quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Da necessidade do tempo estendido

A gravura com a imagem de Eugénio de Andrade
foi extraída do site da Livraria Bertrand
Este poema de EUGÉNIO de ANDRADE merece lugar de destaque em qualquer espaço, como convite à pausa. Por exemplo, numa sala de aula, quando o tema convida à reflexão, ou aquela proposta de escrita leva ao impulso de escrever sem parar, sem a pausa que permite observar se o escrito, antes de ser dado como pronto, corresponde à intenção que levou à sua escrita.

Convém então perguntar: Será que o que sentes, vês, ouves..., merece essas palavras? São essas as palavras capazes de mostrar tudo isso?

Em tudo na vida, como diria Jorge Carrión o que mais nos merece, dispensa-nos a pressa de chegar, pede-nos um tempo estendido: "o desejo não pode ser imediatamente saciado - diz Carrión -, porque então deixa de ser desejo, transformar-se em nada"*. Ou como escreveu Vergílio Ferreira, “o desejo alcançado não esgota o desejar”.**

Daniel Lousada

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* in "Contra a Amazon e outros ensaios sobre a humanidade dos livros".

** in “Pensar”

terça-feira, 10 de outubro de 2023

A Pedagogia e o Digital: ferramentas para decidir

1. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que a horizontalidade das trocas que promovem não exclua a procura da verdade.

2. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que o imediatismo que elas promovem não exclua  a exigência da pausa que permite a reflexão.

3. O uso das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que  a educação tenha como objectivo ajudar os alunos a ingressar no simbólico.

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É preciso fazer uma pergunta simples que, por si só, nos pode permitir identificar algumas chaves para a acção quo­tidiana, que ao mesmo tempo nos ajuda a focarmo-nos no que importa: em que condições o uso das tecnologias digi­tais nas escolas pode contribuir para o desenvolvimento do pensamento?

1. A utilização das tecnologias digitais pode contribuir para a emergência do pensamento, desde que o carácter hori­zontal das trocas que elas favorecem não exclua a procura da ver­dade. A tecnologia digital, através da Internet e de todos os instru­mentos de comunicação "em tempo real" que ela permite, modificou radicalmente o acesso à informação. Qualquer estudante, da escola primária à universidade, tem acesso instantâneo a um manancial de dados. A investiga­ção docu­mental, outrora confinada ao mundo abafado das bibliote­cas e dos centros de documentação, está agora à distância de um clique, a partir de qualquer lugar, sem re­quisitos es­peciais. Os motores de busca são consultados sis­tematica­mente e abrem uma quantidade fabulosa de docu­mentos de todos os tipos: textos digitalizados, fotografias e vídeos, textos de arquivo e peças noticiosas. Tudo isto dá a im­pres­são de que o conhecimento está a tornar-se acessível a to­dos, e que cada estudante está ao mesmo nível face ao acesso à “cultura”.

É claro que raciocinar assim é ignorar o paradoxo que está no cerne de todas as políticas culturais, já apontado por Bourdieu no seu estudo sobre os museus: o simples au­mento da oferta aumenta as desigualdades porque se apoia na procura daqueles que têm o capital simbólico, para de­se­jar apropriar-se dos bens culturais assim oferecidos. E tanto mais que, no caso da Internet, ignoramos também a natureza da "investigação" que aquela oferta permite.

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sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Digital e Modernização Educativa

A propósito de "Educação, reforma do ensino e fim dos livros em papel", publicado em >>>

A utilização do digital na sala de aula, não define, por si só, a modernidade dos processos de trabalho praticados, embora haja quem defenda que instrumentos mais evoluídos possam ser factor determinante na mudança para práticas de trabalho mais eficazes.

Não é pela fraca utilização do digital na sala de aula que Portugal tem, eventualmente, uma educação do século XIX, mas porque a organização do trabalho de aprendizagem dos alunos tem evoluído muito pouco desde então. Atualizando o que Freinet e Salengros escreveram em "Modernizar a Escola" (1960), um instrumento do século XIX também é do século XXI se responder aos seus desafios [*] O livro, só por ser digital, não melhora a qualidade da aprendizagem e do ensino, se não se ensinarem os alunos (e, já agora, os professores) a tirar partido de todas as suas potencialidades. Mais ainda, se não for garantida a qualidade do digital para todos os utilizadores, qualquer que seja o seu poder económico (coisa que a pandemia revelou não ser fácil de garantir), as desigualdades tendem a aprofundar-se. Enquanto não se garantir a qualidade do digital para todos, não se metam em "guerrinhas" com o livro em papel.

Já no que diz respeito aos instrumentos de escrita, enquanto estes não permitirem uma escrita à mão igual ou superior, NÃO SE METAM COM O PAPEL. Pelo menos com as crianças do ensino básico.

Daniel Lousada

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[*] Ler a propósito, "Inovação ou o jia visto pintado com outras cores?" >>>

terça-feira, 3 de outubro de 2023

O digital veio para ficar e ficou mesmo [ponto]

Algum dia, em nome da preservação do ambiente, ou de qualquer outra causa, que não vislumbro, num futuro que não sei como será, cenário de ficção científica, apocalíptico talvez, o livro em papel será objecto de museu!

Vem isto a propósito do debate sobre os usos e abusos da utilização dos instrumentos digitais na escola, que me traz o desconforto de estar na presença de um de­bate sem rumo e sem foco. Elege-se o smartphone como inimigo e, de re­pente, não é só este dispositivo que está em causa, mas to­dos os dispositivos electrónicos, como supor­te da in­forma­ção em geral, e do texto em particular. Somos o oito ou oi­tenta, vamos do endeusamento do digital à sua diaboliza­ção, com uma rapidez surpreendente (efeito de “Maria vai com as outras”, que nos dispensa da capacidade de pen­sar?).

Até há bem poucas semanas, quando se fa­lava dos perigos associados ao digital, não era o seu uso, em geral, que era posto em causa, mas o seu uso sem con­trolo. Agora, dizem-nos que “a simples proximidade de um telemóvel é capaz de distrair os estudantes (...), prejudicar a gestão da sala de aula (...) e pôr em risco a interacção humana”, como que a admitir que o trabalho na sala de aula (se de trabalho se pode falar, nestas condições) se desenrola em roda livre [1].

O que caracteriza a escola como espaço educativo, é o con­trolo do trabalho de aprendizagem que nele se realiza. Não se vai para a escola para usar os instrumentos de trabalho (digitais ou quaisquer outros), à vontade do fre­guês, sem critérios ou sem qualquer objectivo educativo no horizonte. En­tão, a questão está em saber em que condi­ções, e por quem, esse controlo é exer­cido. Aliás, como dizia António Nunes, no programa Antena Aberta, a propósito da entrada, na es­cola, das tecnologias de infor­mação e comu­nicação, “há momentos em que a voz é importante e as ca­netas estão paradas [2]. Ora, é precisamente ao professor que compete gerir estes momentos: decidir sobre os tempos em que os smartphones estão ligados ou desligados. Não acho, assim, pelo que se diz e escreve, que seja um problema que resulte da proximidade dos alunos com estes dispositivos, mas da dificuldade, ou mesmo da incapacidade, que grande parte dos professores sente, em gerir aqueles tempos. Conse­quência de uma autoridade (a sua), que a cada dia sentem que estão a perder e pensem que, desta forma, ela possa ser restau­rada? [3]

Se da presença dos smartphones, na sala de aula, se pode dizer que le­vanta, em muitos casos, problemas difíceis de gerir, já da substituição dos manuais escolares, em papel, pelos correspondentes digi­tais, não vejo que problemas possa trazer. Os ta­blets que suportam os manuais esco­lares permitem o acesso a conteúdos que não queremos que se­jam acessíveis aos nossos alunos? Fácil: bloqueie-se o seu acesso nesses dispo­sitivos; façamo-los dispositivos dedica­dos à leitura de manuais es­colares e de mais informação re­lacionada com eles.

