toque da nossa moral colectiva.

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* in "Éduquer à l’environnement : pourquoi? Comment? Du monde-objet au monde-projet”, pp. 16-19. LER >>>

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Gostar de ler: privilegiar o papel sem diabolizar o pixel

Michel Desmurget acha que o prazer de ler não se dá bem com o pixel, que precisa do papel para se impor. É um prazer que se desenvolve mal com ebooks, mesmo que suportados por leitores digitais dedicados, como o kindle ou o kobo: entre o leitor e o texto não existe aquela relação com o livro-objecto, que se constrói através de um livro impresso em papel. Uma experiência que uma criança começa a adquirir, quando lhe oferecemos livros (de pano ou cartão), ou revistas que ela manuseia, como um “brinquedo” (e destrói em minutos), muito antes de saber o que é um livro, na convicção de que, quem desenvolve uma relação positiva com o livro-objecto, desenvolverá idêntica relação com o texto.

E, no entanto, gostar de livros, por estranho que pareça, não significa gostar de ler. Há quem goste de livros e não se sinta entusiasmado pela leitura: “Não sou leitora – disse a professora Isa, lembram-se? >>> – Nunca fui muito de ler livros. Mas sempre adorei tê-los.” Já quem não gosta de livros, com toda a certeza não gosta de ler. O que não quer dizer que não leia; lê, claro, por necessidade. E será que, quem gosta ler, gosta de ler em qualquer formato?

Os dados fornecidos pelo autor de "Cretinos digitais", apontam para a superioridade do papel sobre o pixel. E são tão esmagadores que não há como contrariá-los. Mas o meu ponto é outro. Não estou interessado no confronto pixel versus papel: procuro antes os contextos de uma coabitação possível. Até porque "o digital veio para ficar e ficou mesmo".

Pela parte que me toca, con­fesso, são mais os "livros" que compro, hoje, em suporte digital do que em papel  escrevi há tempos neste sítio >>> . Leio-os, nos dispositivos dedicados à sua lei­tura, com o mesmo prazer ou desprazer – que só de­pende do conte­údo –, excepto no ecrã de um pc. Claro que, dir-me-ão, sentes o mesmo prazer a ler ebooks, porque passaste pelo livro em papel, antes de chegar a eles. Quer dizer, construíste uma relação com os livros, que trans­por­tas agora para o digital; ao lê-los, na tua cabeça está, de certa forma, um livro.

De facto, quando pego num leitor de ebooks, não sendo um livro que agarro, ainda assim é um objecto que carrega livros, que seguro nas mãos. Agarro-o com a intenção de ler um dos muitos “livros” que ele guarda. Procuro um livro para ler! E, ao encontrá-lo, é mesmo um livro que leio. O objecto está nas minhas mãos, percorro as suas páginas, como percorro as páginas em papel, numa experiência quase idêntica. Idêntica mas não igual, é certo. Efeito daquela representação que tenho do livro, que mantenho – porque a vivi –quando folheio as páginas digitais de um ebook? Certamente que sim. Daqui o imperativo de proporcionar às nossas crianças as experiências que farão com que ela, ao ler um ebook, sinta que tem nas suas mãos um livro. Como? Privilegiando o papel sem diabolizar o pixel! Porque se é certo, que a relação com o livro-objecto, só com o livro, mesmo, é possível desenvolver, não é menos certo, que posso partilhar com ela a leitura de um ebook. Conheço pais que o fazem com os seus filhos. Só não lhe passam o leitor para as mãos, sem supervisão, da mesma forma que lhe passam um livro. 

Distinguir os livros, que lemos com prazer, das fontes de informação, que se consultam por obrigação, é fundamental, neste processo. Nos primeiros, coloco a literatura – em todas as suas dimensões –, os ensaios, as obras de cultura, da história às artes, da filosofia às ciências... Nos segundos, coloco os jornais e revistas, os sítios da web,  o manual escolar – livro-repelente, que não é bem livro – aquela coisa a que recorremos, sem a expectativa de que algo nos surpreenda, e que, por isso mesmo, poderia muito bem ser digital.

