domingo, 9 de abril de 2023

Do outro lado do cerejal

Um livro vindo pela mão da Estela Rodrigues, no contexto do projecto ARTEcomTEXTO, que vem desenvolvendo, com crianças do jardim-de-infância.

"No primeiro mês de educadora aposentada, mais repousada, as saudades sobem-me à arrecadação. Desço as escadas com um saco onde trabalhos artísticos e textos de exposições continuavam juntos. Entre eles, as pinturas do Cerejal deixadas pelas crianças no jardim-de-infância. Espalho-as na sala de estar (...). Nessa clareira acrescento um ponto ou dois à história coletiva, reescrevo-a e reconfiguro-lhe a mancha gráfica".

"Do outro lado do cerejal" abre com uma história inventada com crianças (Os Sapatinhos de Cereja em busca das meninas de Modigliani), a que a Estela deu forma, o toque final, numa reescrita que crianças de 4-5 anos de idade não têm, obviamente, condições de fazer: "Escrita comparticipada, recortar e costurar o texto são tarefas difíceis para crianças  impossível sem a presença da escrita de um adulto competente, digo eu   "Quando lia em voz alta, apercebiam-se das ideias e enunciados desconcertados: nem conjunção, nem subordinação, tudo assindético, agramatical, diria eu".

Às crianças desafiadas a confrontar-se com a escrita, não faz falta a gramática. Faz falta, isso sim, uma voz a fazer frente ao sentido do escrito. A voz da educadora ou do educador que, no jardim-de infância ou na escola, apresenta a escrita às crianças, é essa voz.

O acontecimento desta história não estava previsto, diz a Estela. "As coisas são o que aparecem". Mas, para que o sejam, precisam dos olhas atentos que não as deixam passar ao lado, num ambiente onde a interajuda e a partilha das aprendizagens são incentivadas: "duas coisas fora do lugar e do vulgar (cerejas com sapatinhos); Um encontro improvável a pulsar-nos a vida. 'Se não se compreende a utilidade do inútil e a inutilidade do útil, não se compreende a arte', declara Eugene Ionesco, citado por Ordine".

As pinturas produzidas pelas crianças, na sequência do trabalho de sensibilização estética, dinamizado pela educadora, assente na observação de quadros de pintores consagrados, antecederam a escrita da história, não pensada ainda. Uma vez provocado o desejo da sua escrita, as pinturas produzidas pelas crianças viram ilustrações possíveis da história a inventar; como seu fio condutor, indicam caminhos, provocam mudanças de direção e de sentido: "Tendo os trabalhos à frente, se trocássemos de sítio mudava-se o rumo da narrativa, as peripécias (...)".

As ilustrações interpelam e são interpeladas. E deste processo de interpelação surge o conteúdo da história a que é preciso dar forma. Porque não basta a exaltação da "criança curiosa e criativa", perante a qual o adulto só pode maravilhar-se.(1) 

Ao olhar este processo, imagino Nuno Júdice, num processo idêntico, a escrever a obra de Graça Morais, em "O Segredo do Mar": um conto de um escritor a ler a obra de uma pintora. Afinal, como sugere a Estela, entre artes, literacias e literaturas, não é possível fronteiras. Uma sugestão que, em "Do outro lado do cerejal", é levada à letra.

Daniel Lousada

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(1) "Sem ofensa àqueles entusiastas que se espantam com a infância curiosa - diz Philippe Meirieu -, acho que o desejo de aprender é uma construção lenta e complexa, em grande parte dependente do empreendimento educativo".

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