A propósito da vergonha alheia de Raquel Varela
A professora Isa, como professora do 1º Ciclo, “ensina” muitas artes
: expressão plástica, musical, matemática, história, ciências
... e, claro, português
. Duvido que alguém possa gostar de tudo isto por igual
.«
Não sou leitora. Nunca fui muito de ler livros»[*], responde quando lhe perguntam o que andava a ler
. Quer dizer que se afasta dos livros como se estes fossem repelentes? Não, diz tão só que procura entretimento noutras leituras ou noutras artes
. E, curiosamente, embora diga não ser leitora, também diz gostar de livros
: «Os livros infantis são muito importantes para mim, (...)
. Em casa, na pequena biblioteca que tenho, e na escola, passaram a ser um grande contributo para o meu trabalho»
. Afirma inclusive, uns parágrafos acima, que está «a estudar para tirar uma pós-graduação em "livro infantil"»
. Ora, isto não se consegue sem leitura e sem escrita
. Donde que alguma coisa terá de ler
. Mas ao ler a entrevista e, a seguir, os comentários violentos, que se escreveram sobre ela, centrados unicamente numa resposta infeliz, esquecendo tudo mais, fica-me a impressão de estar na presença de "leitores de letras gordas"
.Conheço professores que, não gostando de grandes leituras, ligam-se à leitura pelo desejo de saber
. E conseguem passar este desejo aos seus alunos, como só muito poucos conseguem! Outros, do mundo universitário, confessam que as suas leituras acontecem em função das aulas que têm para dar e dos projectos de escrita [de artigos, coisas de carreira] que têm em mãos
: a leitura amarrada, não ao prazer de ler, mas ao propósito de uma escrita utilitária
. Outros ainda, grandes leitores(as), são incapazes de fazer gostar seja do que for – Entre os primeiros e estes últimos, prefiro seguramente os primeiros, pela seriedade com que encaram a profissão
.CLARO QUE GOSTAR DO QUE SE ENSINA AJUDA
: dispensa-nos o trabalho de fazer de conta que gostamos! Sim, fazer de conta! E até nem é muito complicado fazê-lo com crianças deste nível de ensino
: basta saber ler e investir na construção de uma personagem que adora ler o que está a ler
. Pode, depois, acontecer a dificuldade em discorrer sobre a qualidade literária da obra, mas isso é irrelevante neste nível de ensino
. Durante a minha carreira tive de ler e dar a ler livros que não gostava, e li-os aos meus alunos, como se os adorasse, tão convincentemente, que alguns quiseram levar o livro, para repetir a leitura em casa! Nalguns casos [poucos, confesso] deixei-me entusiasmar pelo seu entusiasmo, e dei por mim a gostar do que lia!
Há confissões que só devem fazer-se no confessionário! E, Infelizmente para a professora Isa, os jornais não são confessionários, nem lhes compete perguntar ao entrevistado se acha mesmo do seu interesse partilhar esta ou aquela informação
. Eles iam lá perder a oportunidade de partilhar esta confissão, destacando-a das demais em letras gordas
. Enfim, coisas de quem, ingenuamente, se enreda nestas redes e deixa que a visibilidade do seu trabalho o transforme em curiosidade mediática
.Já agora, eu nunca gostei de algoritmos, nem de raízes quadradas [estas já nem sei mesmo como se fazem], mas isso não me impediu de ser competente no seu ensino, quando ensinava
.______________
[*]
Esta citação foi partilhada, pela historiadora Raquel Varela, da seguinte forma: "A professora de português – já vimos não ser de português – (...) deu uma entrevista ao Expresso este fim de semana onde diz que nunca gostou de ler, cito". Obviamente, não citou coisa nenhuma. De nunca gostei de ler a nunca fui muito de ler livros, há uma distância enorme: eu que nunca fui muito de copos, gosto muito de um bom copo, principalmente se a acompanhar uma boa conversa entre amigos – Apetece dizer que até os melhores se deixam contaminar pela mentalidade facebook.