Quando os estudos apresentados por Michel Desmurget dizem que a maioria dos leitores competentes "acham que o suporte em papel é preferível, nomeadamente, para leituras longas e exigentes, porque favorece a concentração", nada é dito sobre o aparelhos que suportam o texto, presentes no estudo, nem da experiência do leitor no uso de aparelhos dedicados à leitura  Eu li o livro de Michel Desmurget no kindle, e não me desconcentrei mais do que me teria desconcentrado se o tivesse lido em papel *–. Creio, aliás, que serão muito poucos a ter acesso a leitores dedicados à leitura de textos, demasiado caros, tendo em conta que só servem, exclusivamente, a leitura de livros digitais. 

Não desvalorizo as preocupações que o digital coloca. Mas recuso enveredar na histeria do "isto ou aquilo", num "ou" que exclui. Em pedagogia o "ou" é inclusivo. É isto ou aquilo, numa alternância que não exclui: isto agora, neste lugar, ou aquilo noutro tempo, no mesmo ou noutro espaço.

Claro que ficam preocupações a debater (que esperamos abordar em breve neste sítio). Mas essas passam ao lado da leitura e do prazer do texto, que nos obrigamos – porque devemos – a promover.

Ter na devida conta os dados que a ciência nos oferece, é fundamental. Mas com o cuidado de não correr a traduzi-los numa prática. Assim sem mais!... Até porque – repito – "o digital veio para ficar e ficou mesmo"


* O livro de Michel Desmurget, "Faite-les lire! Pour em finir avec le crétin digital", foi comprado em ebook, no inicio do ano, antes da edição portuguesa, publicada em Junho, com o título "Ponham-nos a ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais", da Contraponto. Quando o texto é escrito noutra língua que não a portuguesa (francês, inglês ou espanhol), prefiro a edição em ebook, quando existe. A disponibilidade dos tradutores digitais inteligentes, ajudam a resolver, rapidamente, as dúvidas de tradução localizadas, quando afectam a compreensão do todo.


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quarta-feira, 22 de maio de 2024

ESCOLA: Sobre a ideologia das boas práticas

Philippe Meirieu

Existe o desejo de reforçar o poder dos professores, na condição de que o seu comportamento seja rigoro­samente controlado. Daí, também, a tentação de desenvolver, sis­tematica­mente, a sua função, neutralizando, ao máximo, a pessoa.

Ora, é exactamente isso que a ideologia das “boas práticas” promove, suge­rindo que, finalmente, temos as receitas milagrosas de uma profissão que os humanos vêm tacteando há séculos. É também isso que os adeptos da Edu­cação Baseada em Evidências procuram alcançar, hoje em dia, em todo o mundo: apoiados em investigações nas áreas da psicologia cognitiva e das neurociências, ao experimentar, em laboratório, diferentes métodos de en­sino, registando e comparando dados de avaliações de todo o tipo, afirmam ser capazes de desenvolver protocolos com vocação universal, e querem prescrever, a todos os professores do ensino básico, as ferramentas que es­tes devem usar para ensinar os seus alunos a ler e contar, mas também para fixar a sua atenção, memorizar ou organizar-se.

Poder-se-ia pensar que, estas tentativas de padronização pedagógica, dizem apenas respeito ao 1º. Ciclo, e aos “conhecimentos fundamentais”, que são percebidos – erradamente – como simples e mecânicos. Mas elas vão para além disso: o que estamos agora a ver, não será o desenvolvimento, em alta veloci­dade, de uma infinidade de projectos, para disponibilizar a todos, graças à tecnologia digital, entre outras ajudas, plataformas com vídeos para, supos­tamente, facilitar todo o conhecimento possível, à distância?

Continuar a ler >>>

[Requer pedido de acesso ao livro - versão portuguesa não comercial]  

domingo, 5 de maio de 2024

Falemos de educação e bem comum, de avaliação, exigência e excelência.

Na educação, tal­vez mais do que em qualquer outro lugar, a soma dos interesses individuais não produz o bem comum.

O modelo de competição (assente na conquista de interesses individuais, a qualquer preço) está de tal forma difundido entre nós, que é difícil imaginar que a excelência e a perfeição possam estar ao alcance de todos.

