terça-feira, 27 de outubro de 2020

Escola ou ensino doméstico *

Philippe Meirieu
Uma leitura para o caso português de Luís Goucha

Em França, num discurso ao país, o Presidente da República “decretou guerra” ao ensino doméstico. Uma voz levanta-se, a de Philippe Meirieu. Ele quer “limitar, o mais possível”, o ensino doméstico. Con­tudo há vários pedagogos que se manifestam con­tra esta deci­são, e provavelmente menos a favor.

Não podemos de forma nenhuma estigmatizar as famílias que fizeram esta opção pessoal, quase “intimista”, do ensino em casa. No entanto, com todas as suas lacunas, a importância da escola mantém-se incontornável.

A Escola é, antes de tudo, um lugar indispensável à socialização e que, de algum modo, faz uma rup­tura simbólica com a família. Não se trata apenas do lo­cal onde as crianças vão para aprender. É um local onde elas vão aprender a aprender com os ou­tros, para en­contrar pessoas vindas de outros sí­tios, com histó­rias diferentes, com outras convicções que não só aquelas existentes nas suas famílias.

Este encontro com a alteridade e a diferença é es­sencial para o desenvolvimento da criança. Em ter­mos de abertura de espírito, o colectivo escolar tem virtudes que o ensino familiar não permite, ou só muito excepcionalmente terá condições de ofe­recer Percebemos as objecções das associações de pais, que afirmam que a escola não tem suficiente­mente em conta as aspirações dos seus filhos no que toca à criatividade, ao contacto com a natureza e de não estar atenta aos problemas individuais, aos handi­caps de alguns que têm mais dificuldade em acom­panhar uma turma. E isso é verdade!

Se na ideia do Presidente francês a escolarização, e não só a instrução, se torna obrigatória, vai ser pre­ciso que a Educação Nacional faça um esforço real em direcção de todas estas crianças que hoje têm escola em casa. Trata-se, aqui, de ter mais em conta as suas personalidades e singularidades. Me­lho­rar também os contactos, a “mistura entre to­dos”.

A aprendizagem reduzida ao contexto familiar têm o pro­blema de não oferecer um colectivo, o grupo de que a criança precisa para se realizar. Ela tam­bém precisa de al­guém que não seja um familiar para incarnar a transmissão de conhecimentos de uma forma rigo­rosa: é importante distinguir o re­gisto familiar, que é do domínio afectivo, e o re­gisto das aprendizagens cognitivas, mesmo que não exista nenhuma bar­reira entre os dois.

O que estrutura psicologicamente a criança é: “os meus pais gostam de mim, fazem-me descobrir aquilo que eles gostam; o meu professor faz-me descobrir um mundo de modo mais amplo, independentemente das escolhas da minha família”.**

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* No original: “Face à l'instruction à domicile, Phili­ppe Meirieu plaide pour l'école, "rencontre de l’alté­rité et de la différence". LER >>>

** Vejo a família como algo próximo de uma comunidade. (…) O que é decisivo aí são as relações afectivas. (…) O que une uma comunidade são as forças centrípetas que fortalecem o vínculo em torno de algo que aproxima as pessoas.

Entretanto, a sala de aula não é uma comunidade, não pode ser uma comunidade, não deve ser. A sala de aula é uma sociedade. O que acontece aqui pode ser visto como um sintoma da sociedade em que se insere. A educação em ambiente familiar não permite a vivência destes sintomas, ou não permite com a mesma intensidade. 

domingo, 18 de outubro de 2020

Crenças e práticas profissionais dos professores *

François Jarraud
François Jarraud 
Versão portuguesa de Daniel Lousada
Porque é que os professores acreditam que algumas práticas são melhores do que outras? Porque criticam, ou mesmo recusam, certas práticas, cuja eficácia foi [por vezes] demonstrada pela investigação? Estas são questões que agitam os responsáveis pelos sistemas educativos. E uma vez que as suas decisões procuram ser necessariamente racionais, mesmo "científicas", são as "crenças" dos professores que se lhes opõem. A Sèvres International Review of Education [No. 84] publica um número muito interessante que dá uma visão global sobre a formação de professores. Estes professores são loucos ou são incondicionalmente fiéis aos seus valores?

Professores confrontados com imposições de mudança

Géraldine Farges, que coordena este número, está bem ciente de que a palavra "crença", aqui identificada com as convicções pedagógicas dos professores, é problemática. Os artigos desta edição visitam 10 países com sistemas e práticas diferentes: Estados Unidos, França, Coreia do Sul, Tunísia, Brasil, três países da África Ocidental, Canadá, Suíça, Bélgica e Polónia. Na Polónia, "para compreender a resistência dos professores polacos ao conhecimento que lhes é ensinado na formação", o autor fala de teorias pessoais. Na Tunísia e na África Ocidental, fala-se de "crenças ancestrais" ou "tradicionais", na Suíça "crenças prévias", na Coreia do Sul "crenças epistemológicas", nos Estados Unidos "referências culturais" e em França "normas".

Por detrás desta gama de fórmulas, pode-se adivinhar toda uma sociologia da situação dos professores na sociedade. Porque a questão subjacente a esta questão é a da aplicação das concepções decididas para os professores. Como diz G Farges, "pensadas em conjunto, as crenças e práticas dos professores permitem-nos dar um novo olhar à mudança educacional". Pois esta "resistência" [palavra, por vezes, utilizada nos artigos] parece universal.

Entre resistências e apoios à formação?

Um óptimo exemplo é dado pelas escolas "sans excu­ses", em expansão nos Estados Unidos, graças ao financiamento de grandes fundações. Estas escolas, privadas [charter schools] escolarizam crianças em risco de minorias étnicas. Praticam uma disciplina com punições que seriam consideradas inaceitáveis entre nós. Empregam jovens professores, obrigados a seguir protocolos muito rigorosos e precisos, à imagem do que a “Agir pour l'école”, apoiada financeiramente pelo Ministério da Educação, está a tentar praticar em França.

