sexta-feira, 30 de agosto de 2024

O crepúsculo da crítica

P
odemos, com razão, sentir-nos incomodados pelo facto de o termo “crítica” evocar vários significados diferentes. Está frequentemente ligado à existência de um perigo ou de uma ameaça: falamos de uma situação ou de circunstâncias críticas, de uma idade crítica ou de uma doença que atingiu uma fase crítica. Mas a crítica – neste caso o substantivo – é também a actividade que põe à prova uma realidade ou uma ideia: submete-a a um certo número de critérios para estabelecer a sua validade e os seus limites. É um processo de clarificação. “Crítica” e ‘crise’ têm a mesma origem semântica. O grego krinein significa tanto ordenar, peneirar, separar, distinguir como escolher, decidir. Numa “crise”, é preciso sair da situação crítica. Mesmo quando associada a uma crise, a crítica tem um valor positivo: não apenas como uma investigação ou exame para encontrar as causas (conhecido como diagnóstico), mas como algo que, paradoxalmente, decorre dela e conduz necessariamente a uma “saída da crise”, a um repensar do julgamento e, eventualmente, à consideração do novo. Uma crise só se torna catastrófica se lhe respondermos com ideias pré-fabricadas”, escreveu Hannah Arendt. Mais do que em qualquer outra circunstância, a crise exige a crítica. A crítica é também “decisiva”.



Neurociência cognitiva na sala de aula

Olivier Houdé

Ensinar é uma arte que deve basear-se em conhecimen­tos científicos actualizados. Ao fornecer informações so­bre as capacidades e os constrangimentos do “cérebro que aprende”, a psicologia experimental do desenvolvi­mento infantil e a neurociência cognitiva podem ajudar a explicar por que razão certas situações de aprendizagem são mais eficazes do que outras.

Em contrapartida, o mundo da educação, informado como está pela prática quotidiana – o estado actual da pe­dagogia – pode sugerir ideias originais para experimen­ta­ção. Desta forma, está a desenvolver-se um fluxo bidi­reccional do laboratório para a escola. Estas descobertas es­tão também a começar a ser ensinadas aos estudantes nos Institutos Nacionais Superiores do Ensino e da Educa­ção (Inspé) em França. Uma dinâmica semelhante está a ser estabelecida, da escola à universidade, na Bélgica, na Suíça e no Canadá (Masson e Borst, 2017), os países fran­cófonos abrangidos por este livro.

Esta atenção ao aluno e ao seu cérebro, em termos de expectativas, de limitações e de potencial de aprendiza­gem, inscreve-se no espírito dos pioneiros das novas pe­dagogias do século XX, como Maria Montessori em Itália, Célestin Freinet em França e Ovide Decroly na Bélgica (Houdé, 2018).

A loucura da neuroeducação é tal que é preciso acalmar as coisas desde o início. Foi o que fiz recentemente numa coluna da revista Cerveau & Psycho intitulada “L'école des cerveaux. Neuroeducação: magia ou ciência?" Refe­rindo-me ao livro best-seller de Céline Alvarez, Les Lois naturelles de l'enfant (Alvarez, 2016), recordei aos leito­res a necessidade de uma avaliação científica séria do im­pacto educativo “não laboratorial” de tais aplicações prá­ticas das ciências cognitivas e cerebrais nas escolas.

Se quisermos uma abordagem rigorosa, o método expe­rimental estrito deve ser aplicado aqui, na medida do pos­sível, nas ciências da educação ou da neuroeducação, tal como foi aplicado nas ciências médicas, desde Claude Ber­nard no século XI (actualmente, falamos de medicina ba­seada na evidência). Em primeiro lugar, deve haver um pré-teste, um pós-teste ime­diato e um pós-teste diferido, rigorosamente idênticos e, em segundo lugar, todo o pro­tocolo de ensino experimen­tal deve ser comparado com um grupo de controlo, em tudo idêntico. Este é o ABC da educação baseada em provas e em resultados de investiga­ção.

Com este objectivo em mente, o meu laboratório do CNRS, LaPsyDÉ, lançou uma grande experiência participa­tiva desde o início do ano lectivo de 2017 com o grupo Nathan e a sua plataforma digital Lea (L'école aujourd'hui), uma co­munidade educativa que já inclui mais de 80.000 pro­fes­sores de escolas de todo o mundo francófono.