Bastou a Sué­cia travar às quatro rodas, na digitalização dos ma­nuais escola­res para que, entre nós, se levantasse um coro de vozes a reivindicar idêntica decisão. Como se, o livro em papel, só consiga entrar na sala de aula através do ma­nual escolar... Esquece-se que, o que se passou na Suécia, foi o resultado de uma soma de excesso, que valeria a pena analisar, não vá começarmos nós, agora, a soma de outros excessos mas de sentido contrário [4].

Para mim e para outros como eu, que gostam de livros, o manual escolar é um “livro” que não é livro. É coisa da es­cola, um instrumento de trabalho que, sendo bem feito (seja qual for o seu formato), poderia ser ligação a outros livros, esses sim, a merecerem ser lidos ou consul­tados. Além do que, o livro digital (e-book) também é li­vro, e são cada vez mais as editoras que, a par da edição em pa­pel, apostam neste formato. Pela parte que me toca, con­fesso, são mais os livros que compro, hoje, neste formato do que em papel. Leio-os, nos dispositivos dedicados à sua lei­tura, com o mesmo prazer ou desprazer, de­pendendo do conte­údo, excepto no ecrã de um pc.

Claro que, dir-me-ão, “sentes o mesmo prazer a ler e-books, porque passaste pelo livro em papel antes de chegar a eles. Quer dizer, construíste uma relação com os livros, que trans­por­tas agora para o digital; ao lê-los, na tua cabeça está, de certa forma, um livro”. E é verdade, ou acho que é verdade: o desenvolvimento do gosto pela leitura de um livro faz-se também da relação (afectiva), que conseguimos estabelecer com o objecto que suporta o texto. Quem gosta de ler tam­bém gosta de livros. Quem gosta de livros também gosta de ler. Os miú­dos precisam de estar rodeados de livros para que possam relacionar-se com eles. Se não estão em casa, deveriam estar na escola, na sala de aula. 

O manual esco­lar digital só é concorrente do livro em papel se deixarmos que seja. Na Sué­cia, quiseram que o digital fosse con­cor­rente do analógico. E ele fez o que lhe compe­tia: deu cabo da concorrência! Porque deixa­ram que desse! Agora fazem marcha atrás, num processo em tudo seme­lhante, mas em sentido contrário, respei­tando, suposta­mente, as conclu­sões da "ciência". Temo que se esqueça que, em edu­cação, nem tudo (para não dizer nada) é científico; o que acontece, nesta área, tem em conta as ciências, certamente (da educação e outras), mas a sua aplicação não é científica, é pedagógica: uma acção inserida na busca do sentido do acto educativo, na sua relação com os instrumentos pedagógicos que melhor o servem [5]. Valeria a pena, certa­mente, trazer a voz dos pe­dagogos para o debate.

Estranho mundo, este em que vivemos. Valorizamos o digital nas nossas vidas, mas não sabemos (nem procuramos saber) o que fazer para ajudar as nossas crianças e jovens a usá-lo de uma forma saudável! Apetece dizer, com Philippe Meirieu, “Velho devaneio filosófico: reduzir o mundo àquilo que podemos pensar dele ou àquilo que per­cebemos dele. E, para ter a certeza de lá chegar, fazê-lo en­trar in­teiri­nho no nosso campo de visão...” [6].

Entretanto, chegam-me notícias que dão conta de escolas que proíbem os smartphones nos recreios, aparentemente com a adesão dos miúdos: “Foi quase como se tivesse auto­rização para brincar” [7].

O recreio é um daqueles espaços que, embora na escola, é um espaço, de certa forma, sem controlo. Não é sobre estes espaços que escrevo. É sobre o uso dos dispositivos digitais em espaços controlados, que me atrevo a pensar. E que só neles é possível aprender a usá-los de forma sau­dável. Por­que se não há um espaço onde as crianças possam apren­der, elas aprendem, de qualquer forma, em qualquer es­paço, correndo o risco de aprender mal: no recreio, por exemplo. Nestes espaços, não con­tro­lados, e só nestes, que, tantas vezes, nem vigiados são, admito que o uso destes dispositivos possa ser vedado, não sem antes procurar que a decisão seja vista como legítima, aos olhos de todos quantos serão afetados por ela.

E já agora, uma provocação, ou nem tanto: porque não vedar o uso do smartphone no espaço familiar, pelas mesmas razões com que se pretende proibir o seu uso na escola?

DISPONÍVEL em PDF >>>


[1] Onde o smartphone põe em risco a interacção humana, não é na sala de aula, onde é utilizado como instrumento de trabalho. O risco ocorre em espaços sociais não controlados, e em espaços familiares que os usa como “amas”.

[2] “Computadores na escola: quais os aspectos positivos e quais as des­vantagens”. Programa passado, em simultâneo, na TSF e na RTP2, em No­vembro de 2012.

[3] “O verdadeiro problema não é o declínio da autoridade, é o facto de se colocar em rivalidade as autoridades entre si no seio do próprio processo educativo (...). Aquilo que está verdadeiramente em causa não é restau­rar a autoridade mas de torná-la legítima aos olhos daqueles que estão sujeitos a ela, não só a fim de que a aceitem mas também de que a respeitem” (Philippe Meirieu, in O mundo não é um brinquedo, Porto, edições ASA, 2066: p. 28).

[4] O recuo da Suécia é algo mais complicado do que o simples processo de voltar atrás na digi­talização dos manuais escolares. Porque não é ape­nas a digitalização dos manuais que está em causa. Avançaram tão rapi­damente, e de um modo tão radical, neste proces­so de digitalização do ensino, que chegaram ao ponto de trocar não só o livro em papel pelo e-book, mas também de apostar na irradicação do papel, trocando-o pelo pixel, o que levou ao uso do teclado como instrumento privilegiado de escrita.

[5] "Viver é resolver problemas. É isso que é decisivo" - diria Karl Popper, se fosse chamado ao debate - "O mundo põe problemas à vida. Ao mesmo tempo a vida é o pressuposto do problema (...) e as teorias que colocamos ao mundo são tentativas de resolução de problemas". E não é pelo facto de ser retirado do espaço onde ele se manifesta que um problema deixa de ser problema.

[6] Philippe Meirieu, O mundo não é um brinquedo, Porto, Edições ASA, 2006: p.199.

[7] In Público on-line: 1 de Outubro, 2023.

