segunda-feira, 28 de julho de 2025

Educação para a cidadania: área disciplinar ou área curricular não disciplinar?

José Gil dizia em 2019 [*] «
que estamos a mudar de paradigma sem que tenhamos aquele para o qual queremos mudar. Isto em tudo, como é o caso da Educação para a Cidadania. Havia antes uma educação para a transmissão e acumulação na área das Humanidades, agora é da Cidadania. O que é que os professores vão ensinar?» NADA — 
atrevo-me a dizer — se insistirmos em tratar como disciplina o que não é.

Educação para a cidadania e educação para a transmissão e acumulação na área das humanidades são dois tipos de educação que funcionam em planos distintos, mas se tocam e completam [**]. Dizendo isto, parto do princípio de que a educação para a cidadania não veio (ou se veio não deveria ter vindo) para roubar o espaço ocupado por outras áreas, mas para alargar o espaço que o modo de transmissão e acumulação, próprio das diferentes áreas disciplinares, convida a alargar. Diria que a educação para a cidadania obriga-nos também a viver naquele espaço que vai daquilo que dizemos àquilo que fazemos, enquanto professores.

A Educação para a Cidadania não tem vocação de disciplina. É área curricular não disciplinar. Só foi “elevada” (ou melhor, despromovida) à condição de disciplina porque os 2º e 3º Ciclos e Secundário, por força da organização do seu currículo (um professor/uma disciplina), não se dão bem com conteúdos transdisciplinares. Ora, transformar em disciplina o que não tem vocação para o ser, só poderia dar no que deu. Poderia ser de outra forma? Podia. Mas isso implicaria libertar os professores das amarras burocráticas que os tolhem, que fazem da tradução de uma ideia numa prática um registo interminável de dados, em toneladas de papeis (ou pixels), que nem as teses de doutoramento mais complexas conseguem produzir. E que, já agora, ninguém lê.

No 1º Ciclo, a Educação para a Cidadania é área curricular não disciplinar, e nem por isso os conteúdos a trabalhar deixaram de ficar bem identificados. Cabe ao professor abordá-los pelo lado das disciplinas que melhor os servem; ou por uma situação problema que leva à construção de um projecto, não disciplinar, de natureza curricular (porque todos têm de ficar a saber o que aprenderam com isso) — há professores que abordam muitos conteúdos das áreas disciplinares, seguindo esta via. Se bem que, para isso, o façam de forma “clandestina”, para contornar o espartilho que é a organização da sua agenda semanal, por disciplinas, que lhes é imposta, segundo a fórmula em uso nos outros níveis de ensino, contrária à natureza do seu currículo. LER>>>

A dificuldade dos níveis de ensino pós 1º Ciclo, em se organizarem à volta de áreas curriculares transdisciplinares, já vem de longe. Do que me lembro, vem do tempo da “Área escola”, nascida da reforma ou revisão curricular (como lhe queiram chamar), de Roberto Carneiro, e depois rebaptizada de “Área de projecto”: primeiro foi a dificuldade no “encontro de vontades” entre disciplinas, e depois a avaliação a chegar como o “elefante na sala” a tolher tudo e todos. Acho que (ainda) não conseguimos ultrapassar isto. E não conseguindo…

Talvez seja mesmo como José Gil apontou: «Estamos a mudar de paradigma, sem que tenhamos aquele para o qual queremos mudar». Ou então temos, mas falta explicá-lo e encontrar forma de traduzi-lo numa prática. Porque, pelo que temos visto, aquilo que temos não serve.

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[*] Entrevista concedida ao D.N. 04.01.2019, conduzida por João Céu e Silva.

[**] Educação e instrução, na distinção tradicional, em relação às quais temos dificuldade em encontrar uma prática consequente que as faça uma só.