No entanto, explicam JW Golann, A Weiss e K Gegenhei­mer, nem todos os professores respeitam os currículos; há os conformistas que aderem totalmente ao tipo de educação destas escolas; há os imitadores incapazes de entrar no modeloexistem conciliadores que adaptam as práticas da escola aos seus valores; finalmente, existem os resistentes. Os autores concluem convidando os futuros professores a descobrir o seu perfil.

Na Polónia, E Filipiak mostra como as crenças pessoais dos professores podem ser um apoio para a sua formação. "Para que os professores repensem a escola, assumam o desafio de abrir a cultura escolar a outras perspectivas e se envolvam no processo de mudança, é necessário preparar o terreno, trabalhar com as suas teorias e crenças pessoais... Nesta abordagem, revelou-se importante fornecer ferramentas conceptuais, que permitissem aos professores participar nos debates, contribuindo para a reinterpretação e mudança das suas próprias práticas. Os exemplos de projectos desenvolvidos demonstraram que, ao criar uma comunidade de aprendestes, analisando e participando em práticas semelhantes, os professores desenvolvem modos de entendimento partilhado, formas de pensar e agir colectivamente: um sentido de acção".

A resposta de uma profissão submissa

Crenças, teorias pessoais, normas…, Maurice Tardif [do Quebeque] dá-nos as chaves de uma análise sociológica para compreender o que está a acontecer, esta famosa "resistência à mudança". Para ele, a questão coloca-se porque os professores se tornaram profissionais submissos. "As crenças colectivas [de professores] não são verdadeiras nem falsas porque a formação de professores não é científica, como as permanentes controvérsias a seu respeito mostram: é uma construção social, produzida por vários grupos e organizações [estado, universidades, autoridades escolares e patronais, sindicatos de professores e ordens profissionais. fundações privadas, etc.] que tentam defini-la de acordo com as suas perspectivas e interesses”. Para ele, "estas crenças testemunham (...) a situação so­ciopro­fissional dos professores em relação a uma formação sobre a qual têm muito pouco controlo, e que sempre foi definida e imposta pelas autoridades políticas e educativas, bem como pelas elites académicas. Neste sentido, estas crenças exprimem a racionalidade de uma profissão submissa, cuja função é formar outros, mas que tem muito pouco a dizer sobre sua própria formação".

Maurice Tardif mostra como a profissão de professor se tornou uma profissão amarrada às imposições da sua hierarquia. A peculiaridade de uma profissão submissa é que a sua própria formação lhe escapa. "Os milhares de estudos dedicados, desde os anos 80, aos conhecimentos profissionais dos professores, indicam que estes assentam em bases que são simultaneamente incertas e heterónimos para as suas práticas profissionais (…). Observa-se que a maioria das categorias de conhe­ci­mento [de currículos, objectivos educativos, contexto social, disciplinas a ensinar, etc.] provém de grupos de actores [académicos, investigadores, funcionários públicos, especialistas em currículos, etc.] que não são professores e que não pertencem, directa ou directamente, à profissão docente". Numa profissão sem voz, os conhecimentos específicos, que poderiam afirmá-la, não contam.

"As crenças colectivas dos professores provêm de uma espécie de "racionalidade cognitiva" [Boudon, 1993], através da qual os professores exprimem as razões para acreditar no que acreditam, com base na sua experiência enquanto professores. Os professores, em geral, acreditam que aprenderam a ensinar, principalmente, através da sua experiência de trabalho escolar, e não através do que aprenderam nas escolas de formação. Muitos professores acreditam, também, que a competência pedagógica é principalmente uma questão de personalidade, talento e mesmo vocação, e não de formação. São uma resposta às relações de submissão, em que se sentem amarrados.

Tensão entre eficiência e submissão

Françoise Carraud prefere encarar a questão a partir das representações, que apoiam as opções que os professores experimentam: o que é para eles um "bom trabalho"? E isto leva-a a analisar duas situações que todos os professores conhecem. "Ter uma turma que funciona", constituída por alunos que garantem o sucesso dos professores, na sua missão de transmissão do conhecimento. Ter uma turma que funciona permite-lhes afastar o “fantasma da (sua) impotência. A segunda situação é aquela em que se tenta medir o grau de eficácia que pode ser atribuído aos professores e às suas práticas, de acordo com contextos so­cio-geográficos. Quando se pretende avaliar este grau de eficácia, os professores refugiam-se no seu próprio sentimento de eficácia, enfatizando, antes de mais, a eficácia de uma "turma que funciona. E aqui surge “o debate entre o padrão de eficácia, que é quase impossível de medir, e o de utilidade. Ser professor é ser útil, útil às crianças e adolescentes que, sem o professor, não conheceriam a ‘cultura’. Esta noção de cultura, que é polimorfa e instável, também é debatida, mas permanece no interior da profissão docente".

Géraldine Farges conclui. "Se as crenças profissionais dos professores forem consideradas como um factor determinante no desenvolvimento das suas práticas, ou mesmo a serem tomadas como ponto de partida para actividades de formação, estas, quer individuais quer colectivas, devem também cumprir as directrizes institucionais. Daqui resulta, que as crenças dos professores são centrais na construção da profissão docente, mas também marginalizadas pelos sistemas educativos, que não toleram uma tão grande diversidade de crenças. Há, portanto, aqui um ponto de tensão: com maior autonomia, os professores sentem-se mais eficazes [e acreditam mais no que fazem], correndo o risco de se afastarem do projecto político em que a sua acção educativa está mais globalmente enraizada". Esta é, mais do que nunca, a questão.