"DESCAMISADOS"


Não vou fazer história nem contar estórias sobre a vida de Eva Duarte de Perón, mas… sim, lembrei-me dela e da sua relação com os “descamisados”, na sua Argentina, e dos movimentos por justiça social 

Justiça social é o que falta neste mundo que desrespeitamos todos os dias. Numa população de cerca de 8,04 de bilhões de pessoas, mais de 780 milhões vivem abaixo do limiar da pobreza e 11% da população total vive em pobreza extrema, sem conseguir satisfazer necessidades básicas de alimen­tação, saúde, acesso a água e saneamento. *

Não vou fazer análise sócio-política sobre os dados que acabo de expor e que se encontram ao al­cance de quem os quiser consultar. Basta olharmos à nossa volta: as filas para aceder a uma re­feição diária, aos sem abrigo que estão nas ruas, defendendo-se do frio e dos ataques, nas estações de metro ou em qualquer pardieiro à espera que um qualquer cigarro, mal apagado, os faça desapa­recer.

A miséria encapotada é mais que muita: filhos que continuam em casa dos pais apesar de trabalha­rem e desejarem a sua independência, novas famílias que não se formam, “velhas famílias” que se aguentam na mesma casa apesar de já não terem nada em comum, filhos que não sabemos amar e educar, depositando na escola o que devia ser feito em casa. Sofremos pelos pais, pelos filhos e netos que não temos por perto. Despovoaram-se aldeias, onde só ficaram os “velhos”, abandonados e tris­tes, sem o poder reivindicativo de sindicatos que os defenda, num mundo de cada um por si.

Depois, porque não estamos bem, olhamos de “soslaio” e desconfiança todos aqueles que nos pro­curam, fugindo das guerras, da fome, da violência, e que, em vez da segurança que procuram, são acolhidos por gente que se aproveita da sua fragilidade, para os explorar sem qualquer escrúpulo. Já fomos de tudo: emigrantes e imigrados, refugiados e estrangeiros. E, apesar disso, sem querer entrar na verdade da nossa história, fica-me a sensação de que não conseguimos evitar que o nosso passado colonizador contamine as nossas acções.

Não, não “somos todos um só”. A proximidade cultural, que o processo de mundialização nos permi­tiu imaginar, está longe de se concretizar. Não basta dizer, como afirma o biólogo americano Alan Templeton, que não existem raças e que as diferenças genéticas entre as mais distintas etnias são insignificantes, que o conceito de raça não é biológico mas cultural.

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*10% da população mundial controla 76% de toda a riqueza deste planeta, 50% dos mais pobres vão sobrevivendo com 2%, nós “os médios”, temos que trabalhar muito e ter alguma sorte para usufruir dos 22% que restam...

terça-feira, 26 de setembro de 2023

A literatura como motor de conhecimento

Percorro as páginas de "Tempo de erros", relato autobiográfico de M
UHAMMAD CHUKRI [1], e detenho-me ao ler:«O demónio da Literatura apoderou-se de mim e eu comecei a interessar-me mais pela leitura de obras literárias do que pela psicopedagogia ou pelo regulamento escolar». E leio mais adiante: «O professor de psicopedagogia apanhou-me a ler Os Miseráveis e expulsou-me da aula aos gritos: "Isto é uma sala de aula, não uma biblioteca"». E dou comigo a divagar à volta de uma escola, onde a literatura é porta de entrada, se não de todos, de grande parte dos saberes: E se as salas de aula estivessem implantadas no interior de uma grande biblioteca, fossem também as suas salas de leitura, com paredes de vidro a deixar ver as estantes e portas de acesso a dar para ela? Um cenário de ficção, obviamente!

«As histórias, como as parábolas, os enigmas e os símbolos, dirigem-se à área mais reflexiva da pessoa, onde o afeto e o conhecimento se unem, para nos fazer desejar, admirar e sonhar», diz PEDRO CUNHA, ao que JOSÉ MATIAS ALVES acrescenta«Unir o afeto ao conhecimento, ligar a emoção à razão. Assumir que não há saber sem sabor. Fazer de cada lição uma história, uma resposta»[2].

Sei pouco das razões que levaram MUHAMMAD a trocar a aula de psicopdagogia pela leitura d'Os Miseráveis (Certamente, mais do que as que me levavam a desenhar bonecos, enquanto fazia de conta que tirava notas da aula). Mas gosto de pensar que algumas estarão algures por ali E não sei também o que faz, hoje, um professor, que apanha um aluno a trocar a sua aula pelo “demónio da literatura”: pedir-lhe para fechar o livro e estar atento à lição? Não sei! Mas prefiro imaginar, talvez, a ouvi-lo perguntar o que está a ler, a ouvir as razões que o levaram à trocaE procurar, quem sabe, ligações prováveis entre os conteúdos do livro e da aulaIsto imaginando como possível, que um aluno escolha a leitura de uma obra literária, para "fugir" da sala de aula. Algo improvável, num tempo em que o smartphone tende a desviar-nos do livro ou mesmo da leitura de textos, literários ou não [3].

Para assinalar o "Dia Mundial do Livro", algumas escolas fazem do livro a "estrela do dia". Em todas as tur­mas, seja qual for a disciplina, no tempo agendado, os alunos lêem em voz alta excertos de uma obra previa­mente escolhida para o efeito. Assim, durante um curto espaço de tempo, os alunos trocam a matemática, a mú­sica, a educação física,... pela literatura, num ritual que António Nóvoa classificaria de "pro­jecto de ano bis­sexto"[4] ou para a fotografia que provoca a notícia, dirão mui­tos de nós, e pouco mais. Não é, então, "fugas da sala de aula", através da leitura de obras literárias, que procuro, mas encontrar portas que se abram à sua en­trada, nos lugares onde não é suposto a entrada da lite­ratura. Mas, com um currículo partido às fatias, como fazer entrar a literatura, com as suas histórias [ou histó­rias apenas], em todas as disciplinas? Nem todas elas têm esta “vocação” literária, é certo. Mas isto não signi­fica que os diferentes saberes, que te­mos para ensinar, não possam ser contaminados pela litera­tura [5]. Mas para isso é preciso aproveitar todas as opor­tunidades, criando-as se preciso for, de fazê-la pre­sente [6] e não apenas, provocando a sua “entrada a mar­telo”, no Dia Mundial do Livro

Daniel Lousada




[1] Muhammad Chukri, Tempo de Erros, Lisboa, Antígona [Ver citação >>>]
[2] José Matias Alves, Uma pedagogia da fascinação [LER>>>]
[3] Não se trata de recusar o digital como suporte do texto. Para mim o livro digital (e-book) também é livro, e não deveria ser misturado no sim ou não à presença do smartphone na sala de aula [assunto que espero abordar em breve].
[4] António Nunes conta que António Nóvoa, aquando da visita a uma sala de aula, de uma escola, na cidade do Porto, refere-se ao trabalho da professora nos seguintes termos: "Vê-se bem que nesta sala não existem projectos de anos bissextos", quer dizer, projectos que acontecem apenas em dias festivos e com pouco ou nenhum conteúdo educativo.
[5] Na busca de ligações com a psicopedagogia, leio n'Os Miseráveis, que entretanto revisitei: «Se uma alma é deixada na escuridão, pecados serão cometidosE a responsabilidade não é de quem comete o pecado, mas daqueles que causam a escuridão (...). Certamente nós falamos connosco mesmos; não há um ser pensante que não tenha experimentado isso. Alguém até poderia dizer que a palavra é um mistério ainda mais magnífico quando, dentro do homem, ela viaja de seu pensamento até à consciência, e retoma da consciência ao pensamento»Victor Hugo, Os Miseráveis, Círculo de Leitores, 1982: vol. 1, pp. 26 e 311.
[6] A título de exemplo, o poema de Manuel António Pina, Coisas que não há que há, traz a literatura para o planeamento [VER>>>]; e O pequeno livro da desmatemática, leva a matemática até ao universo das histórias. 