RELACIONADO COM ESTE TEMA LER: Em vez de educar para a cidadania, porque não educar para a felicidade? >>>

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Risco Político

Na personalidade de cada um de nós existe um defeito ao qual somos mais propensos, uma fraqueza própria, um traço que prejudica especialmente a harmonia das nossas relações com os outros. Para uns será a cobardia, para outros os ciúmes, para alguns a indiferença ou a falta de generosidade. Da mesma forma, escreveu Aristóteles, cada sistema político tem um risco característico que habita no seu seio e ameaça fazê-lo fracassar. De acordo com o filósofo grego, no caso da democracia, esse perigo chama-se demagogia

Demagogia é uma antiga palavra grega que significa «arrastar o povo». Para Aristóteles, esta descreve uma forma de governar na qual os argumentos são substituídos por apelos aos medos, preconceitos, amores e ódios dos cidadãos. Implica abordar os debates através da linguagem dos sentimentos e impedir, inclusive, a possibilidade de uma argumentação serena sobre a ação política. Os demagogos representam-se como salvadores em momentos de crise acentuada e, se conseguirem conquistar o povo, podem mudar o rumo do regime político para derivas mais autoritárias. Foi Aristóteles quem individualizou e explicou pela primeira vez a demagogia, definindo-a como a «forma corrupta ou deteriorada da democracia». Aristóteles achava que as fórmulas através das quais os povos se organizam são mutáveis e dinâmicas, de maneira que toda a conquista se pode alcançar, mas também é reversível, estando em permanente risco. Por isso, é saudável desconfiar de quem, na contenda política, recorre às emoções primárias para ser o primeiro.

Irene Vallejo
Alguém falou sobre nós — Ensaios sobre o mundo actual, à luz da antiguidade clássica. 
Bertrand Editora, Lisboa, 2023

terça-feira, 22 de julho de 2025

A escrita como fala, que dá tempo ao pensamento, e o elogio do texto livre

«Mesmo que mais ninguém leia, vale mesmo a pena escrever, porque faz com que nos tornemos leitores de nós próprios» — leio em “Como escrever”, de Miguel Esteves Cardoso [*]. Uma prática que cultivo, porque me incutiram a escrita como forma de pensar. «Porque escrever é a única maneira de saber (ver) o que está dentro da cabeça» — leio também em M. E. Cardoso. Eis uma bela ideia... LER MAIS>>>

segunda-feira, 21 de julho de 2025

«Como escrever» — um livro que todo o professor deveria ler

Este é um livro que todo o professor deveria ler ou, pelo menos, folhear. É um livro feito de muitos «lugares comuns», com muita pedagogia dentro. Alguns são mesmo lugares comuns, e outros tendem a ser comuns depois de lidos, expressões que poderiam ter saído da cabeça de qualquer um, mas não saíram: saíram da cabeça de Miguel Esteves Cardoso.

Isto, que poderia ser o grande defeito deste livro, é, afinal, a sua grande virtude. Não quer ser «científico», com listagens das regras com que se fazem escritores. Fala apenas de como escrever.

Ninguém ensina a ser escritor. Escolas de escritores é coisa que não existe. O que existe são escolas que ensinam a escrever (e será que, quem aprende, escreve?). Ser escritor depende das circunstâncias que rodeiam quem escreve. Mas nada disto é novidade — isto, sim, é lugar comum, mesmo. Mas nem por isso menos válido.

«Para começar a escrever, tem de desfazer o trabalho repressivo que fizeram sobre si», diz M. E. Cardoso. Um trabalho repressivo que começa na escola! Só assim se compreende — diz-se —, que depois de 12 anos de escola, haja tão pouca gente que escreve. Se outros motivos não houvesse para um professor ler este livro, este já seria motivo suficiente.

Daniel Lousada

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Proibição do telemóvel no 1º Ciclo: uma medida escusada e de propaganda pura

Quando soube da intenção do Ministério da Educação de proibir a entrada do telemóvel nas escolas do 1º Ciclo, liguei a professores que conheço, para saber quais os problemas que o seu uso levanta nas suas escolas. As respostas vieram apenas confirmar o que eu já intuía: todas eles responderam que as crianças não levam telemóvel para a escola! Levam apenas o Kit digital, quando lhes é pedido que levem. 

Sou claramente contra a proibição da entrada do telemóvel no 1º Ciclo, o que não quer dizer que seja a favor do seu uso na escola! Confuso? Eu explico. 

Quando falamos de crianças do 1º Ciclo, é de crianças com idades compreendidas entre os 5/7 e os 9/10 anos que falamos. Serão pouquíssimas as crianças deste nível de escolaridade que têm telemóvel ou, tendo, o levam para a escola. E as que levam, é porque os seus pais se sentem confortáveis com isso. Então, nesta situação, cabe ao (a) professor(a) explicar que, tal como no cinema ou no teatro, ela está num espaço onde não cabe o uso do telemóvel. E então tem a oportunidade de explicar a função importantíssima da tecla on/of (que, provavelmente, os seus pais e a maioria dos adultos não conhece) e ensinar a usá-la.