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* Ler versão original: Croyances et pratiques professionnelles des enseignants”, L’Expresso, Le Café Pédagogique >>>

sábado, 17 de outubro de 2020

Em defesa de uma escola para este século *

Rodrigo Arénas
Rodrigo Arénas

Versão portuguesa de Daniel Lousada
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Implacável, impiedosa, esta crise pôs em destaque todas as fraquezas de um sistema de ensino obsoleto. De certa forma, deixados à sua sorte, dependentes dos recursos familiares, a maior parte dos estudantes viram o seu per­curso escolar condicionado pelo ambiente económico e social das suas famílias. Neste caos, vimos sobretudo uma escola desadequada ao mundo em que vivemos, ultrapassada pela marcha do tempo.

O modelo escolar está num impasse. A escola já não ­responde aos problemas que as crianças enfrentam, se é que alguma vez respon­deu.

O papel da educação está a ser profunda­mente ata­cado. Quer a consideração da educação como um pro­duto, que a escola comercializa, como a proletarização da profissão docente, estão a perturbar os fundamen­tos da instituição escolar. Assiste-se, hoje, à ideia de que os professores podem ser restaurados à sua “an­tiga gló­ria”, como se houvesse alguma glória nisso!

A escola está ligada à República e aos seus valores; não existe apenas para aprender a ler, escrever e contar. Ela deve, acima de tudo, proporcionar às crianças os meios de que estas neces­sitam para agirem no e sobre o mundo.

A tecnologia digital está também a mudar a escola que, ao resistir [por impulso] à mudança, é incapaz de fornecer o básico. Há toda uma aprendizagem por fa­zer! Sem uma estrutura consistente que os apoie, os es­tudantes são transformados em utilizadores de uma tecnologia que os domina. Durante o confina­mento, os professores, desprovidos da forma ar­tesanal que carac­teriza a sua profissão, viram-se apenas treinadores de aplicações e software. E, no final, o que se viu foi o sec­tor privado a engordar à custa dos défices do sistema Nacional de Educa­ção

A escola tem, por vezes, regras muito próximas da pri­são. É uma escola que controla o próprio corpo. Um bom exemplo disso é o acesso aos sanitários: em França [e entre nós não faltam exemplos disso], as cri­anças vão às casas de banho, quando as regras o per­mitem e não quando pre­cisam. Temos escolas que não­ conseguem sair do modelo de or­ganização que Fou­cault (d)escreve: professores que vi­giam a classe de acordo com regula­mentos nada ami­gáveis dos alunos. Obvia­mente, há profes­sores que re­sistem a isto. É o sis­tema que está a falhar.

Precisamos de quebrar o modo como a escola se es­trutura. Precisamos de uma escola construída para os mais frágeis; uma escola capaz de orga­nizar aulas que integra vários níveis, que ensina as crianças a en­contrar so­luções através da colaboração e da solidarie­dade. Pre­cisamos de uma escola que pro­cura a felicidade das cri­anças, que sabe como ir para além do quadro disci­pli­nar. Uma escola que saiba reagir à pressão de tre­mendas desigualdades sociais.

As desigualdades sociais são o principal problema da escola e estão no topo da lista de preocupações dos pais. E, no entanto, parece que aceitamos a ideia de que a escola não tem como agir nesta área. Nalguns dis­cursos, por vezes, a desigualdade social é vista mais como algo que nos desculpabiliza, pelo que não faze­mos, do que um desígnio à volta do qual nos deverí­amos mo­bilizar. Ora, aceitar a ideia de que a escola faz apenas o que pode nesta área, é abrir a porta aos que pensam que, na es­cola, é cada um por si.

Estamos numa encruzilhada. Nunca, como hoje, os de­safios do desenvolvimento sustentá­vel foram tão es­tru­turantes. Quem pode dizer que a ecologia não é uma questão central para as gerações futuras? Mas a escola não res­ponde a esta pergunta. O mesmo se aplica à tec­nologia digital. Se a escola não se preparar para ela, en­tão será o GAFAM ** que prevalece.


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* No original, Plaidoyer pour une Ecole du XXIème siècle”. Entrevista publicada no “Le Café Pédagogique", aqui condensada em forma de artigo.

** Sigla para Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, as cinco maiores empresas da Internet, cujos orçamentos correspondem ou excedem os dos estados mais ricos do mundo...

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Compreender a utilização do digital pelos jovens

Bruno Devauchelle
Versão condensada em português de Luís Goucha
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No início deste século, quando começamos a inquirir sobre este fenómeno, constatamos que, mesmo nos meios mais desfavorecidos, todos os jovens procuravam o acesso aos meios informáticos e à internet. Quase todos, de um modo ou de outro, estavam regularmente em contacto com estas tecnologias.

Hoje, quando se fala de fractura digital e info-exclusão, esquecemos que o acesso à informática e a utilização destes meios são não só uma marca social mas também um fenómeno de aculturação e, mais importante, de inserção social.

Tudo passa, inicialmente, por uma prática individual e, depois, pela comparação e trocas entre pares. Quando questionados sobre como é que tinham desenvolvido as suas capacidades na utilização do tratamento de texto e envio de mensagens, estes jovens responderam sempre: desenrascámo-nos! Um entusiasmo motivador, mas sobretudo uma aculturação, que não passava pelo domínio das técnicas, mas antes de tudo pela compreensão do que está em jogo: a exclusão social, na maior parte das vezes. Então partiam, simplesmente, à procura, sem bússola, da escola, pelo menos.

As redes sociais digitais estão aí, os smarttphones generalizaram-se, o acesso à web democratizou-se. E, no entanto, parece desconhecermos o tipo de relação que os jovens têm com a sociedade, através dos meios digitais. Multiplicam-se as análises acusatórias, enquanto que, ao mesmo tempo, a indústria e o comércio, percebem perfeitamente as forças e as fraquezas deste estado de coisas: por um lado, a atracção por estes objectos e, por outro, a fraca resistência a um consumo generalizado [publicidade, manipulação] que relativiza não só as técnicas, como também as suas múltiplas utilizações.

