sábado, 8 de agosto de 2020

Competências: quem as define?

António Nunes
Quando nos invadem os ouvidos e os olhos com o conceito de competência [uma invasão que nos chega, invariavelmente, pela voz ou pela mão daqueles que não conseguem ter, sobre a educação-formação, mais do que um olhar de senso comum], até parece que estamos na presença de um assunto de simples resolução.

Contudo, os mais atentos sabem bem que não é assim. E que esta espécie de simplicidade [pequena traição que a ignorância, por vezes, nos prega], aliada à emergência da sua afetação a quase tudo aquilo que respeita às aprendizagens, coloca este tema como objeto de uma mais profunda reflexão e que deveria sujeitar todos aqueles que com ela trabalham, a um estudo sistemático e consistente desta "nova" (?) realidade, no trabalho pedagógico.

Pela sua estrutura, poderá parecer, aos olhos de alguns, que as mesmas se detetam num saber fazer e em operacionalizações mais ou menos rebuscadas. Nesta facilidade de análise, não se interroga se esse tipo de ação incorpora valores como a consciência, a justiça, a cultura, o humanismo, a solidariedade, etc. Este tipo de qualidades, embora muito faladas, não representam uma grande preocupação ao nível do seu desenvolvimento e desocultação, visto estas não interessarem muito aos “mercados”, nem tão pouco serem preocupações e, por isso, objeto de avaliação dos sistemas educativos, como o sistema educativo português.

O conceito de competência tem, ao longo do tempo, transportado consigo as marcas do mundo laboral e, com isso, construído uma semântica da qual com dificuldade se libertará. Isto porque, tradicionalmente, tem sido enquadrado num tipo de ações que se orientam para um desempenho qualificado num posto de trabalho. Competência era [ainda é, na cabeça de alguns] uma qualidade pessoal que se tinha ou se adquiria, que se mostrava ou se demonstrava, tendo por base uma “genética” marcadamente operativa, que respondia, em momentos determinados, a tarefas de diferentes exigências.

Esta dificuldade leva a que muitos [responsáveis pela educação e formação incluídos] subestimem, por incultura ou má-fé, a sua vertente de mutabilidade temporal e estrutural, bem como a sua harmonização com outros conceitos. Parecem não entender que se exige à figura de competência uma descolagem de um arquétipo tradicional de base simplista e se deve sugerir a sua adesão ao mundo da complexidade, propondo-se-lhe, por via disto, uma nova linguagem.

Torna-se então necessário um olhar moderno sobre as competências, para que ao procurar integrá-las no currículo escolar e formativo, estas possam ser aprendidas, mantidas e circunscritas por toda a vida e não, como tem acontecido até hoje, revividas num espaço de tempo curto, ao serviço exclusivo dos fetiches daqueles que não entendem muito, nem de competências, nem da avaliação das mesmas.

Lembramos, por fim, que quando fazemos alguma afirmação acerca de competências estamos, ao mesmo tempo, a desenhar e a definir politicamente o currículo que elegemos e, assim, a determinar o desenvolvimento e o futuro dos nossos pares.

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terça-feira, 4 de agosto de 2020

Pai, quando é que o freguês vem?

António Nunes

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Leio e releio partes de um livro intitulado “Pierre Guérin, sur les pas de Freinet”, isto porque, nestes últimos tempos, em que o sol aquece um pouco mais, o vento amansou, o tempo se mostra mais tranquilo e os dias, embora contando as mesmas horas, se tornam mais longos, tem-me apetecido dar um outro rumo a um livro por mim escrito e já publicado,* para torná-lo num outro, rejuvenescido no seu conteúdo e empurrado, se possível, para uma nova edição, “actualizada e aumentada”, como é uso dizer.