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Inovação ou o já visto pintado com outras cores?

"(...) Insistimos muito menos no aspecto novidade do que no da adaptação às necessidades do nosso século. Uma técnica de escola tradicional pode perfeitamente integrar-se nas nossas concepções, se permitir e facilitar as formas de trabalho que preconizamos",* defendem Freinet e Salengros na pequena brochura a que deram o título de "Modernizar a Escola".* E desvalorizam o valor da novidade: do que a escola precisa é de definir-se pela actualidade [modernidade, no dizer deles] das suas propostas, e não pela sua novidade ou da novidade dos instrumentos que usa; do inovar por inovar ou como instrumento de propaganda, acrescento eu.

A história recente da educação mostra-nos uma escola obcecada pelas inovações que não são outra coisa mais do que "novidades velhas”, mesmo velhas, na maior parte dos casos, pintadas com outras cores, disfarçadas de coisa nova: fazem-nas aparecer com estrondo para logo se esfumarem passada a surpresa inicial, destronadas por outras com cores mais atraentes; inovação apenas para quem não sabe nada da sua história. E esta obsessão é de tal forma que, por vezes, não basta trazer para a escola este ou aquele instrumento pedagógico, é preciso transformá-lo numa caricatura: o projecto pedagógico, por exemplo, quando exige a participação de todas as disciplinas, mesmo que não caibam todas nele! É o instrumento pedagógico a ocupar o lugar de destaque e não o problema pedagógico que é suposto um projecto resolver. Então, o que começou por ser um instrumento, é como que elevado à condição de pedagogia, um mantra a que é necessário aderir por inteiro: o projecto pedagógico transforma-se em "pedagogia do projecto", a diferenciação pedagógica em "pedagogia diferenciada" …, e até a pergunta, essencial no desenho de um projecto, se transforma numa pedagogia: a “pedagogia da pergunta”.**

Inovar? Sim, quando é necessário inovar, mas conscientes de que a inovação não tem de ser novidade, de que a sua preocupação não é essa: impressionar pela novidade que traz. Mas não querendo impressionar pela novidade, tem, no entanto, de trazer algo de novo em si, que identifique a inovação que propõe. Do latim innovatione [renovação], manifesta-se numa forma renovada, que incorpora novas funções, necessárias para responder melhor aos novos desafios educativos; ou pode ser, simplesmente, um olhar sobre um objecto do passado, que actualiza as suas possibilidades no presente: "O mais importante não é o novo que se vê, mas o que se vê de novo no que já tínhamos visto", diria Vergílio Ferreira.*** É este olhar e só este, que se deve pedir aos professores. É com este olhar que precisamos convocar os saberes dos pedagogos do passado, que nos fizeram chegar aqui: Freinet [entusiasta das tecnologias do seu tempo, o que não teria feito com os recursos tecnológicos de que dispomos!], Montessori, Dewey, ... e tantos outros. Mas lançar o nosso olhar sobre eles não é deixar que ressuscitem numa escola, como se fosse possível uma escola Freinet, ou uma escola Montessori. Reconhecer a actualidade pedagógica de alguns dos seus instrumentos, ou mesmo todos, é uma coisa, outra bem diferente é ressuscitá-los por inteiro numa proposta que exclui, à partida, todas as outras. Daqui a importância da história da pedagogia, que não nos deixa levar ao engano.

Repito: do que a escola precisa é de definir-se pela actualidade das suas propostas, e não pela sua novidade ou da novidade dos instrumentos que usa. Ou pior, pelo nome do passado que afixamos a uma proposta para lhe dar crédito.

"Qualquer que seja a aparência da novidade, eu não mudo com medo de perder com a troca", escreveu Montaigne. Eis a máxima necessária para resistir àquela novidade feita "inovação", que nos pede adesão por impulso.

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C. Freinet e R. Salengros, Modernizar a escola, Lisboa, Dinalivro, 1977.
** Laurence de Cock, referindo-se ao que designa de «pedagogias alternativas» escreve: "No sistema educativo público, permite aos ministérios manter um discurso de «modernização» sem gastar o mínimo euro".  Quer dizer, se alguma coisa está a falhar não é por falta de apoio, mas da pouca vontade em inovar. Só que, diferentemente do que nos querem fazer crer, "mais do que a multiplicação de exortações ministeriais à inovação, ela depende também da liberdade que é deixada aos professores para fazerem experiências nas salas de aula e para se dotarem de ferramentas de acompanhamento de avaliação dos resultados. As reformas educativas recentes vão exactamente no sentido inverso. Não é, portanto, às pedagogias alternativas que é preciso apontar o dedo, mas à escolha que uma instituição faz de privilegiar umas em detrimento de outras; de as utilizar de forma distorcida tendo como objectivo camuflar as injustiças escolares" [Ler Mais >>>]. 
*** Vergílio Ferreira, Pensar, Lisboa, Bertrand Editora, Lisboa, 1992.

domingo, 3 de setembro de 2023

Sobre livros de leitura obrigatória

Daniel Lousada
Quando me disponho a ler, naquela busca do prazer que o texto tem para dar, não estou à espera que me venham a fazer perguntas (de interpretação). As perguntas que importam reservo-as para mim, antes mesmo de iniciar a leitura, interrogando o livro pelo seu título, pelo que me diz a configuração da sua capa, por uma ou outra expressão que, prendendo-me o olhar ao folheá-lo, promete-me o prazer da sua leitura, a que se seguirão as perguntas que eu farei, tomada a decisão de iniciar a aventura.

Não devia ser permitida a "pergunta de interpretação" sobre os textos que queremos ensinar as nossas crianças e jovens a (de)gostar. É impossível a leitura com prazer à sombra das perguntas que o(a) professor(a) irá fazer. Ler para responder faz com que a resposta que tenho que dar se sobreponha ao prazer que o texto pode oferecer.

Até há bem pouco tempo, os livros que entravam na escola do 1º Ciclo, estavam a salvo desta prática. Mas com a adopção de livros de leitura obrigatória, de repente, os manuais escolares parece que deixaram de ser suficientes para satisfazê-la, e os livros que era suposto ensinar a amar, passaram a entrar no circuito das "perguntas de interpretação", que arriscam afastar o leitor do livro. Porquê? Se são obrigatórios, a administração da escola, que tem no controlo burocrático das práticas o seu principal objectivo, faz deles assunto para testes e exames, para que sejam obrigatórios mesmo!

Na escola do 1º ciclo, pelo menos, onde o que importa é trazer leitores para os livros, não devia haver livros de leitura obrigatória. Obrigatória já é a leitura; conservemos, ao menos, a liberdade de escolha das leituras a fazer. Uma coisa é apresentar uma lista alargada de títulos aconselhados, que não põe de fora outros títulos que as crianças e os seus professores possam trazer para a escola [os livros apresentados pelo Plano Nacional de Leitura, por exemplo, poderiam ser essa lista]; outra bem diferente é dizer: estes tens que ler, queiras ou não queiras.