O professor enfrenta jovens para quem a utilização dos meios digitais são uma banalidade. Está perante duas linhas de força: as imposições dos programas oficiais, e as competências demonstradas por eles. O fosso entre estas duas realidades, tantas vezes falado, revela a incapacidade da escola em abandonar “o modo de cumprir” os programas, as regras oficiais, nem sempre de acordo com as necessidades dos alunos.

Em 2010, um programa francês [Curiosphère], já desaparecido, dava conta da nova vida relacional introduzida pelo uso do telemóvel, e das questões que isso colocava à escola. Dez anos depois, constatamos a ausência de transformações, ou de decisões políticas, para além da inquietante proibição de utilização de equipamentos pessoais, nos estabelecimentos de ensino, por clara falta de visão – Resultado, apenas, da agitação mediática à volta do digital entre os jovens, feita a partir de notícias espectaculares [especulativas, na maior parte dos casos], realçando o lado negativo do seu uso, evocando como verdade, para apoiar a análise, uma ou outra investigação científica, que deveria ser, apenas, ideias a discutir.

Foi preciso o confinamento desta Primavera, para nos confrontarmos de novo com a relação entre as práticas digitais dos jovens e o mundo escolar. Se muitos educadores reivindicam a escola como um lugar de interacção e de construção social, esquecem-se quase sempre de perguntar “mas como?”, tendo em conta o contexto e as práticas sociais. Com os meios digitais, as pessoas e em particular os jovens [categoria que de forma nenhuma é homogénea] desenvolveram novas formas de construção da sua sociabilidade. Ora, a sociedade que se construiu com esta escola, instituiu formas de relacionamento social que nunca tiveram em conta estas transformações [O choque do confinamento foi um parêntesis e um revelador do que se passava]. Para se levarem em conta estas novas transformações, vai ser preciso aprofundar a maneira como os jovens, as crianças, as famílias, utilizam estes meios no seu quotidiano. Da mesma maneira que os professores devem ser convidados a melhor conhecer os seus alunos, no modo como estes se projectam, através dos dispositivos tecnológicos que utilizam.

Falta, muitas vezes, a atitude de observação e analise colectiva baseada em referências fundamentadas, mesmo que discutíveis. Ora, neste domínio, a pedagogia da controvérsia é uma óptima base de trabalho para pais e professores.

domingo, 4 de outubro de 2020

FACE AO VÍRUS DO INDIVIDUALISMO, DEIXEMO-NOS CONTAGIAR PELOS IDEAIS DA “EDUCAÇÃO NOVA”*

Philippe Meirieu
Versão condensada, em português, de Daniel Lousada **

Este é um tempo de humildade, mas também de solidariedade e determinação. A nossa sociedade precisa de uma escola pública onde possamos aprender em conjunto, e de um trabalho incansável, que nos envolva a todos, no desenvolvimento do desejo de aprender.

A crise sanitária que atravessamos terá sem dúvida um efeito profundo sobre nós, de que teremos ainda lições a retirar: lições de humildade perante a descoberta da imensa fragilidade do nosso modelo de civilização; lições de solidariedade face ao reco­nheci­mento de que dependemos uns dos outros; lições de determinação, também, face à urgência de cuidarmos da sobrevivência do nosso planeta, que o mesmo é dizer da nossa própria sobrevivência.

O confinamento e agora, muito a medo, o regresso à escola, confirmam a importância das condições materiais de aprendizagem e, ainda [se é que precisávamos de confirmação], que o desejo de aprender e a vontade de sa­ber, tão necessários à nossa emancipação, não são inatos, exigindo, por isso, mobilização de todos, num trabalho educativo exigente.

Sabemos que a Escola, mais do que um conjunto de espaços onde os nossos filhos aprendem, é uma instituição [etimologicamente “o que nos institui, nos faz levantar"] criada e organizada para que as nossas crianças aprendam umas com as outras e connosco, partilhem conhecimentos e tenham acesso aos valores, que lhes permitem sentir-se cidadãos numa sociedade que ajudam a desenvolver.

A "escola em casa", a desilusão do uso da tecnologia digital reduzida à aplicação de protocolos in­di­vi­du­ais estandardizados, o abandono escolar de demasiados alunos, a solidão e a angústia psicológica de muitos outros, reforçou ainda mais a necessidade de implementar uma pedagogia que se preocupe com a construção de um colectivo, que faça da cooperação entre pares a pedra angular da escolaridade.

A Escola não pode, simplesmente, distribuir conhe­cimen­tos académicos, para verifi­car, de seguida, a sua hi­potética memorização, através da aplicação de testes pa­droniza­dos. A sua vocação é permi­tir, a cada um e cada uma, "pen­sar por si", indo além de representa­ções sumá­rias, de lugares-comuns e dogmas de todo o tipo. O ensino deve con­duzir os estu­dantes na aventura do saber, onde o rigor da investigação, no respeito pela ver­dade, preva­lece sobre as satisfa­ções imediatas, de identifica­ção com um lí­der ou de obe­diên­cia a palavras de or­dem... Pre­cisa­mos de uma escola que trabalhe incan­sa­velmente na for­mação de cida­dãos lúcidos e críticos, capazes de se en­vol­ve­rem em debates se­renos, mobilizando o conhe­ci­mento ci­entífico, mas sem nunca ignorarem os valores ine­rentes a todas as decisões humanas.

A crise que vivemos confirmou a actualidade dos ideais da “Educação Nova”, e trouxe-nos a urgência de nos mobili­zarmos colectiva­mente à sua volta. Mobili­zarmo-nos em todos os sectores da educação, e não apenas no da educa­ção escolar, na luta con­tra todas as formas de discrimina­ção, no acesso a uma cul­tura de qualidade, na par­tilha so­lidária do bem comum.

