quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Entre «O NADA» que se fez e «O TUDO» que foi feito - Uma questão de percepção


É sabido que um ponto de vista ‒ entendido na perspectiva de Leonardo Boff como a “vista a partir de um ponto”
 ‒ influencia a percepção da coisa observada. Serve isto para esclarecer que, ao escrever este texto, faço-o do alto do conforto, que é o ponto de vista onde me encontro: de “reformado de profissão”, pertencente a uma geração de professores que não se viu encalhada num qualquer escalão de vencimento, por força de «um modelo de avaliação injusto, incompetente e pouco transparente» ‒ para usar as palavras de José Morgado ‒ e que, apesar de estar profundamente desacreditado por todos os agentes envolvidos, nenhum governo ousa tocar. Talvez porque o que está em causa não seja a avaliação, de facto, mas o orçamento. Coisa do ministro das finanças, portanto ‒ porventura, a par do sistema de colocação de professores em lugares de quadro de nomeação definitiva (embora com menos implicações orçamentais), de resolução impossível pelo ministério da educação, sem o aval das finanças. Daqui considerar excessivo exigir, nesta matéria, a demissão do ministro.

Mas se, em reivindicações que afectam o orçamento, a margem de manobra de João Costa para negociar autonomamente com os professores é reduzida, o mesmo não se pode dizer de todos os outros aspectos que afectam a vida dos professores. E aqui, ao ler o artigo de opinião «Da Transformação na Escola Pública», ficou-me a sensação de que o sr. ministro (talvez porque não lhe cheguem informações dos efeitos secundários de algumas das suas realizações) passou ao lado do que mais inferniza o dia-a-dia dos professores. É outro o ponto de vista em que se encontra e outra, necessariamente, a sua percepção.

Se há coisa que aprendi com as medidas decretadas pelos sucessivos governos, que visam a melhoria da qualidade do trabalho das escolas, por mais bondosas que estas possam ser (e algumas, promovidas por este ministro, têm-no sido, de facto), é que não se têm avaliado os efeitos secundários, que decorrem da sua aplicação, com a atenção que merecem. Entre o ministério da educação e a sala-de-aula, algo se desvia do caminho, que faz outra coisa da coisa projectada. Falo da sala-de-aula e não da escola, propositadamente, servindo-me do desabafo de Philippe Meirieu, que afirma que «na escola tudo muda, mas na sala-de-aula tudo permanece igual» [1]. Por cá, muita coisa tem mudado, de facto, só que através de medidas fortemente contaminadas por processos burocráticos, que desrespeitam por completo o ideal pedagógico que é suposto promover. E, no entanto, só conseguimos responsabilizar o ministro por aqueles excessos, apesar de sabermos todos (só que o dizemos apenas para o lado), que a maior parte do trabalho burocrático, daquele que dói mais, é produzido nas escolas, impulsionado por pequenos poderes que gravitam nas direcções dos agrupamentos. A título de exemplo, veja-se: «Burocracia: há falta de sentido crítico nas escolas».

Ao "ouvir" João Costa, no que escreve, dizer que o artigo de opinião de António Nóvoa «engrandece um dos sistemas educativos mais centralizados da Europa», confirmo a ideia de que a percepção de quem fala do que fez dificilmente, ou mesmo nunca, é a mesma de quem observa a coisa feita (percepção do condutor que não se vê em contramão, da história contada por José Morgado?) e, por maioria de razões, a de quem sente os seus efeitos.  O Sr. Ministro parece não querer perceber que, em despachos e decretos, há apenas uma mão-cheia de coisas, que depois é preciso fazer acontecer. Acho que foi isto que António Nóvoa viu: «uma mão-cheia de coisas à espera de acontecer», verdadeiramente.[2] 

«Um erro frequente está em acreditar que a realidade obedece aos desejos» ‒ diz Gimeno Sacristán, qual pensamento mágico, acrescento eu [3] ‒ «(...) acreditar que se muda a forma de ser profissional do ensino com palavras de ordem (no caso presente: projectos de inovação pedagógica, flexibilidade curricular, cidadania, educação inclusiva, avaliação formativa e qualitativa, auto-avaliação, etc) sem mudar as condições de trabalho, as culturas das escolas, as expectativas sociais, é ficção». Faz-se da “autonomia” palavra de ordem e ela chega às escolas para permitir que as suas direcções possam juntar professores dos 2º e 3º ciclos e secundário, em reuniões intermináveis, na construção de projectos interdisciplinares feitos a martelo, enquanto se obriga os professores do 1º ciclo, que gerem um currículo naturalmente interdisciplinar, a parti-lo às fatias [Ver] ou a reunirem para decidir quantas letras as turmas do 1º ano terão de dar até ao Natal, como se todas fossem iguais e todos marchássemos ao ritmo marcado por um qualquer manual escolar, feito programa; Convidam-se escolas a aderir livremente a projectos de inovação pedagógica, mas esquece-se que quem decide que este ou aquele projecto se vai realizar numa escola, inserida num sistema hiper-burocratizado, é o director. E, então, o que era de adesão voluntária, logo passa a obrigatória. Veja-se, a título de exemplo, o «Projecto MAIA».