Não é na perspectiva da criança que me coloco! – acredito que, nestas idades, as crianças abraçam os textos que os adultos, com o seu entusiasmo, quiserem que abracem, desde que estejam ao seu alcance – É na perspectiva do professor que me coloco: eu não saberia como entusiasmar uma criança para a leitura de um livro que não me seduz [tantos livros que sou aconselhado a ler e que, por opção, não leio]. Acho que um dos principais critérios de escolha dos livros que entram na sala de aula deveria ser o(a) professor(a) gostar deles. Então, ele(a) envolve-se na leitura com os seus alunos; traz a leitura para a aula, não traz perguntas a pedir respostas certas! Lê, e ao ler, emprestando a sua voz ao texto, ao mesmo tempo que convida os seus alunos a emprestar a deles, as perguntas que importam estarão lá todas: aquelas que fazemos ao texto como leitores, implicados na leitura do livro com prazer. E o livro vira assunto de conversa; conversas iguaizinhas àquelas que temos com colegas e amigos sobre os livros que nos deram prazer ler.


SOBRE O MESMO TEMA:

Para uma prática de leitura partilhada >>>

Falar dos livros que não lemos >>>

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Burocracia na escola: À espera que algo mude! Será que muda?

Registo vídeo
Quando um novo ano lectivo bate à porta, impõe-se, mais uma vez, que não se esqueça o excesso de trabalho burocrático dos professores. 

No passado mês de Maio realizou-se a 72ª tertúlia Inquietações Pedagógicas, sob o signo da burocracia, num debate em que a organização do trabalho de aprendizagem dos alunos e a avaliação foram as preocupações dominantes [Ver registo vídeo]. São estas preocupações que me merecem, agora, os apontamentos que se seguem.

Quando a avaliação se torna um acto burocrático

Faço a viagem Porto-Lisboa, que tenho agendada. Passo a Ponte do Freixo e sigo em direcção à A1. A meio da viagem, páro numa estação de serviço para um café. Três horas e meia depois de ter saído do Porto, ultrapassando aqui e ali os limites de velocidade, chego ao meu destino e, à chegada, perguntam-me como correu a viagem. Ao que eu respondo: bem obrigado, foi uma viagem tranquila.

Imagine-se agora que, quem perguntou, queria que eu elaborasse e insistia na pergunta: "Mas, tranquila como? Que é isso de correr bem?"  Acho que episódios como este, bem poderiam ser metáfora da grande maioria das sínteses descritivas, que os professores se vêem a escrever, a propósito da avaliação dos seus alunos.

Tal como da avaliação que faríamos de muitas viagens, se nos sentíssemos obrigados a escrevê-la, da avaliação da maior parte dos nossos alunos não há muito a dizer, e ainda bem: quer dizer que a viagem deles tem sido tranquila, em piloto automático. A sensação que fica, em quem é obrigado a fazer sínteses de avaliação destes alunos é igual à de quem se sente obrigado a “encher chouriços”. Foquemo-nos, então, nas razões daqueles que têm viagens atribuladas.

Entre projectos, planos e planificações

De determinadas áreas curriculares com propriedades ou características mais instrumentais, diz-se que têm vocação transdisciplinar. São áreas de muitos poisos, que transitam através de outras áreas disciplinares. A língua portuguesa é uma destas áreas: para além de se assumir como disciplina com um objecto de estudo específico (estudo da língua), viaja por outras áreas como instrumento delas. Quer dizer, todos os conhecimentos ligados a esta ou àquela disciplina precisam da língua que permite pensá-los: em cada disciplina, a língua é um instrumento dessa mesma disciplina, e daqui dizer-se que uma língua, além de um objecto de estudo, é também um instrumento de cultura (a mesma característica instrumental é apontada para a matemática).

Nem todas as áreas disciplinares têm esta vocação transdisciplinar. Mas não a tendo, tê-la-ão, certamente, alguns dos seus temas ou conteúdos.

Do que é trandisciplinar diz-se que é transversal, que se manifesta em mais do que uma área de conhecimento, sem precisar de autorização para entrar nas disciplinas que atravessa, mostrando-se nestas sem convite. Assim, na abordagem ao ensino de um tema que se apresenta como transdisciplinar, o seu tratamento, numa perspectiva interdisciplinar, deveria acontecer naturalmente (algo que não acontece na generalidade dos agrupamentos!).

São estes temas, que convocam conteúdos de disciplinas que se cruzam no mesmo espaço (e só estes), os que merecem que sejam pensados em projectos interdisciplinares e não, como acontecem na maior parte dos Agrupamentos de Escolas (com uma visão burocrática da educação), que se inventem projectos, nos quais se encaixam, a martelo, todas as disciplinas. 

Se do que nos chega do Ministério da Educação, para além do protesto e da reivindicação pública, pouco mais há a fazer, já da burocracia produzida pelos Agrupamentos (aquela que mais aleija), e pela qual apenas estes são responsáveis, impõe-se uma resistência activa, recusando a adopção de procedimentos inúteis porque estúpidos, ou estúpidos porque inúteis: aqueles que se adoptam porque toda a gente adopta, que se adopta porque sim... 

Daniel Lousada

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Escola Inclusiva: uma questão de ponto de vista.

«Ponto de vista é uma vista a partir de um ponto», diz Leonardo Boff. Quer dizer: a vista que se avista não é indiferente ao ponto a partir do qual é vista».

Penso numa escola com todos e para todos e, ao pensá-la, penso numa escola que não sei. Se soubesse, por que haveria de pensá-la? Quer dizer, se eu soubesse limitava-me a construí-la, não a pensá-la. Acontece que ao pensá-la possível é um passo que dou na sua direcção, mesmo desconfiando que não haverá passo que chegue para chegar até ela. Alguns dirão que pensar a escola desta forma assemelha-se a um confronto com a utopia. E assemelha-se de facto, mas nem por isso ela é menos real. Porque, contrariamente ao que se diz por aí, a utopia existe mesmo!

Quando Thomás More baptizou a sua ilha com o nome de Utopia [palavra inventada a partir dos elementos gregos «U», «não», e «tópos», «lugar»], não fez mais do que dizer que ela era um «não-lugar»[1] .E, como «não-lugar» [que não significa, necessariamente, ser irreal], a utopia carrega em si a possibilidade da sua existência: é tão real como aquele lugar onde o céu toca a terra.

O quê, o céu não toca a terra? Claro que toca! O horizonte está mesmo ali a dizer-me que sim. Não posso chegar até ele, é certo, porque, como «não-lugar» que é, não posso habitá-lo – como diria Eduardo Galeano, se dou dois passos na sua direcção ele logo se afasta outros tantos de mim.[2] Então, não podendo alcançar o horizonte caminhando até ele, só me resta encontrar forma de o trazer até mim. Como? Vergílio Ferreira, no seu «Pensar», aponta uma resposta:

O horizonte varia consoante a altura que temos. Só não varia nunca o ser variável, enquanto horizonte que é, ainda que por absurdo se atinja. Porque não é nunca o horizonte que nos fascina mas a distância a que ele está.