A crise que atravessamos teve o condão de reforçar a im­por­tância da escola para todas as crianças, em par­ticular para as mais carenciadas ou em dificul­dade. A escola pú­blica, com o seu pro­jecto apostado na mistura social, é es­sencial na luta contra todas as formas de segregação e ex­clusão.

Precisamos que os professores [cuja tarefa é "alargar o cír­culo", dar a cada um e a todos o acesso a ri­quezas cul­turais insuspeitas] se assumam forma­dores para uma cida­dania lú­cida, não apenas através dos conhecimentos que trans­mitem, mas também, e principalmente, através dos pro­cessos de transmissão que utilizam.*** Porque há valores que não nos chegam pelo ouvido, mas pelas experiências de vida, a que só no exercício desses valores conseguimos aceder.

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* O Movimento de Educação Nova, teve a sua expressão máxima na primeira metade do século XX; os anos que Daniel Hameline identifica como “os anos loucos da pedagogia”.
** As mexidas a que foi sujeito, sem desvirtuar o pensamento do seu autor, fazem deste texto um pouco, também, de quem o condensou, nesta versão
*** Não deixando de valorizar os conteúdos, é nos processos utilizados na sua transmissão, que a importância do projecto da “Educação Nova” mais se faz sentir – Coloca em destaque a importância do que viemos, mais tarde, a identificar de currículo oculto.

domingo, 27 de setembro de 2020

Mil e uma maneiras de ser exigente

Philippe Meireu
Versão [condensada] em português de Luís Goucha
[Passar para a versão em PDF >>>]

Este é o titulo do capitulo 8 do livro “Ce que l’école peut encore pour la démocratie”, onde Meirieu nos relata um tempo de vida na sua escola e que, pese embora o tempo que se passou entretanto, não se distingue grandemente da escola de hoje.

Philippe Meirieu conta que, no seu quinto ano de escolaridade, começara a construção do túnel do Monte Branco, notável obra de engenharia, que muitos julgavam impossível de realizar: furar montanhas – os Alpes –, para ligar dois países por um túnel com quase 12 km de extensão. Uma obra que lançou medos e receios de todo o tipo [Curiosamente, em 1963, Edgar Cardoso desafiava a tecnologia com a Ponte da Arrábida, no Porto, por onde muitos decidiram não passar por haver risco de desmoronamento!]

Apaixonado por este desafio tecnológico, Meirieu compra revistas e lê tudo o que consegue sobre esta obra gigantesca. O seu empenhamento foi de tal forma absorvente que a escola ficou para segundo plano.

Eu achava as aulas fastidiosas e passava-as a sonhar com os trabalhos no túnel. O meu professor, que já me acompanhava há dois anos, deu-se rapidamente conta disso e, perante as minhas dificuldades em Matemática, disse-me: Estás atrasado. Eu não sou profeta mas, no que toca à escola, sempre te digo que, se não recuperas rapidamente, não passas de ano.

Consegui, num último esforço, não chumbar nesse ano. No entanto, na realidade, eu não investi nada: os meus verdadeiros interesses estavam noutro sítio e o meu professor nada sabia. Se ele tivesse sabido teria mudado alguma coisa? Duvido, porque não iria dar valor à minha atenção sobre o túnel do Monte Branco, e ter-me-ia forçado a concentrar-me nos “sumários das lições”. Ele nunca tiraria qualquer partido deste meu interesse, para fazer uma comunicação aos meus colegas, aproveitar a ocasião para dar uma aula de geometria, das proporções, de geografia, ou ler um dos muitos artigos que inundavam os jornais.

Estávamos em 1959 e, com toda a evidência, a obra de Freinet ainda não era do seu conhecimento.

Do interesse à exigência

No entanto, nessa época, Celestin Freinet e a sua mulher Élise já tinham lançado o movimento pedagógico internacional, que dava a conhecer a sua obra, através de brochuras e livros: as "Técnicas da Escola Moderna”.

Absolutamente convencido de que é pelo interesse que o aluno aprende melhor, e também forçado pelo seu estado de saúde bastante debilitado, vê-se obrigado a adoptar uma metodologia radical. O professor deixa de ser o único transmissor de saberes, passando a ser um organizador do trabalho das crianças e o garante das suas aprendizagens, auxiliado pelas suas “técnicas: a correspondência, a imprensa escolar, as conferências dos alunos, os ficheiros auto-correctivos, o cinema e a biblioteca com pequenas brochuras para os alunos, os projectos de classe, o conselho cooperativo

Em 1928 tinham criado a Cooperativa do Ensino Laico que se tornará no ICEM, ainda em actividade nos nossos dias. O meu professor ignorava tudo isto. Mantinha-se fiel ao rigor da escola, a que Freinet chamava de escolástica. O termo é, evidentemente, desajustado, porque isto nada tem a ver com o conceito que nos chegou da filosofia medieval. Tratava-se, pois, de uma pedagogia que seguia exclusivamente o programa definido, do mais simples ao mais complexo, partindo de bases que os alunos teriam de dominar para aceder, passo a passo, num universo totalmente fechado ao exterior, aos conhecimentos académicos mais elaborados. A pedagogia escolástica é aquela que assenta sempre pré-requisitos 
 explica Freinet , “como se fosse preciso conhecer todas as regras da gramática para falar". Uma pedagogia que coloca “as crianças, em dificuldade, perante exercícios que nada têm a ver com as suas necessidades básicas”, as “necessidades da vida”, que lhes permitem desenvolver-se e aceder a formas mais elevadas da cultura. É contra esta escolástica que Freinet desenvolve aquilo a que ele chama “método natural”, uma expressão polémica, porque se é “método” é elaborado, foi construído; mas o que é “natural” emerge espontaneamente e a sua realidade escapa ao professor. Fazer tudo sem nada fazer”, organizar situações para que as crianças façam por si, e se desenvolvam a partir delas.