Reservamos o acesso à excelência àqueles e àquelas que foram sujeitos a uma selecção draconiana e se impuseram acima dos outros, ou até mesmo contra os outros.

Receio que pensemos ser exigentes porque somos selectivos. Abandonamos a exigência para que o processo de selecção funcione.

Temos de ajudar as crianças a competir consigo mesmas para se ultrapassarem, e não com os outros para esmagá-los.

Falta à escola uma visão educativa alargada. A escola é a única institui­ção por onde passam todas as crianças. Como tal, não creio que seja possível isentá-la da sua função educativa. Porque a própria instrução, por mais pura que seja, é sempre realizada num quadro que transmite valores. Os exercícios escolares não são neutros.

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sábado, 13 de abril de 2024

Se ele não sabe porque é que explicas?

A propósito da uma história de Manuela Castro Neves

Não é possível explicar a quem não quer saber de explicações. E só não quer saber de explicações, quem se sente a léguas do assunto da explicação.

Explicar é fazer com que o outro entenda o que temos a dizer. Mas para que isto aconteça precisamos saber o que ele sabe do que queremos que saiba. E só chegamos a esse saber pela conversa. Uma conversa só possível, tantas vezes, se tivermos a capacidade de ler os sinais que ele nos passa: a perplexidade que vemos no seu olhar e nos interroga,  que pode ser o início do diálogo que leva à explicação; ou aquele desafio que nos diz que não está nem aí e nos "convida" a seguir outro caminho, algo idêntico ao relatado em “Matemática, só matemática", uma das trinta e quatro pequeníssimas histórias que a Manuela nos conta no seu livro "Caderno A4", e que reproduzimos abaixo [as restantes só podem ser lidas no livro], num enredo que nos convida a reflectir sobre o caminho das explicações que damos: negociação ou confronto.

A Manuela diz que não dá explicações, mas explica! Explica no diálogo que o outro aceita ter com ela. Só não traz a explicação à cabeça. SEGUIR PARA A LEITURA DA HISTÓRIA >>>

Daniel Lousada

segunda-feira, 1 de abril de 2024

A ESCOLA

Philippe Meirieu
Este texto é a introdução de Philippe Meirieu ao livro "L'école e son miroir", que escreveu com Jean-Bertrand Pontalis, em jeito de conversa [Éditions Jacob-Duvernet, 2011 - trad. D.L.]

De que falamos quando falamos de escola? Estamos realmente certos do que sabemos? Não será este um assunto no qual estamos demasiado envolvidos para pretender ser [cientificamente] objectivos? Isto porque a escola é, ao mesmo tempo, o lugar para onde íamos quando éramos criança e para onde mandamos os nossos filhos. A escola é a imagem amarelecida que recordamos com saudade e a última reportagem da tv sobre violência escolar. É para nós e para os nossos filhos o lugar da alegria de aprender e da angústia de não saber. São os olhos que brilham quando recebem uma boa nota e aquela pressão no estômago no dia do exame. A escola é também uma máquina imensa - a maior empresa portuguesa - e o quotidiano frequentemente muito distante das generosas declarações de intenções dos políticos. A escola é o bem comum da república, o lugar onde se cruzam histórias singulares e imprevisíveis. É objecto tanto das nossas raivas e esperanças colectivas como o depósito das nossas ambições familiares.

Há sempre duas escolas. E se temos tanta dificuldade em falar delas no debate público é porque, quando alguém fala de uma, respondemos sempre a falar da outra: a quem se refere à escola da sua saudade, responde aquele que sublinha a novidade radical da situação actual; ao pai que afirma que a escola não pode ignorá-lo, responde o professor que teme a usurpação das suas prerrogativas; ao defensor da cultura humanista desinteressada, responde o contribuinte que exige uma boa gestão dos fundos públicos e o "controlo dos resultados". Não há escola sem o seu espelho: simultaneamente o mesmo e o seu oposto; de frente e de costas; da direita para a esquerda; da esquerda para a direita... Sem limites no espelho, a escola forja o seu reflexo, o seu duplo.

É preciso, portanto, sair deste efeito de "mise en abyme"[*] - patético ou irrisório, depende - para reinscrever a escola no nosso "mundo comum". Um empreendimento árduo, sem dúvida, tal a dificuldade em escapar de oposições caricaturais. Mas empreendimento de salvação pública, humilde e persistente.