Do lugar onde me encontro (de alguém que deixou a profissão de professor vai para vinte anos), olho para esta interdição e o que vejo é a cena muito comum, em alguns espaços comerciais frequentados por crianças irrequietas, em que os pais, incapazes de exercer a sua autoridade, ordenam aos seus rebentos: «está quieto que o senhor ralha».

Finalmente os professores podem dizer aos seus alunos: não mexam nisso que o senhor ministro ralha.

Continuamos a viver contaminados pelo «síndrome da calculadora». Lembram-se? Jovens universitários, emboscados pelas televisões à porta da universidade, mostram não saber a tabuada, e é aos miúdos do 1º ciclo que querem proibir o uso da calculadora. Tivessem feito aquelas «emboscadas» à porta das escolas do 1º ciclo e teriam verificado que os miúdos sabiam muito bem a tabuada. Algo se perde no percurso do 1º ciclo à universidade, mas nunca é isso que é chamado ao debate.

PARA VER MAIS SOBRE ESTE ASSUNTO, ACEDER AO SEPARADOR, O DIGITAL E A PEDAGOGIA >>>

segunda-feira, 7 de julho de 2025

As falhas vocabulares de hoje e o (elogio do) ebook

Recebi de um amigo uma colecção de palavras, agrupadas sob o título Aquilinadas
 que ignoro, retiradas do romance Lápides Partidas, de Aquilino Ribeiro. Por momentos, vejo-me recuar ao tempo do liceu, a sublinhar palavras desconhecidas nos textos do manual escolar, para depois procurá-las no dicionário: um trabalho de casa, ao tempo, muito comum.

Diz-se dos jovens de hoje, que têm falta de vocabulário. Mesmo a propósito, por coincidência ou não, leio Mario Quintana dizer, em Tristes histórias, que «há palavras que ninguém emprega. Apenas se encontram no dicionário como velhas caducas num asilo. Às vezes uma que outra se escapa e vem luzir-se desdentadamente, em público, nalguma oração de paraninfo. Pobres velhinhas… Pobre velhinho!»

Reparo na expressão oração de paraninfo. Desconhecendo o significado da palavra paraninfo atribuo à expressão o mesmo sentido da expressão oração de sapiência — tentativa de chegar ao sentido da palavra pelo contexto, e prática muito comum do leitor que foi treinado a não deixar que uma palavra desconhecida impeça o acesso ao sentido da expressão. Errei o alvo, ainda que tenha andado lá perto: A oração de sapiência é um discurso que inaugura o ano lectivo, enquanto que a oração de paraninfo pode ser um discurso proferido numa cerimónia de formatura.

A edição do livro de Mario Quintana é em formato digital, pelo que bastou-me seleccionar a palavra paraninfo, para ter acesso automático ao seu significado, disponibilizado pelo leitor digital, e a um pequeno texto sobre a expressão oração de paraninfo, gerado por um assistente I.A.. Fosse o livro em papel e eu teria, certamente, seguido em frente: afinal o desconhecimento da palavra não me impedia de aceder ao sentido do texto. Teria, talvez  — se a curiosidade a isso me levasse — sublinhado ou anotado a palavra, numa outra «aquilinada», para procurá-la quando estivesse perto de um dicionário.

«Caderno de significados» como metáfora dos 
instrumentos pedagógicos que fomos desvalorizando
Alguém da geração dos cadernos de significados, do tempo em que a palavra facilitismo não tinha sido inventada, faça o exercício de imaginar, nesse tempo, um manual escolar com todos os significados à distância de um clic. Mantinha, certamente, a utilidade do caderno de significados, mas não obrigaria, o uso do dicionário, apenas pelo prazer de fazer da compreensão uma tarefa difícil e do prazer do texto algo distante— a palavra facilitismo entrou na ordem do dia. E entrou com tanta força que até o simples movimento de procurar fazer fácil a compreensão de um texto é logo apelidada de facilitista.

Acho que grande parte do problema veio daqui: de se ter associado o digital ao que é fácil, À ideia de que o digital entrou na escola para agradar aos jovens. Uma ideia que o movimento que se convencionou de transição digital, que a escola acolheu (acriticamente), só agravou — se é para transitar, vamos a isso: transite-se. Não, não se transita. Acolhe-se, quando acrescenta qualidade ao que vínhamos fazendo até então, quer no processo de produção, quer no produto.