O seu projecto é este: considerar a sala de aula como um meio aberto, vivo, que aproveita todas as ocasiões que surjam para ajudar as crianças a aprenderem.

Freinet utiliza sempre um vocabulário da vida 
 exalta a “torrente da vida” – e o “poder criador da criança”, e insiste na “lei universal do tacteamento experimental” graças à qual a criança reconhece “naturalmente” os seus sucessos, que não são para criar ilusões, já que ele nunca defende a abstenção pedagógica, antes pelo contrário!

Explica que a criança “necessita de limites”, limites contra os quais se confrontará, inevitavelmente, ao longo do seu desenvolvimento, quer sejam limites impostos pela natureza, pelas regras em vigor na família e na sociedade: limites que podem constituir recursos preciosos para o seu desenvolvimento a partindo do pressuposto de que foram adaptados às suas necessidades. Explica, também, que é necessário que os desafios, que lhe são propostos, sejam suficientemente elevados, sem serem inultrapassáveis, nem constituírem um perigo [por exemplo, à integridade física ou psicológica], mas que, com os outros possam ser  facilmente ultrapassados. É preciso que encontre obstáculos, na condição que eles não lhe impeçam a vista sobre horizontes calmos e promissores, num ambiente educativo que lhe fornece os recursos de que necessita. Ou seja educar é saber colocar-se na dinâmica do sujeito, aceitar o carácter imprevisível, aleatório, a surpresa e a derrota, mas é também intervir para “colocar a criança na linha do seu potencial máximo”, para usar a expressão de Paul Le Bohec.

Quando evocamos as “novas pedagogias” ou os “métodos activos” é preciso não esquecer que estes apenas têm valor pela exigência que nos impõem. Partir do interesse e da expressão a criança”, não é tudo. Sobretudo, não podemos ficar só por aqui. Não nos devemos deixar seduzir pelas suas "ideias fantásticas", e deixá-los encerrar-se nas suas obsessões, fechando os olhos aos erros que cometem, para não os contrariar. Isto não é ajudar e pode mesmo tornar-se numa falta de respeito. É preciso que ela progrida e consiga atingir formas cada vez mais elaboradas de pensamento.

Freinet dá grande importância às “técnicas de vida: o texto livre, a imprensa, as conferencias e as reuniões cooperativas, mas também os planos individuais de trabalho, as fichas de aprendizagem auto-correctivas Tudo técnicas que articulam a liberdade e o compromisso, para ajudar cada um a ser o autor do seu próprio progresso.

Instituir a "decisão interior"

Numa classe em que o texto livre emerge da discussão diária, aproveita-se o entusiasmo de alguém que viu um filme para motivar outros a fazerem o mesmo. Mas nesta sala há muitos outros modos de valorizar a escrita: painéis afixados nas paredes, o jornal que recolhe todos os textos, trabalhados com o professor. Reformulam-se ideias, trata-se da ortografia de determinadas palavras para que o texto fique o melhor possível, mas é à criança que pertence dizer o que é essencial no seu texto. Trata-se de organizar um dispositivo que ajude a pôr por escrito “o que lhe vai na cabeça. A criança ouve as sugestões e decide por si. Tudo se joga nesta “decisão interior.

Só existe uma pedagogia: a diferenciada!

Freinet ao fazer dos intercâmbios cooperativos um meio privilegiado de interiorização, abriu as portas ao que Louis Legrand chamou em 1982 de “pedagogia diferenciada. Um pedagogia que assume ao mesmo tempo, a heterogeneidade dos alunos e a ambição de fazer com que todos atinjam os conhecimentos de base. Uma pedagogia que encoraja todos a exprimirem-se sempre de modo exigente. Uma pedagogia que reconhece as diferenças e as necessidades, nos assuntos a abordar e no modo de trabalhar, sem nunca renunciar ao acesso a uma cultura comum. Esta pedagogia, activamente desenvolvida nos anos 80 e 90, é hoje recusada por duas correntes: a da tentação da igualdade formal e a da diferenciação inultrapassável.

Alguns professores podem deixar-se seduzir por modelos em que tudo corre bem, porque tudo está bem, mas a norma não é essa. Não se pode esquecer a dialéctica do acompanhamento específico de cada um tal como é, para que ele possa, por si, aceder aos conhecimentos que lhe são propostos. Ignorar esta dialéctica é ignorar o percurso individual de cada um e cortar a possibilidade de democratizar o acesso aos conhecimentos.

Um cérebro único mas com histórias e projectos diferentes

Este modelo igualitário conseguiu muitos adeptos imprevisíveis entre as neurocientistas. Cumprindo a sua vocação, estudam o que se passa nos nossos cérebros para concluírem regras universais que regem o seu funcionamento. Nada a opor, desde que não se declare a inexistência daquilo que decidimos, metodologicamente, ou de não o ter em conta. Nenhuma investigação pode abarcar todas as variáveis implicadas da actividade humana. Por isso muitas investigações são científicas, como muitas práticas não o podem ser. A prática pedagógica nunca será científica, felizmente! Se existisse uma “pedagogia científica” seria uma catástrofe, e estaríamos perante uma fábrica de robots, em vez de uma formação de seres livres.

São pois necessários múltiplos caminhos para se aceder ao conhecimento, apesar de todos termos o mesmo cérebro e as mesmas estruturas mentais, não temos todos a mesma história nem os mesmos projectos, que é o que torna toda a situação de comunicação, logo toda a pedagogia, numa aventura apaixonante que solicita a nossa criatividade a todo o instante.