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[*] Mise en abyme é um termo francês que costuma ser traduzido como "narrativa em abismo", usado pela primeira vez por André Gide ao falar sobre as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si. É uma técnica que consiste em inserir uma obra dentro de si mesma, criando um efeito de reflexão infinita. Essa técnica é frequentemente utilizada na literatura, nas artes visuais e no cinema para explorar a noção de representação e autoreferência.

quinta-feira, 14 de março de 2024

João Costa: um ministro da educação que confundiu persistência com teimosia. E agora?

Não sou muito de ilusões ou desilusões. Mas confesso que João Costa, com as expectativas que criou, na imagem conciliadora que deu de si enquanto secretário de estado, no tempo da pandemia, acabou por se revelar uma grande desilusão, não pela "promessa" de renovação pedagógica que trouxe, mas pela caminho que usou na sua concretização, que deu no que deu! Daqui esta irritação estranha, que suplanta a irritação que senti, relativamente a outros ministros da educação que o antecederam e que, sem grandes expectativas e sem ilusões da minha parte, não tinham como desiludir-me.

João Costa por ex­cesso de voluntarismo, talvez, ou na ânsia de atingir rapi­damente os fins a que se propôs, e incapaz de negociar com os professores, consegue o feito "notável” de aprofundar a interpre­tação da peda­gogia como aplicação burocrática de protocolos estan­dardizados. “Desconhecendo” (?) que, num sistema esco­lar ultra-burocratizado, os professores corre­m o risco de “sucumbir ao vírus da hierarquia burocrá­tica, de pais perdidos, ou de colegas re­ceosos” [1], arregimenta a má­quina burocrática do seu ministério e das di­recções dos agrupamentos de escolas, ao serviço do seu programa. Preferiu, assim, a lógica da sujeição à lógica da emancipação que caracteriza a política educa­tiva que queria promover, ao deixar engordar o monstro sufocante de registos de controlo [2]: terá pensado, talvez, que o diálogo com os professores poderia ser feito atra­vés de directores, exímios no controlo burocrático das práti­cas. Não deu conta (?) que, com esta escolha, afas­tava os pro­fessores do processo de renova­ção pedagó­gica e desacre­ditava, aos olhos destes, o que de melhor se produziu, na pedagogia, nos últimos cem anos [3]. Foi obra! Com professores sem tempo para falarem entre si sobre a sua prática pedagógica, mas apenas para reunir à volta da construção da “grelha”, que ajuda a administração a controlar o seu trabalho, só poderíamos chegar aqui: desgastados pela contaminação bu­rocrática das propostas, grande parte dos professores já não consegue, lamentavelmente, ouvir falar de pedagogia de projecto, de gestão flexível do currículo, de tra­balho cooperativo, de educação para a cidadania... etc., etc.[4]

Cheio de certezas, João Costa meteu-se ao caminho, sem cuidar de saber se caminhava acompanhado ou sozinho. Tivesse seguido a máxima “Há um destino mas nenhum caminho; aquilo a que chamamos caminho é a hesitação[5] ter-se-ia dedicado, quem sabe, a acompanhar as hesitações de quem vive o dia a dia da sala de aula, e a “criar as condi­ções para a partilha de experiências”, no pressuposto de que “as dinâmicas de inovação devem ser construídas por adesão voluntária dos professores no exercício da sua au­tonomia e liberdade” [6]. Mas, infeliz­mente, insistiu e insiste ainda em dar de si a imagem de quem con­funde persis­tência com teimosia. Só mesmo por teimosia, alguém prestes a passar a pasta ao senhor que se segue, é capaz de insistir na realização de exames e provas de aferição em plataformas digitais [7]!

A partir de certo ponto – dizia Kafka – já não há regresso. Há que atingir este ponto[8]. João Costa não atingiu ponto algum. Pior, conseguiu, talvez, atingir o ponto que ne­nhum ministro quereria atingir: o ponto de ruptura [9]. Conseguiu colocar contra si a maior parte daqueles que o acompanhavam nos fins que elegeu e, pasme-se, não conseguiu dar por isso! "Se as políticas de educação não servem para abrir novas possibilidades de futuro, então para que servem?", interrogava-se António Nóvoa. Que desperdício: desbaratar o apoio de tantos, que o seguiam nos fins que elegeu!