Pegando no exemplo do caderno de significados como metáfora dos instrumentos pedagógicos que se foram perdendo (porque desvalorizados), atrevo-me a dizer que o problema, hoje, está naqueles que elegem o digital como concorrente do papel. Ora, o digital não é concorrente do papel e o «caderno de significados» só perde a sua importância se o professor deixar.* O papel continua a fazer parte indispensável do movimento da leitura à escrita (abro aqui um parêntesis para recordar que a leitura não é fim, é meio: o fim é a escrita e, quando lemos, a escrita precisa estar no horizonte — ler como um escritor, defende Francine Prose**). Se antes se copiava do livro ou se escrevia a partir das leituras que éramos levados a fazer, nada impede, hoje, que se faça o mesmo movimento a partir de um ebook. Há todo o mundo da escrita para descobrir, no qual o analógico é indispensável.

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Bastou a Sué­cia travar às quatro rodas, na digitalização dos ma­nuais escola­res para que, entre nós, se levantasse um coro de vozes a reivindicar idêntica decisão. Como se, o livro em papel, só consiga entrar na sala de aula através do ma­nual escolar... Esquece-se que, o que se passou na Suécia, foi o resultado de uma soma de excesso, que valeria a pena analisar, não vá começarmos nós, agora, a soma de outros excessos mas de sentido contrário.

** Francine Prose, Ler como um escritor, Lisboa, Casa das letras, 2007

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sábado, 5 de julho de 2025

Da (in)disciplina — Princípio da compreensão.

Pedro D’Orey da Cunha
«Um excelente decálogo — aqui apenas o princípio nº 5 — de Pedro da Cunha — que foi Secretário de Estado da Reforma Educativa, no tempo de Roberto Carneiro, (1989), que deveria ser lido com proveito por todos os professores, diretores and so on...» (José Matias Alves, na sua página do Facebook).

5. O princípio da Compreensão

Diante de um conflito, um problema disciplinar, uma perturbação, é essencial que o professor se pergunte a si mesmo, antes de mais, de quem é o problema, ou melhor, quem sofre com o problema. A estratégia adoptada depende inteiramente da resposta dada. Assim, se quem está a sofrer é a criança, esta precisa de compreensão, não de ralhete. Mas se quem sofre é o professor, ou outros alunos, então a criança não precisa de compreensão, necessita de confrontação.

Vejamos a diferença. O João trabalha animado na sua carteira durante a aula de Matemática. De repente, frustrado e raivoso, fecha o livro com barulho, põe os braços na carteira e esconde a cabeça entre os braços. A professora tem duas alternativas: ou vai ter com ele e ralha «porque distraiu os outros», ou põe-lhe a mão no ombro e diz-lhe baixinho – «este problema é difícil não é?» .Creio que não hesitaríamos em escolher a segunda alternativa. É óbvio que quem está a sofrer é o aluno, que ele simplesmente exprimiu a sua frustração, e que o que é necessário é a compreensão do professor. 

Podia afirmar sem hesitação que mais de metade dos problemas disciplinares são deste tipo. O que os alunos necessitam, não é da descompostura, nem do conselho, nem que o professor se lhes substitua. O que os alunos necessitam é da escuta do educador. Sentindo-se compreendidos e aceites, os alunos abrem-se então, enchem-se de coragem e retomam o caminho. Mas repare-se bem: compreensão não significa substituição nem desistência. O professor não se substitui o aluno, não o dirige, não lhe diz que desista, aceita-o na sua dificuldade; e é esta aceitação que dá ânimo ao aluno para autonomamente prosseguir o trabalho.
Este princípio é baseado nas teorias do psicólogo Carl Rogers, que mostrou bem o efeito terapêutico da compreensão e da escuta activa, lhe definiu bem as características e estudou os seus efeitos e aplicações. Apropriadamente, caracterizou a sua terapia como não directiva, e o seu efeito principal como promotor da autonomia do sujeito.

Infelizmente, muitos educadores aplicaram a teoria indiscriminadamente a todos os problemas, não verificando que Carl Rogers, como psicoterapeuta, tinha somente em vista os seus clientes, os quais por definição se dirigiam a ele porque sofriam ou estavam ansiosos. Nos casos em que o aluno não sofre, mas até goza com fazer sofrer os outros, quando ofende o professor, quando segue alegremente os seus impulsos, então não precisa de compreensão, precisa de confrontação, decidida, exigente, com autoridade.