A individualização em questão

Oposto ao igualitarismo, que finge ignorar o aumento das diferenças 
 aquilo a que Bourdieu chama de “a indiferença às diferenças” –  dá atenção às diferenças nos princípios básicos do ensino escolar. Em 1921 Claparède, no seu livro ”L’école à la mesure”, diz que, se o alfaiate fazia os fatos de acordo com cada pessoa … porque é que não se faz o mesmo em relação à escola? 

Voltando a Freinet, encontramos os ficheiros auto-correctivos, as avaliações semanais, das quais decorre o trabalho da semana seguinte, proporcionando a cada o tempo necessário para atingir os seus objectivos. 

A grande questão de como se constrói um ensino estritamente individualizado, que corresponda, exactamente, às necessidades de cada um, parece uma tarefa impossível … e no entanto…

Diferenciar sem limitar

Pegar num aluno, tal como ele é, não o deixando ficar onde está; apoiarmo-nos na sua dinâmica própria para o conduzir além do que ele julgava serem os seus limites, é o desafio. Longe da gestão tecnocrática da diferenciação que põe etiquetas, a verdadeira pedagogia diferenciada agarra as ocasiões e abre horizontes.

Desafiar sempre até que se produza o clic que irá fazer com que a criança se interesse. E uma vez interessada, investir de imediato na dinâmica da exigência. Será então a ela que compete encontrar novas ocasiões de progredir, procurando apoios que a ajudem a avançar e a avaliar os resultados e os seus métodos de trabalho, para se tornar cada vez mais autónoma. É assim que uma pessoa aprende e cresce. É assim que se orientará, progressivamente, nas suas aprendizagens. É assim que uma criança se tornará adulto.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Letras trocadas

Maria dos Reis
Hoje, nas minhas leituras matinais, apareceu-me este texto, [viral na internet em 2003, relacio­nado  com a plasticidade do cérebro no que diz respeito à captação de sentido da mensagem]:

O texto remete-me para uma preocupação que me acompanhou durante todo o meu percurso profissional: as dificuldades específicas de aprendizagem na leitura e na escrita. Estas dificuldades podem transformar a ida à escola de alguns alunos, num suplício, apesar destes poderem demonstrar capacidades extraordinárias noutras áreas de expressão [teatro, pintura, desenho, educação física, etc.].

O facto da escola estar demasiado centrada nas aprendizagens académicas, limita a implementação de estratégias motivacionais mais diversificadas que, aplicadas à população em foco, permitiria atingir os objectivos pretendidos mesmo em áreas consideradas basilares.

No início de um ano lectivo completamente atípico, tenho-me lembrado muito destes alunos. Se o confinamento foi péssimo por não permitir a interacção entre pares, alguns terão sentido um alívio por não se sujeitarem às leituras em público, nem à contagem dos seus erros por parte de quem corrige os seus trabalhos [e a maior parte das vezes não se coíbe de verbalizar a frase fatal: “és sempre o/a mesmo/a”].

Que valorizar afinal?

Se por um lado temos o dever de acompanhar todos os alunos por forma a alcançar os objectivos propostos para o seu nível de ensino, a forma como seleccionamos as estratégias para o conseguir, é, efectivamente, o que conta.

Entender estes alunos, fazê-los sentir-se úteis e especiais nas diferentes áreas de aprendizagem é já motivação para trabalhar as áreas comprometidas. Hoje importam-me pouco explicações, mais ou menos científicas, para o fenómeno. Hoje interessa-me realçar a importância do envolvimento no bem-estar psicológico do aluno e o reforço a dar às famílias.

Como o texto que apresentei demonstra, afinal compreendemos o sentido das palavras, apesar do posicionamento das letras trocado... Em primeiro lugar, o que conta é o sentido. Depois, há que trabalhar a correcção do texto, convocando a ajuda dos pares. Só aprendemos quando estamos disponíveis para o fazer e nos sentimos bem com isso. Com avanços e recuos, conseguiram-se percursos académicos felizes. Tudo é possível quando nos envolvemos positivamente na tarefa e temos vontade de nos superar.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

António Nunes


“A leitura, a escrita, a aritmética, só são importantes se tornarem as nossas crianças mais humanas”

A escola serve para isto...mas, por vezes [sempre vezes demais], encontra a dirigi-la e a avalia-la alguns “eruditos com poder de decisão” que a olham de forma enviesada, distante de um mundo que se quer feliz.

Os burocratas que atualmente a assaltam deveriam reciclar-se, alternando os gabinetes, onde se enfiaram, com os espaços autênticos onde os seres humanos se movimentam e vivem as suas vidas..., ouvindo o que verdadeiramente estes precisam para serem felizes.

domingo, 20 de setembro de 2020

"A Lei do Quão", de Paulo Leminski, e as pandemias que nos assolam


Leio "A lei do quão",* um pequeno poema de Paulo Leminski, e dou comigo a pensar nas sombras que nos assolam; o medo por uma pandemia, a atingir os limites do irracional, ameaça confinar as nossas vidas.

Não sei se ocorrerá "em breve / uma brisa que leve / um jeito de chuva / à última branca de neve". Mas sei que a brisa desejada não terá jeito de ocorrer se não a fizermos soprarE nada disto acontece se nos deixarmos paralisar pelo medo. Aproveitemos "então o medo para mudar; seguindo a direcção desejada" — apetece-me dizer com Gonçalo M. Tavares —, até porque "permanecer imóvel é avançar na direcção desagradável".**

Para tal, é fundamental uma estrita disciplina, uma máxima atenção aos "pequenos detalhes" [não descurar os protocolos sanitários que nos permitem manter vivos, obviamente]. Mas recusemos que tudo isto nos desvie do para quê de estar vivo. Estamos vivos para viver e não para morrer de medo.