A conclusão parece-me óbvia: tratando-se de chegar ao horizonte, o segredo está em descobrir maneira de encurtar a distância que, está visto, não acontece se eu caminhar na sua direcção. Fica-me então, apenas, a possibilidade de trabalhar naquela distância que fascina [como sugere Vergílio Ferreira], mexendo na altura em que se encontra o meu olhar. Quer dizer, se encostar o olhar junto ao chão, com o meu ponto de vista e o horizonte alinhados no mesmo nível, o horizonte aproxima-se de mim; e chega mesmo a parecer, ao estender o braço, que até posso tocá-lo com a mão! Inversamente, se subo a montanha mais alta para vê-lo melhor, o que consigo é aumentar a distância que me separa dele.

Tudo isto para dizer, que todas as grandes conquistas da humanidade só foram possíveis porque alguém as pensou utopicamente, não como coisa irreal, mas acreditando sempre na possibilidade da sua construção, passo a passo... A maior das conquistas, iniciada há séculos, continua por cumprir, e nem por isso desacreditamos da sua possibilidade e urgência: que maior utopia do que a democracia, e tão teimosa e utopicamente perseguida por tantos, que dão a vida por ela, e que tão obstinadamente a vivem? Tal como uma sociedade democrática se constrói nos diferentes espaços, que continuamente inventamos, e nos quais a cidadania se cumpre, uma escola inclusiva faz-se, em cada sala de aula, do conjunto de gestos que mobiliza as pessoas com objectivos comuns, o principal dos quais só pode ser não deixar que alguma criança ou jovem possa ser excluído. É a partir da sala de aula que a escola inclusiva se constrói – o que mais perto está de nós, afinal.[3]

Continuando com Vergílio Ferreira, «A história do homem é a das suas utopias. Mas é decerto também a do que nelas se conquistou. Somente a utopia não pretende realizar-se, como o desejo que se cumpre não esgota o desejar (...). Que se imagine uma vida em que se realizasse tudo o que se desejasse. Alguma coisa faltaria ainda em tudo em que já não faltava, e não saberíamos o quê. É isso que não sabes que é o fundamental».

A Escola Inclusiva é utopia? Claro que é! Será sempre construção por acabar! Mas dizer de uma construção que ela será sempre uma construção inacabada, é uma coisa; outra bem diferente seria dizer que ela é irreal, sem futuro como construção, como dado de cultura.

Escola Inclusiva: uma construção que, para ser construída, para ficar ao alcance da mão, precisa apenas de um certo «ponto de vista», afinal!



[1] Mário CORTELLA, discorda desta leitura, defendendo que «U» em grego clássico não é negação para lugar. Negação para lugar é «A». Então, se Thomás More quisesse dizer um «não-lugar» ou «lugar-nenhum» teria colocado «A» antes de «tópos». Para Cortella «utopia» quer dizer «ainda não».

[2] Para que serve o horizonte, não podendo ser alcançado? Serve para caminhar.

Numa carta de Antero de Quental, a António de Azevedo Castelo Branco, encontro um desabafo que o coloca próximo deste sentido de utopia, se bem que a utopia não seja o contexto do que escreve: «Os nossos ideais – escreveu então Antero – tinham efectivamente uma parte de verdade: mas não é como nós julgávamos para se realizarem na vida prática. Servem para levantar os espíritos à altura dum critério superior ao mundo visível». Colocam o nosso olhar no horizonte, apetece dizer.

[3] Nada posso fazer para acabar com a fome no mundo. Mas alguma posso fazer para acabar com ela no meu prédio, no meu bairro, na minha rua...

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Da relação Currículo/Pedagogia

O processo pedagógico tem de realizar, no ponto de chegada, o que no ponto de partida não está dado – diz Dermeval Saviani [1] –. Referindo-se, por exemplo, à questão da igualdade. A cultura de que as crianças são portadoras à entrada da escola é da maior importância do ponto de vista escolar, enquanto ponto de partida. Não é, porém, esta cultura que vai determinar o ponto de chegada do trabalho pedagógico.

Por isso – defende Michael F. Young [2] – deve distinguir-se currículo e pedagogia, uma vez que se relacionam de modo diferente com o conhecimento escolar e com o conhecimento do quotidiano que os alunos levam para a escola. O currículo deve excluir o conhecimento quotidiano dos estudantes, ao passo que esse conhecimento é um recurso para o trabalho pedagógico dos professores. Os estudantes não vão para a escola para aprender o que já sabem.

Do conhecimento do quotidiano [como ponto de partida], ao conhecimento escolar [como ponto de chegada], está a ideia de viagem defendida por António Nóvoa [3]: Só nos educamos se sairmos do nosso lugar. Educar não é fechar as crianças na sua cultura; é permitir que as crianças façam uma viagem, conheçam o mundo todo. Educar é libertar. E libertar é fazer uma viagem.

Daniel Lousada

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[1] Pedagogia histórico-crítica, Campinas, Autores associados, 2012: p. 113.
[2] O futuro da educação na sociedade do conhecimento, in Revista Brasileira, V.16, nº 48 Set-dez: p. 609-623. 
[3] A importância do território na educação, in Educação & Participação, Youtube, 2017.

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Das ciências (da educação), da pedagogia e da didáctica

Frank Smith conta que, quando foi convidado a falar sobre o tema do que viria a ser o conteúdo do seu livro "Pensar"*, foi interpelado por um superintendente escolar, que estava muito perturbado. Dizia ele que semanas antes tinha ouvido outro especialista com uma posição diferente da sua.

"Ele dizia uma coisa e o senhor está a dizer outra. Como explica isso?"

Frank Smith sugeriu que pelo menos um dos dois devia estar errado.

"Então como é que eu posso saber quem tem razão?", perguntou ele, aparentemente chocado.

O dilema aqui presente é óbvio. Em pedagogia, não é possível pedir a um especialista que pense por nós e, muito menos, que decida por nós [apenas que pense connosco, digo eu], e vale de pouco procurar outra avaliação noutro lado, porque não há qualquer garantia de que um segundo especialista [terceiro, quarto..., o que for] tenha razão.

É preciso que cada um se sinta capaz a pensar por si, em diálogo com o outro com certeza, sustentado nos saberes de cientistas e especialistas certamente, mas sem se deixar colonizar por eles. É  com esta capacidade de pensar, por si, sobre o trabalho, que se faz a pedagogia.

Em pedagogia não há métodos fixos. O método, em pedagogia, é sempre provisório, desactualiza-se a partir do momento mesmo da sua prática, e o que fica é o método didáctico, que decorre da prática pedagógica que o produziu, como referência para pensar uma prática pedagógica possível, que não será mais aquela que o método didáctico aponta. Não sendo assim, o método didáctico transforma-se num produto de alguém que simplesmente deixamos pensar por nós.

É por isso que precisamos, continuamente, através da reflexão pedagógica, de procurar sempre novas didácticas, conscientes de que a didáctica que temos de construir é, como diz Sérgio Niza, "a negação mesma da didáctica".**

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*Frank Smith, "Pensar", Lisboa, Instituto Piaget, 1990
** Sessão de Abertura do Congresso do Movimento da Escola Moderna, Lisboa, 1989

quarta-feira, 26 de julho de 2023

TEIP - Território educativo de intervenção prioritária: interrogações e provocações

REGISTO VÍDEO

[Texto actualizado em 02.08.2023]

Territórios educativos de intervenção prioritária: uma via para a inclusão e igualdade de oportunidades interroga-se o colectivo Inquietações Pedagógicas, na sua 73ª Tertúlia, e da qual se apresenta aqui um registo vídeo com curtíssimos excertos que, entrelaçados de registos de terceiros [relacionados com o assunto, mas não directamente ligados a ele], reflecte, em jeito de provocação, o que penso sobre este tema. 