Em 2011, o neuropsicólogo Xavier Seron escreveu um texto crítico sobre a neuropedagogia em relação ao seu domínio de especialização: a matemática (Seron, 2011). Nele, demonstra, de forma muito documentada, que a complexidade das interpretações cognitivas e comporta­mentais da activação cerebral, bem como as contradições entre os investigadores sobre essas mesmas interpreta­ções, continuam a tornar as transposições pedagógicas difíceis, ou mesmo arriscadas.

O psicólogo cognitivo Michel Fayol exprimiu reservas se­melhantes, sublinhando que a análise clássica do compor­tamento e do desempenho dos alunos, em acompanha­mento transversal (por grupo etário) e/ou longitudinal (as mesmas crianças ao longo dos tempos), é actualmente mais eficaz do que a abordagem, ainda demasiado hipo­tética, de olhar para o cérebro. Estas objecções estão re­sumidas, entre outras, num excelente Inquérito sobre a neuropedagogia da jornalista de ciências humanas Mar­tine Fournier (2016).

No entanto (e é o ponto de vista do professor que estou a tomar aqui), os professores, eles próprios dotados de um espírito crítico, que não tomam a (neuro)ciência pelo seu valor facial, que detectam contradições em relação à sua experiência no terreno (ou às suas leituras cruzadas), mas que estão ansiosos por formação, já têm um desejo legítimo de iluminar as suas práticas, de as melhorar, através de novos conhecimentos e teorias científicas (isto é, validadas, publicadas) sobre o cérebro dos alunos. Isto está intimamente ligado à análise tradicional do compor­tamento e do desempenho.

Nós, psicólogos e neurocientistas, temos portanto o de­ver de os esclarecer neste domínio (em conformidade com Ansari et al., 2012, e Sigman et al, 2014), reconhe­cendo (i) o grau de incerteza destes novos dados, (ii) a necessidade de uma avaliação científica dos métodos de ensino que deles se podem deduzir e, sobretudo, (iii) perspectivando-os com os conhecimentos e as teorias clássicas que já adquiriram (por vezes, neste caso, apoia­dos, qualificados ou, pelo contrário, invalidados), nomea­damente na psicologia do desenvolvimento infantil, da aprendizagem e da educação. Não se trata de reinventar ou revolucionar tudo, mas de completar o edifício histó­rico das ciências da educação, no sentido mais sólido do termo, ou seja, a neurociência actual.

Como Maurice Merleau-Ponty salientou no Collège de France em meados do século XX, trata-se de “ensinar a ciência em construção” (o lema desta prestigi­ada institui­ção). No início do século XXI, adoptemos a mesma abor­dagem das ciências cognitivas e do cérebro para os pro­fessores, desde o jardim de infância até à uni­versidade.

Contrariamente à “neurociência top-down”, ou seja, a neurociência imposta de cima para baixo por neurocien­tistas que não sabem fazer melhor, cada um dos autores deste livro, tal como eu, acredita numa neurociência edu­cativa baseada na investigação participativa (as aulas Cogni são um exemplo) e na partilha de conhecimentos (aqui as fichas técnicas, os conselhos práticos, os teste­munhos, etc.). Isto garante um empenhamento real e du­radouro dos professores através da investigação-acção e de um intercâmbio frutuoso entre o laboratório e a es­cola.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Neurociências e Pedagogia: Um diálogo de valores

A propósito do encontro de Philippe Meirieu com Grégoire Borst

A pedagogia e as neurociências podem realmente trabalhar em conjunto? Foi esta a questão debatida a 24 de janeiro pelo pedagogo Philippe Meirieu e pelo psicólogo neurocientista Grégoire Borst, a convite do CÉMÉA DA BÉLGICA, em associação com o OBSERVATOIRE DE LA RÉSILIENCE-BORIS CYRULNIK e o INSTITUT POUR LE DÉVELOPPEMENT DE L'ENFANCE ET DE LA FAMILLE (IDEF)

GRÉGOIRE BORST e PHILIPPE MEIRIEU partilham os mesmos valores. Assim que os dois oradores foram apresentados, JEAN-FRANÇOIS HOREMANS, o mestre de cerimónias da noite, sublinhou a sua convergência: "Os nossos dois convidados são humanistas". Desde o início das suas intervenções, ambos falaram da necessidade de atribuir aos professores a responsabilidade de decidir sobre o caminho a seguir. Os professores não são executores!