«(...) as dinâmicas de inovação devem ser construídas por adesão voluntária dos professoresno exercício da sua autonomia e liberdade (...)»  diz António Nóvoa. Não vejo como esta adesão possa ser voluntária, num modelo de gestão hierarquizado e super-burocrático. Mude-se o modelo de gestão, substitua-se o director, recuperando a figura dos conselhos directivos, do tempo da gestão democrática das escolas e, quem sabe, os professores não se sintam impedidos de exercer livremente a sua autonomia, vendo-se como autores na profissão que escolheram.  No caminho, quem sabe também, este modelo não venha a ser uma excelente lição de educação para a cidadania, para os nossos alunos (obviamente, na condição de se verem representados).

Talvez seja excessivo o tom e a forma usados por António Nóvoa, embora admita que o "cansaço" da ideia repetida, sem que dela resulte algo de novo, nos leve, por vezes, a dizer que a coisa feita não representa nada. É a memória de anos de cansaço que nos chega ao lugar (ponto de vista) onde nos encontramos, a reagir por nós. Porque «perguntar-se, a cada dia para que serve? é bem mais cansativo do que trabalhar duas horas a mais dominando o que se faz e sabendo que isso é útil e, ao mesmo tempo, reconhecido»[4]

Com este ambiente de revolta que se instalou, não sei se vale de muito pedir bom-senso, sobretudo se dirigido apenas a quem se sente tão cansado e é pelo cansaço aconselhado ‒ Até porque o cansaço não é bom conselheiro, e é difícil aceitar conselhos, neste estado. E, no entanto, é de bom-senso que, hoje mais do que nunca, mais precisamos. Será que se encontra à venda algum por aí?

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[1] Prefácio, in Bernard Rey [e outros], “As Competências na escola: aprendizagem e avaliação”, Canelas, Gaialivro, 2005.
[2] Dos primeiros versos do poema “Coisas à espera de vez”, de José Luis Barreto Guimaraes: "Há / uma mão-cheia de coisas à espera de / acontecer”. In "Aberto todos os dias", Lisboa, Quetzal, 2023: p. 31
[3] Educação e Realidade, 1996,Vol. 21, nº1 [Ler >>>]
[4] Fadiga. In PERRENOUD [e outros]. “A Escola de A a Z”, Porto Alegre: Artmed, 2005, pp. 41-43

sábado, 7 de janeiro de 2023

Se as políticas de educação não servem para abrir novas possibilidades de futuro, então para que servem?

Excertos de "Obrigado, Professores", artigo de opinião de António Nóvoa, publicado no Jornal Público, de 6 de Janeiro de 2023

Em Portugal, tem faltado um sentido de mudança, um debate, uma ideia de transformação e de futuro. Tudo se esvai numa gestão curta, sem visão e sem ambição. As políticas públicas têm sido fracas e desinteressantes. A Educação está sem governo.

Os processos de transformação e de metamorfose da escola não se constroem a partir de novas leis, reformas ou tecnologias, mas com a criação de condições de partilhar ideias e experiências, com liberdade e apoio dos poderes públicos (...), mudar de método na maneira de pensar, devolver o poder às escolas e aos professores, valorizar o trabalho de quem quer experimentar e fazer diferente, celebrar um pacto com os professores, atribuir-lhes uma remuneração adicional. 
(...)
Há quase vinte anos, assistimos a políticas educativas que, apesar da sua clarividência em muitos temas, procuraram ganhar legitimidade acusando os professores de imobilismo e cooperativismo. É de má memória a tese de que perder professores não seria grave se se ganhassem os pais e a opinião pública. Depois, entre 2011 e 2015, veio um governo explicar que havia professores a mais (...) e que educar não tinha qualquer ciência.

Nos últimos sete anos, o melhor que se pode dizer é que houve indiferença em relação aos professores. Iniciativas de atracção de jovens para a profissão? Nada. Políticas de formação de professores? Nada. Medidas de protecção dos professores e do seu bem-estar? Nada. Disposições para facilitar e desburocratizar o dia-a-dia dos professores? Nada. Valorização das carreiras docentes? Nada. Incentivos para projectos de inovação? Nada. Mas o pior é mesmo a falta de reconhecimento da profissão, a inexistência de uma ideia de futuro, o que causa um mal estar profundo. 

(...) as dinâmicas de inovação devem ser construídas por adesão voluntária dos professores, no exercício da sua autonomia e liberdade (...).

 Em Portugal, os movimentos recentes dos professores acordaram-nos. Estão a romper com a letargia reinante. Temos de lhes dizer "Obrigado". Porque com este gesto abrem um tempo de debates sobre os caminhos da educação. (...).

Se a política não serve para assumir uma maior responsabilidade pelo futuro, como escreveu Max Webber, então para que serve? Se as políticas de educação não servem para apoiar uma reflexão sobre os futuros da educação, para abrir novas possibilidades de futuro, então para que servem?

Os professores são decisivos para o nosso presente e para o nosso futuro. Nada os pode substituir. A transformação da educação começa com os professores. Merecem o nosso respeito e gratidão.

Original completo disponível em: Publico.pt >>>