Aqui chegados e com um novo governo à porta, pouco se sabe sobre o que se projecta para a educação. As grandes questões passaram ao lado da campanha eleitoral e os programas dos partidos adiantam pouco. Retenho, no en­tanto, uma medida que consta no programa da A.D.: a fu­são do 1º e 2º Ciclos, num único ciclo de ensino [10]. Não sei o que farão com ela: se fará apenas parte de um conjunto de medidas que visa, a curto/médio prazo, combater a falta de professores, e recuar em tudo mais que o actual ministro não conseguiu levar a bom porto, ou se vem tam­bém para integrar uma ideia de re­no­vação pedagógica [11], mantendo uma ou outra “bandeira”, de João Costa: aquela, por exemplo, da gestão fle­xí­vel do currí­culo, mais amiga de uma escola inclusiva, que promove a ligação entre saberes. Não sei. Mas olhando o perfil dos ministros de educação do PSD que o antecederam, sem querer fazer futurologia, o mais certo é um tremendo retrocesso relativamente aos fins que João Costa definiu. Sem ilusões, espero para ver.

Nota sobre o perfil de um futuro ministro da educação.

É interessante observar os exercícios que se fazem por aí, na tentativa de adivinhar o nome de quem poderá vir a ser o futuro ministro da educação. Para além do regresso de Nuno Crato, de fraca memória, Alexandre Homem de Cristo é nome de quem se fala. Não sei se será o nome do futuro ministro, mas a divulgação do seu nome é já um sinal, uma forma de condicionar, talvez, a escolha de um perfil. Acho que não seria descabido revisitar as crónicas que escreve no Ob­servador, para ficarmos com uma ideia do que poderá vir por aí.

Daniel Lousada

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[1] Nicolas Go, in Freinet: l’arternative. Principes et orientations. Chroni­que sociale, Lyon, 2022, p. 61.

[2] Tudo ou quase tudo que emana do ministério da educação chega à escola e é transformado numa sigla, e a expressão que esta codifica passa a ser outra coisa: pedido de resposta, num formulário, a uma pergunta que o professor não fez, não teve necessidade de fazer, que não decorre do seu trabalho, e ajuda muito pouco a reflectir sobre ele. Ver >>>

[3] “Os processos de transformação e de metamorfose da escola não se constroem a partir de novas leis, reformas tecnológicas, mas com a cri­ação de condições para partilhar experiências, com liberdade e apoio dos poderes públicos (Nóvoa, 2023).
[4] Para o clima vivido nas escolas, não concorreu apenas a contagem do tempo de serviço para efeito de progressão na carreira. Acho que o entendimento do ministro sobre o significado de “adesão voluntária” contribuiu e muito para a insatisfação dos professores. Veja-se a título de exemplo o projecto MAIA: os directores dos agrupamentos de es­co­las dizem ámen e o que era facultativo virava logo obrigatório.
[5] Franz Kafka, Aforismos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008: p. 31.
[6]António Nóvoa, jornal Público, 6 de Janeiro de 2023.
[7]Poderia manter, talvez, neste formato, as provas na área das Tecno­logias de Informação e comunicação, cumprindo parte da sua agenda, nesta matéria.
[8] Franz Kafka, idem, p. 50.
[9] Imaginando o “Jogo da Glória”, João Costa quis levar a educação até céu e, no percurso, em grande parte feito de muita teimosia, caiu na casa do inferno. Agora, o mais certo é o regresso à casa de partida.
[10] Até nisto o ainda ministro conseguiu desbaratar a mai­oria absoluta de que dispunha, não se lembrando (!) de iniciar a reestruturação dos ciclos de ensino básico, há muito pensada mas nunca iniciada por incapaci­dade em afrontar o poder corporativo liderado pelos sindicatos, com receio de que tal resultasse na redução de turmas e consequente ex­cesso de professores – algo que já se sabia ser o contrário.
[11] Afinal, a principal motivação que está na sua origem, quando surgiu ainda no século passado
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