Para os dois protagonistas, o papel dos investigadores é claro: fornecer um corpus de conhecimentos científicos susceptíveis de esclarecer a complexidade de cada situação singular. Se era de esperar que PHILIPPE MEIRIEU salientasse que esta reflexão se baseia em valores, não esperávamos, necessariamente, que um neurocientista fosse tão insistente neste sentido.

A preocupação com os alunos e as famílias em dificuldade, a tomada de posição sobre a necessidade da heterogeneidade, a luta contra todos os determinismos, o respeito profundo pelos professores e pela profissão complexa que exercem (com particular atenção ao trabalho no jardin-de-infância), o respeito inquestionável pelos alunos e, mais amplamente, pelas crianças e adolescentes como sujeitos, a valorização dos alunos pelo investimento no seu do progresso e a rejeição do paradigma desmoralizador da comparação social, etc. GRÉGOIRE BORST não só enuncia estes valores, como também os relaciona, sistematicamente, com os trabalhos da psicologia cognitiva.

A IMPORTÂNCIA DA METACOGNIÇÃO

GRÉGOIRE BORST deu grande importância à metacognição. Do seu ponto de vista, não é acumulando mais horas de matemática (por exemplo), e cada vez mais precocemente, no percurso escolar de um aluno, que as escolas se tornarão mais "eficientes". Pelo contrário, isso tende a aumentar a ansiedade dos alunos mais desfavorecidos. Pelo contrário, é apoiando os processos metacognitivos, desde os primeiros anos do jardim-de-infância, integrando-os nas estratégias pedagógicas adequadas a cada um.

O investigador partilha connosco o essencial do trabalho do seu laboratório, apresentando os princípios e as funções da inibição: os alunos devem aprender a resistir aos automatismos do pensamento, reconhecendo as armadilhas das situações e das rotinas que temos tendência em activar se não tivermos cuidado.

PHILIPPE MEIRIEU, por seu lado, recordou um certo número de fundamentos da educação: não basta ensinar para que os alunos aprendam; cada situação pedagógica é única e o conhecimento científico só pode contribuir para isso (a inteligência das situações continua a ser uma "arte de fazer"); o princípio da educabilidade é o principal fundamento de qualquer adulto responsável pela educação; a superação das representações espontâneas exige a imposição de um adiamento do imediatismo e a autonomia intelectual educa-se através de estratégias diversificadas.

Em todos estes pontos, PHILIPPE MEIRIEU mostra que não existe qualquer barreira entre a pedagogia e as neurociências, mesmo que as duas abordagens possam levar à utilização de aspectos e conceitos diferentes.

HÁ NEUROCIÊNCIAS E NEUROCIÊNCIAS... 

PHILIPPE MEIRIEU destaca também as "diferentes sensibilidades". Assim, detém-se no conceito de desenvolvimento, caro a Jean Piaget. Teme  a abstenção pedagógica dos professores que esperam que o desenvolvimento faça o seu trabalho: "A pedagogia não é a arte do desenvolvimento pessoal, mas o trabalho da superação colectiva". Reitera também que não podemos reduzir um sujeito ao que observamos dele.

GRÉGOIRE BORST concorda, afirmando que o behaviorismo é uma armadilha em que podemos cair se não estivermos sempre conscientes dos seus riscos. Seguindo os passos de JEAN PIAGET, os investigadores do laboratório LaPsyDÉ (Laboratório de Psicologia do Desenvolvimento da Criança e da Educação da Universidade de Paris), de que este investigador faz parte, puderam demonstrar os importantes contributos, mas também os limites, da obra do famoso pai da epistemologia genética.

Os investigadores do seu laboratório ajudaram-nos a compreender como a concepção linear do desenvolvimento da inteligência, em etapas que se sucedem numa ordem imutável (segundo o "modelo da escada"), é uma teoria muito discutível. Em apoio a este trabalho, salientam até que ponto os erros de raciocínio podem ser tidos em conta, desde muito cedo, e que as grandes diferenças interindividuais se explicam pela capacidade, maior ou menor, de inibir os nossos automatismos e resistir às nossas rotinas.