Lembrando Freinet, lembro-me sempre do João e da Mafalda, os meus dois filhos, ao mesmo tempo que me empurro muitos anos para trás, quando serpenteávamos juntos os Alpes Marítimos franceses, à descoberta dos espaços por onde aquele professor francês ensaiou a sua pedagogia: a escola de Le Bar-sur-Loup [a sua primeira escola], a de Saint Paul [onde é exonerado do serviço público] e depois a sua escola privada, também em Vence. São memórias que me levam a olhá-los na sua pequenez, ainda tão crianças, e recordar as brincadeiras que por vezes tínhamos.

Agora, tão distante desse tempo, parece que todos perdemos o prazer de brincar — Esta coisa de ser adulto é, muitas das vezes, uma chatice!

Apetecia-me brincar agora com eles... saltar por cima das mesas, correr à volta das cadeiras da esplanada onde escrevo, cairmos uns por cima dos outros, despejar-lhes até água por cima. E se o empregado resmungasse, paciência: chapinávamo-lo com Coca Cola, que é mais pegajosa e custa mais a limpar. Apetecia-me subir com eles para cima da escada frente a mim, e, empoleirados nela, pintarmos o céu com todas as cores do arco-íris, mais a cor do mar, a cor do pôr-do-sol, mesmo quando noite…, a cor da esperança, da alegria, da amizade, do amor…, a cor de alguns lábios, de alguns olhos…, ou de um sorriso até, daquelas crianças que nunca viram os pais sorrirem-lhes. Cada um pintava como queria, com pincéis de formas e tamanhos diferentes, com as mãos ou mesmo com a ponta do nariz — para isso, teríamos de contar mentiras, muitas mentiras como o Pinóquio, para facilitar a pintura—. Podíamos gastar a tinta que nos apetecesse gastar. Só não podíamos apagar o que decidíssemos pintar!, para aprendermos que, na vida, o que fazemos não pode ser mais apagado. Pode ser reorganizado..., modificado, … Apagado não!

Chegados a Vence, frente à escola privada de Freinet, o João, vendo-me tocar mais do que uma vez na campainha da porta, sem que alguém atendesse, pergunta-me:

— Pai, quando é que o freguês vem?

Ainda hoje nos rimos com ele, pouco importando as memórias que ele guarda deste episódio. E ele ri-se connosco. Para ele, Freinet ou freguês tanto dava... Para nós, pela sua afetividade, é uma troca que, vinda do passado, mantemos presente: faz parte de nós. Queremo-la, enquanto vivermos, inalterável. Não a queremos, jamais, apagada!

sexta-feira, 31 de julho de 2020

A urgência do regresso da pedagogia à escola... e ao imaginário do professor

António Nunes

(...) a cada reforma, mantém-se aquilo que os historiadores da educação e os pedagogos apelidam de "gramática da escola" (...), ancorada em regras, a maioria delas invisíveis (...), interligadas naquilo que, vulgarmente, se apresenta como tradição. Um facto que as faz, por si só, (...) resistentes à mudança ["a tradição tem muita força"]

terça-feira, 28 de julho de 2020

«Sou maior quando envelheço»

E por falar do tempo: a memória, a consciência, o sentimento de si... e outras "coisas menores" 

A propósito de um poema de Viviane Mosé

Neste poema vejo o tempo identificado com a própria vida, que se estende no passado de olhos postos no futuro. Um poema que, de certa forma, reflecte o conceito de consciência, com o qual se identifica o tempo.

De que modo cresce o passado que já não é mais? Interroga-se Sto. Agostinho. Cresce com a memória das coisas que vivi, diria eu ! se fosse chamado a responder. Para acrescentar, de seguida, que apenas com as coisas que faço, com a consciência das experiências que vivi [nas quais o aprender se inclui] sou capaz de crescer. Um crescimento que varia com o tempo dedicado às "coisas que mantêm todo o seu significado".

Diz o Principezinho [de Antoine de Saint-Exupéry] que «Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que fez a tua rosa tão importante». No fim é a importância das coisas que faço, que dá sentido ao tempo que lhes dedico, e me faz ser maior quando envelheço.
Daniel Lousada