Estes debates, apresentados em forma de pergunta, trazem quase sempre, como resposta, expressões deste tipo: o trabalho [nos TEIP] é excelente mas nunca reconhecido pelos resultados. O modelo de avaliação utilizado  diz uma das intervenientes no debate  não consegue mostrar o que de bom se tem feito e que não é possível traduzir em números: "Hoje em dia olha-se para os números, e os números são números"! [como as letras são letras e as palavras palavras, apetece dizer]. Se os resultados não se podem traduzir em números, há que traduzi-los de outras formas, não? Ora, são essas outras formas, reconhecidas ou não pela tutela, que é preciso trazer para o debate: ouvir falar do trabalho pedagógico; ouvir alguém a descrever o que de excelente se produziu  até porque não é possível falar de mudança na avaliação, sem falar das mudanças da prática pedagógica, que justificam outro tipo de avaliação [VER >>>–. Porque quando falamos de escola é isso que conta: ouvir professores e alunos a falar do trabalho na sala de aula, das aprendizagens realizadas, e da parte dos resultados que foi influenciado pelo programa TEIP. Mas para isso faz falta trazer a pedagogia e os pedagogos [uma raça sem voz, em vias de extinção] para a conversa: as análises de psicólogos e sociólogos, e de elementos da administração da escola, poderão ser muito interessantes, mas dizem muito pouco do trabalho realizado com os alunos, e dos efeitos do que se diz ser "discriminação positiva" dos TEIP. Porque, sejamos claros, quando não se consegue dizer o que de bom foi feito, o mais certo é não haver o bom que baste para insistir na continuação de um programa que tem oferecido tão pouco. 

Não simpatizo com programas que não sabem fazer chegar às escolas os apoios de que precisam, sem as identificar como "escolas de má fama", para utilizar a expressão de uma das intervenientes no debate. Não descarto as intenções bondosas deste tipo de programas mas, como diz a sabedoria popular, de boas intenções está o inferno cheio. Acho, mesmo, que a designação TEIP funciona como repelente, para quem olha estes agrupamentos de fora. Imagino que quem os vive por dentro fugiria deles, se pudesse. Eu fugia certamente!* 

Além dos TEIP 1ª geração, 2ª geração e 3ª geração, já vi passar o PIPSE - programa interministerial  de promoção do sucesso educativo; as ECAE - Equipa de coordenação de apoios educativos que, surgindo como "upgrade" das Equipas de Educação Especial, tinham como projecto a coordenação dos apoios educativos às escolas da sua área geográfica; o EPIPSE - Equipa de projectos de inclusão e promoção de sucesso educativo, que juntou o "E" de equipa ao PIPSE e, não fosse o "P" de programa virar projecto, e o "I" de interministerial virar inclusão, ficar-me-ia, certamente, a sensação de ter recuado a 1986.

Agora a 4ª geração dos TEIP está aí para prolongar o programa por mais seis anos. E, muito sinceramente, não sei se, em vez de insistir nesta fórmula, não deveríamos, mesmo, recuar a 1986 e recuperar algo na linha do programa PIPSE  que, no essencial, poderia cumprir os mesmos objectivos, com a vantagem de ser muito menos burocrático e mais inclusivo: uma estrutura local [que podia ser concelhia ou distrital, dependendo do número de escolas da área geográfica abrangida], que negociava com a escola os apoios mais adequados, dispensando-a de processos de candidatura. Seria uma estrutura dotada dos recursos humanos necessários, especialistas de diferentes áreas da educação e ensino, que olharia para cada uma das escolas, de certa forma, do mesmo jeito que o professor [que aposta na diferenciação pedagógica], olha para cada um dos seus alunos: avaliaria, em cooperação com as escolas [como o professor em cooperação com os alunos e suas famílias], as necessidades de cada uma, providenciando os recursos, em função da avaliação realizada. De certo modo, seria uma resposta na linha do que está implícito no desabafo da interveniente no debate que identificou TEIP como "escolas de má fama": "Todas as escolas deveriam ser TEIP" – no sentido em que a educação é uma prioridade para todas –, umas com mais apoio, outras com menos apoio. Porque quando dizem que não há influência no território, não sei se não haverá! De fuga. E de fazer com que as pessoas fiquem menos incluídas" (Margarida). [minuto 59.50 do registo vídeo original].

Daniel Lousada

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*A propósito, recordo que, dois ou três anos depois [não sei precisar] da criação do programa TEIP, a presidente do conselho directivo de uma E.B.2, da área da ECAE onde exercia as minhas funções, confrontada com os problemas escolares de uma boa parte dos seus alunos, dá conta da sua intenção de candidatar a sua escola àquele programa. Manifestei-lhe a minha surpresa – já nesse tempo a sigla TEIP era um "ferrete" que "aleijava" as escolas com a intenção de aliviá-las –. E dou-lhe conta do meu apreço pelo ambiente que se vivia na sua escola  ao tempo a minha filha frequentava aquela escola de uma forma tranquila –. Recordo, agora, que a principal motivação da eventual candidatura ao programa TEIP prendia-se com a atribuição de um crédito horário, que lhe permitia a colocação de mais professores. Houvesse outra alternativa e, estou certo, a candidatura ao programa TEIP não se punha.

sábado, 15 de julho de 2023

Pedagogia: entre caminhos e estradas

Ao saber da morte de Milan Kundera, percorro mentalmente os livros que li dele. Fixo-me na Imortalidade. Vou à procura do que escreveu sobre o "caminho" como metáfora da vida e relembro o que escrevi a propósito.

"Os caminhos desapareceram da alma humana  diz Milan Kundera . E também a sua vida ele já não vê como um caminho mas como uma estrada".

Claro que continuamos a ter caminhos e a palavra não caiu em desuso, mas parece não ter em nós o impacto que tinha em tempos idos. Continuamos a dizer “meter os pés ao caminho", é certo, mas esta expressão, num mundo atravessado de estradas, que a contaminam, parece ter perdido o seu sentido original: a estrada vendo-se melhor na paisagem, faz desnecessários muitos caminhos.

A estrada pode ver-se melhor na paisagem, mas o caminho liga-se ao homem com outra intensidade: está mais à sua escala, convida-o a caminhar. Talvez porque, além de nome, também é forma verbal. E o caminho mais a forma verbal a que se junta faz o caminhante que lhe dá sentido. Com a estrada não se faz verbo: "estradar" não existe, e mesmo como verbo inventado não soa bem ao ouvido. A estrada está mais à escala da máquina, sugere que te deixes guiar.

"O homem já não sente o desejo de caminhar"! Porquê? Não tem caminhos que mereçam ser caminhados? Ou simplesmente desviaram-lhe o olhar para estradas, que o conduzem rapidamente a destinos que alguém lhe diz ser mais importante que a experiência de caminhos que convidam à pausa?

