É sabido que um ponto de vista ‒ entendido na perspectiva de Leonardo Boff como a “vista a partir de um ponto” ‒ influencia a percepção da coisa observada. Serve isto para esclarecer que, ao escrever este texto, faço-o do alto do conforto, que é o ponto de vista onde me encontro: de “reformado de profissão”, pertencente a uma geração de professores que não se viu encalhada num qualquer escalão de vencimento, por força de «um modelo de avaliação injusto, incompetente e pouco transparente» ‒ para usar as palavras de José Morgado ‒ e que, apesar de estar profundamente desacreditado por todos os agentes envolvidos, nenhum governo ousa tocar. Talvez porque o que está em causa não seja a avaliação, de facto, mas o orçamento. Coisa do ministro das finanças, portanto ‒ porventura, a par do sistema de colocação de professores em lugares de quadro de nomeação definitiva (embora com menos implicações orçamentais), de resolução impossível pelo ministério da educação, sem o aval das finanças. Daqui considerar excessivo exigir, nesta matéria, a demissão do ministro.
Mas se, em reivindicações que afectam o orçamento, a margem de manobra de João Costa para negociar autonomamente com os professores é reduzida, o mesmo não se pode dizer de todos os outros aspectos que afectam a vida dos professores. E aqui, ao ler o artigo de opinião «Da Transformação na Escola Pública», ficou-me a sensação de que o sr. ministro (talvez porque não lhe cheguem informações dos efeitos secundários de algumas das suas realizações) passou ao lado do que mais inferniza o dia-a-dia dos professores. É outro o ponto de vista em que se encontra e outra, necessariamente, a sua percepção.
Se há coisa que aprendi com as medidas decretadas pelos sucessivos governos, que visam a melhoria da qualidade do trabalho das escolas, por mais bondosas que estas possam ser (e algumas, promovidas por este ministro, têm-no sido, de facto), é que não se têm avaliado os efeitos secundários, que decorrem da sua aplicação, com a atenção que merecem. Entre o ministério da educação e a sala-de-aula, algo se desvia do caminho, que faz outra coisa da coisa projectada. Falo da sala-de-aula e não da escola, propositadamente, servindo-me do desabafo de Philippe Meirieu, que afirma que «na escola tudo muda, mas na sala-de-aula tudo permanece igual» [1]. Por cá, muita coisa tem mudado, de facto, só que através de medidas fortemente contaminadas por processos burocráticos, que desrespeitam por completo o ideal pedagógico que é suposto promover. E, no entanto, só conseguimos responsabilizar o ministro por aqueles excessos, apesar de sabermos todos (só que o dizemos apenas para o lado), que a maior parte do trabalho burocrático, daquele que dói mais, é produzido nas escolas, impulsionado por pequenos poderes que gravitam nas direcções dos agrupamentos. A título de exemplo, veja-se: «Burocracia: há falta de sentido crítico nas escolas».
Ao "ouvir" João Costa, no que escreve, dizer que o artigo de opinião de António Nóvoa «engrandece um dos sistemas educativos mais centralizados da Europa», confirmo a ideia de que a percepção de quem fala do que fez dificilmente, ou mesmo nunca, é a mesma de quem observa a coisa feita (percepção do condutor que não se vê em contramão, da história contada por José Morgado?) e, por maioria de razões, a de quem sente os seus efeitos. O Sr. Ministro parece não querer perceber que, em despachos e decretos, há apenas uma mão-cheia de coisas, que depois é preciso fazer acontecer. Acho que foi isto que António Nóvoa viu: «uma mão-cheia de coisas à espera de acontecer», verdadeiramente.[2]
«Um erro frequente está em acreditar que a realidade obedece aos desejos» ‒ diz Gimeno Sacristán, qual pensamento mágico, acrescento eu [3] ‒ «(...) acreditar que se muda a forma de ser profissional do ensino com palavras de ordem (no caso presente: projectos de inovação pedagógica, flexibilidade curricular, cidadania, educação inclusiva, avaliação formativa e qualitativa, auto-avaliação, etc) sem mudar as condições de trabalho, as culturas das escolas, as expectativas sociais, é ficção». Faz-se da “autonomia” palavra de ordem e ela chega às escolas para permitir que as suas direcções possam juntar professores dos 2º e 3º ciclos e secundário, em reuniões intermináveis, na construção de projectos interdisciplinares feitos a martelo, enquanto se obriga os professores do 1º ciclo, que gerem um currículo naturalmente interdisciplinar, a parti-lo às fatias [Ver] ou a reunirem para decidir quantas letras as turmas do 1º ano terão de dar até ao Natal, como se todas fossem iguais e todos marchássemos ao ritmo marcado por um qualquer manual escolar, feito programa; Convidam-se escolas a aderir livremente a projectos de inovação pedagógica, mas esquece-se que quem decide que este ou aquele projecto se vai realizar numa escola, inserida num sistema hiper-burocratizado, é o director. E, então, o que era de adesão voluntária, logo passa a obrigatória. Veja-se, a título de exemplo, o «Projecto MAIA».«(...) as dinâmicas de inovação devem ser construídas por adesão voluntária dos professores, no exercício da sua autonomia e liberdade (...)» ‒ diz António Nóvoa. Não vejo como esta adesão possa ser voluntária, num modelo de gestão hierarquizado e super-burocrático. Mude-se o modelo de gestão, substitua-se o director, recuperando a figura dos conselhos directivos, do tempo da gestão democrática das escolas e, quem sabe, os professores não se sintam impedidos de exercer livremente a sua autonomia, vendo-se como autores na profissão que escolheram. No caminho, quem sabe também, este modelo não venha a ser uma excelente lição de educação para a cidadania, para os nossos alunos (obviamente, na condição de se verem representados).
Talvez seja excessivo o tom e a forma usados por António Nóvoa, embora admita que o "cansaço" da ideia repetida, sem que dela resulte algo de novo, nos leve, por vezes, a dizer que a coisa feita não representa nada. É a memória de anos de cansaço que nos chega ao lugar (ponto de vista) onde nos encontramos, a reagir por nós. Porque «perguntar-se, a cada dia para que serve? é bem mais cansativo do que trabalhar duas horas a mais dominando o que se faz e sabendo que isso é útil e, ao mesmo tempo, reconhecido»[4].
Com este ambiente de revolta que se instalou, não sei se vale de muito pedir bom-senso, sobretudo se dirigido apenas a quem se sente tão cansado e é pelo cansaço aconselhado ‒ Até porque o cansaço não é bom conselheiro, e é difícil aceitar conselhos, neste estado. E, no entanto, é de bom-senso que, hoje mais do que nunca, mais precisamos. Será que se encontra à venda algum por aí?
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[1] Prefácio, in Bernard Rey [e outros], “As Competências na escola: aprendizagem e avaliação”, Canelas, Gaialivro, 2005.[3] Educação e Realidade, 1996,Vol. 21, nº1 [Ler >>>]