PHILIPPE MEIRIEU prossegue nestas reservas com uma observação que pode ser resumida no facto de que "em educação, a solução não está contida no problema como a noz na sua casca, ela é o fruto da inventividade dos professores. [...] Embora, por vezes, existam remediações oportunas, as soluções pedagógicas procuram-se, inventam-se e (re)descobrem-se no património pedagógico, entre outros lugares".

A IMPORTÂNCIA DA CULTURA

Por fim, menciona os objectos culturais, fazendo referência a JEROME BRUNER, para quem a cultura dá forma ao espírito . Os conteúdos culturais não devem ser esquecidos em favor de mecanismos puramente cognitivos. Parece-me – depois de ter escutado GRÉGOIRE BORST – que esta "seta" tinha como alvo outros neurocientistas, menos preocupados com o lugar fundamental da cultura no percurso do aluno. 

Na parte final da sua intervenção, PHILIPPE MEIRIEU dirigia-se, sem dúvida, aos mesmos destinatários quando concluiu com uma preocupação: a imposição da "escola eficaz". Este paradigma utiliza os inquéritos internacionais e os seus resultados como instrumento de medida, de que reconhece o interesse algures, mas volta a chamar a atenção para a tendência destes de limitar a aprendizagem ao que pode ser observado.

Para ele, este é um sinal do comportamentalismo em que "alguns colegas estão a tropeçar". Esta visão do ser humano", diz PHILIPPE MEIRIEU, "ignora o projecto de cada um, a mobilização das pessoas através de intenções". A sua preocupação prende-se, portanto, com a deriva tecnicista, impulsionada por uma investigação centrada no que é estritamente quantificável e observável, "ignorando assim a intencionalidade em favor do comportamento".

O autor salienta igualmente as importantes diferenças que estabelece entre motivação e mobilização, sendo a primeira considerada, demasiadas vezes, como um pré-requisito da actividade e a segunda como aquilo que se pretende alcançar através desta.

UMA DISCUSSÃO EM VEZ DE UM DEBATE

GRÉGOIRE BORST esclareceu-nos sobre as funções que atribui aos instrumentos de medida, denunciando os testes institucionais (nomeadamente os nacionais), cujos resultados fornecem poucas informações úteis aos professores, uma vez que já são observáveis no quotidiano da sala de aula. Outras dimensões, como o bem-estar, a metacognição e a inibição (pensar contra si próprio), poderiam permitir prever a resiliência de um certo número de alunos e seriam úteis para os professores.

PHILIPPE MEIRIEU concluiu com uma das suas máximas: "é preciso medir com medida", e sugeriu três precauções a este respeito: não esquecer aquilo a que chama a “Jurisprudência de Binet” : os testes da escala métrica da inteligência só fazem sentido quando são bem sucedidos; é necessário distinguir e articular critérios e indicadores para fundamentar as nossas escolhas; e evitar utilizar a medição como um instrumento sistemático de comparação e de competição.

GRÉGOIRE BORST concordou, dando exemplos de práticas escolares que valorizam a comparação social, por vezes sem o conhecimento dos professores que as criaram. Alargou a questão da avaliação, insistindo sobre a variabilidade das capacidades de cada indivíduo (nomeadamente entre os 4 e os 11 anos), e o período da adolescência, que ainda anuncia mudanças profundas devido ao que chamou "uma reconfiguração completa do cérebro".

Por outras palavras, do ponto de vista cognitivo, nada é completamente certo. Estas posições não podem deixar de encantar o homem que fez do princípio da educabilidade uma das suas maiores batalhas.

Em certos aspectos, GRÉGOIRE BORST traz a sensibilidade de uma nova vaga de neurocientistas, como ALBERT MOUKHEIBER ou SAMAH KARAKI, que aceitam o seu compromisso com os valores. Isto não significa que tenham perdido o seu rigor científico. A visão cautelosa de GRÉGOIRE BORST sobre a capacidade das neurociências para transformar a educação é um lembrete bem-vindo da necessidade de trabalhar ao lado daqueles que se vêem, todos os dias, contra a parede.

Grégory Delboé