"O caminho e a estrada implicam também duas noções de beleza diz Milan Kundera."(...) No mundo das estradas uma paisagem bela significa: um ilhéu de beleza, ligado por uma longa linha a outros ilhéus de beleza. No mundo dos caminhos, a beleza é contínua e sempre em transformação: diz-nos a cada passo pára".

Não tenho nada contra as estradas, que fique desde já claro: Uso-as para chegar ao "ilhéu de beleza" que outro já descobriu antes de mim. Quer dizer, não aprecio nada, mesmo nada, que ao pedir, por exemplo, o significado de uma palavra a quem sabe, ele me dê um dicionário. Porquê? Já sei de que é feito o dicionário e a ordem alfabética não é segredo para mim. Mas não me pousem no cimo da montanha se a experiência que procuro é o prazer da escalada.


terça-feira, 18 de abril de 2023

Que livros sugerir a alguém com dezoito anos?

Uma entrevista conduzida por Fernando Alves, para "Onde nos levam os caminhos", da TSF >>>

É difícil sugerir livros a alguém com dezoito anos! É difícil porque agora parece que os miúdos não lêem nada, não é? Eu recebo os miúdos no 1º ano de faculdade, pergunto-lhes o que lêem, e são poucos aqueles que leram alguma coisa interessante.

Eu sugiro tudo. Até nos maus escritores a gente aprende coisas. Eu acho que, fundamentalmente, eles têm que ler tudo, sobretudo, com apoio, que foi isso que eu felizmente tive, que é: alguém que lhes mostre porque é que um livro é interessante.

Eu percebo que os miúdos, hoje, com a voragem do dia, com a velocidade a que trabalham, com os dedinhos sempre em cima das teclas do telemóvel ou do computador, tenham muita dificuldade em ler as primeiras vinte páginas de "Os Maias", que são descrição em cima de descrição (...). Mas tudo isso transforma-se noutra coisa se nós lhes soubermos explicar e se eles souberem perceber, fundamentalmente, a beleza da escrita. Isso é que eu acho que é fundamental. Muito mais que outro tipo de matéria, acho que os professores de português se deveriam preocupar em mostrar a beleza da escrita: como é que substantivos, adjectivos e outras categorias morfológicas, se harmonizam.


sexta-feira, 14 de abril de 2023

Lidar com a perda auditiva pode prevenir o risco de demência?

As conclusões de um estudo que o senso-comum e o bom-senso já defendiam

Lê-se no The Guardian que "Usar aparelhos auditivos pode ajudar a reduzir o risco de demência, de acordo com um grande estudo realizado ao longo de uma década, o que sugere que lidar com a perda auditiva precocemente pode ajudar a reduzir o risco da doença".

"Pessoas com perda auditiva que não usam um aparelho auditivo podem ter um risco maior de demência do que pessoas sem perda auditiva, sugere a pesquisa. Mas o uso de um aparelho auditivo pode reduzir esse risco para o mesmo nível que as pessoas sem perda auditiva", dizem os investigadores.

No entanto, Robert Howard, professor de psiquiatria na área da geriatria, da University College London, que não esteve envolvido no estudo, mostra-se céptico : “Este é um estudo grande e bem conduzido, mas convém não esquecer que a observação de uma correlação entre perda auditiva e demência não quer dizer que existe uma relação de causa efeito". Com efeito, é sabido que uma pessoa com perda auditiva acentuada, tem tendência para o isolamento, dada a sua dificuldade em participar nas conversas que se desenrolam à sua volta. E isto acelera o aparecimento dos sintomas, nas pessoas com tendência em desenvolver a doença.

Daqui não ser de todo certo que o uso de aparelho auditivo possa evitar a demência. Pode, isso sim, mitigar os seus efeitos, atrasando o aparecimento dos sintomas.

domingo, 9 de abril de 2023

Do outro lado do cerejal

Um livro vindo pela mão da Estela Rodrigues, no contexto do projecto ARTEcomTEXTO, que vem desenvolvendo, com crianças do jardim-de-infância.

"No primeiro mês de educadora aposentada, mais repousada, as saudades sobem-me à arrecadação. Desço as escadas com um saco onde trabalhos artísticos e textos de exposições continuavam juntos. Entre eles, as pinturas do Cerejal deixadas pelas crianças no jardim-de-infância. Espalho-as na sala de estar (...). Nessa clareira acrescento um ponto ou dois à história coletiva, reescrevo-a e reconfiguro-lhe a mancha gráfica".

"Do outro lado do cerejal" abre com uma história inventada com crianças (Os Sapatinhos de Cereja em busca das meninas de Modigliani), a que a Estela deu forma, o toque final, numa reescrita que crianças de 4-5 anos de idade não têm, obviamente, condições de fazer: "Escrita comparticipada, recortar e costurar o texto são tarefas difíceis para crianças  impossível sem a presença da escrita de um adulto competente, digo eu   "Quando lia em voz alta, apercebiam-se das ideias e enunciados desconcertados: nem conjunção, nem subordinação, tudo assindético, agramatical, diria eu".

Às crianças desafiadas a confrontar-se com a escrita, não faz falta a gramática. Faz falta, isso sim, uma voz a fazer frente ao sentido do escrito. A voz da educadora ou do educador que, no jardim-de infância ou na escola, apresenta a escrita às crianças, é essa voz.

O acontecimento desta história não estava previsto, diz a Estela. "As coisas são o que aparecem". Mas, para que o sejam, precisam dos olhas atentos que não as deixam passar ao lado, num ambiente onde a interajuda e a partilha das aprendizagens são incentivadas: "duas coisas fora do lugar e do vulgar (cerejas com sapatinhos); Um encontro improvável a pulsar-nos a vida. 'Se não se compreende a utilidade do inútil e a inutilidade do útil, não se compreende a arte', declara Eugene Ionesco, citado por Ordine".

As pinturas produzidas pelas crianças, na sequência do trabalho de sensibilização estética, dinamizado pela educadora, assente na observação de quadros de pintores consagrados, antecederam a escrita da história, não pensada ainda. Uma vez provocado o desejo da sua escrita, as pinturas produzidas pelas crianças viram ilustrações possíveis da história a inventar; como seu fio condutor, indicam caminhos, provocam mudanças de direção e de sentido: "Tendo os trabalhos à frente, se trocássemos de sítio mudava-se o rumo da narrativa, as peripécias (...)".

As ilustrações interpelam e são interpeladas. E deste processo de interpelação surge o conteúdo da história a que é preciso dar forma. Porque não basta a exaltação da "criança curiosa e criativa", perante a qual o adulto só pode maravilhar-se.(1) 

Ao olhar este processo, imagino Nuno Júdice, num processo idêntico, a escrever a obra de Graça Morais, em "O Segredo do Mar": um conto de um escritor a ler a obra de uma pintora. Afinal, como sugere a Estela, entre artes, literacias e literaturas, não é possível fronteiras. Uma sugestão que, em "Do outro lado do cerejal", é levada à letra.

Daniel Lousada

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(1) "Sem ofensa àqueles entusiastas que se espantam com a infância curiosa - diz Philippe Meirieu -, acho que o desejo de aprender é uma construção lenta e complexa, em grande parte dependente do empreendimento educativo".