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O título do poema, fazendo um trocadilho com a expressão popular “a lei do cão”, refere-se ao período da ditadura militar no Brasil [Em especial à lei que, entre outras medidas repressivas, não considerava a  garantia de habeas corpus no caso de crimes políticos]. Tal como o poema sugere, não há sombra sem luz, por mínima que seja. A “luz mínima” da poesia pode ser o único espaço possível para o exercício da liberdade. Um poema, coisa pequena, tem o poder de difundir, desejo de liberdade, multiplicando-o. Mas não nos iludamos: a sombra máxima está sempre à espreita.
** Gonçalo M. Tavares, "O Senhor Swedenborg e as investigações geométricas". Editorial Caminho, Lisboa, 2009: p. 39.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Este tempo... A escola... E agora?

Luís Goucha [Mudar para PDF >>>]


Em Julho, o Ministro da Educação anunciou a data do arranque do novo anos escolar. Com este anúncio divulgou também que este iria decorrer numa de três situações: se os dados epidemiológi­cos in­dicas­sem más condições sanitárias, continuaríamos com o ensino não presencial; se indicassem boas condições, voltaríamos a passar os portões da escola, cumprindo as regras necessárias para evitar contágios; se fossem assim-assim, uns iriam para a escola e outros logo se via

Dias depois, o Ministro da Educação francesa dizia exactamente o mesmo – Isto de apostar numa tripla será sempre a forma [política] mais eficaz de acertar.

Agora, inícios de Setembro, continuamos sem saber muito bem o estado da situação em que nos encontramos. Com alguma [ou muita] ansiedade, vamos olhando para o lado procurando descortinar, na casa do vizinho [dos países que abriram a escola primeiro que nós], o que nos poderá cair em sorte.

Curiosamente, da Alemanha, onde o ano lectivo leva já um mês de avanço, fala-se pouco. Do pouco que se fala, sabe-se de casos positivos em muitas escolas e que as decisões para controlar os contágios são dispares, diferentes de região para região [os estados regionais têm poderes para decidir nesta matéria]. Assim, em algumas localidades onde se registaram casos de infecção – de alunos, professores ou funcionários –, fecharam-se as escolas; noutros locais, encerraram só as escolas onde se verificaram casos de contaminação; noutros ainda, apenas a turma a que pertenciam os alunos, ou em que os professores infectados leccionavam, foram encerradas.

Por cá, a fazer fé nas palavras do ministro, as medidas andarão algures por aqui. Tudo isto, perante o olhar inquieto de pais, funcionários e professores, e a desconfiança endémica dos sindicatos, a exigir garantias que ninguém tem para dar.

As escolas estão a poucos dias de abrir. Esta é a única garantia! E os primeiros tempos serão dedicados a recuperar aprendizagens, sem garantia nenhuma [digo eu] – basta ver o resultado dos “Planos de Recuperação”, que os professores são obrigados a apresentar, ano após ano, no final do 2º período. As crianças que se perderam nos últimos meses, nas suas aprendizagens, serão por ventura as mesmas; não se perderam nestes meses, mas nos anos que já levam de escola – A “(sem)es­cola em casa” não fez mais que agravar o estado em que se encontravam, antes da pandemia [isto para não falar do pesadelo que foi a vida das famílias com crianças deficientes enclausuradas em suas casas, com uma anedota de apoio].

Os saberes escolares são importantes, obviamente. Mas nestes tempos estranhos que vivemos, a escola tem um papel muito mais decisivo, na vida das crianças e jovens, que está para além de todo e qualquer conteúdo académico que queiramos que aprendam. Que sabemos do que viveram nos últimos meses?, do que sentiram?, do que sentem? Que sabemos do que pensam do amanhã?

Quando a palavra de ordem deveria passar por dar voz aos professores, convidando-os a pensar as melhores formas de trazer para a escola a normalidade possível, de fazer o apgrade do modo de planear as aprendizagens dos alunos, temos um Ministério da Educação que não consegue libertar-se dos tiques do costume, e nos quais as direcções das escolas se apoiam, para produzir o que tanto gostam e sabem fazer melhor: papéis e mais papéis, em planos inúteis, que será preciso "grelhar" em avaliações igualmente inúteis! *


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Como refere Raquel Varela, mais do que medo do vírus “os professores têm medo da escola, da burocracia, de relatórios esquizofrénicos”… e coisas afins.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Denunciar a maldição das certezas, convocar os pedagogos*

Philippe Meirieu

Versão portuguesa de Daniel Lousada [Mudar para PDF >>>]

Vivemos hoje assombrados pela maldição das certezas que transformam o debate democrático em fúteis disputas oratórias, confrontos estéreis de toda espécie, quando não é a violência que abala gravemente o vínculo social. A maldição das certezas que invadem o campo social e paralisam qualquer busca serena da verdade em favor das "notícias falsas", das teorias da conspiração ou dos dogmas sectários mais ou menos esotéricos; a maldição das certezas, promovidas pelos motores de busca comerciais e por todos os senhores do digital, que preferem a sedução da resposta “certa” ao exame crítico de hipóteses possíveis; a maldição das certezas que bloqueiam a aprendizagem de crianças e adolescentes, enquistados no que acreditam saber, e que rejeitam tudo que possa desestabilizá-los. Enfim, uma maldição de certezas que bloqueia a investigação, e dificulta o diálogo necessário e fecundo entre as nossas convicções e o nosso saber

O debate educativo contemporâneo está a enredar-se em conflitos de certezas que paralisam qualquer diálogo autêntico. É urgente promover um diálogo sereno que exclua completamente afirmações como: "Esta é a verdade científica que deve ditar todas as decisões”! E, em vez deste teatro de sombras dogmático, que hoje triunfa, deveríamos ser capazes de debater e explicar os nossos objectivos ["Isto é o que acredito ser necessário para os nossos filhos..."], a nossa área de referência ["Este é o campo em que trabalho e estes os dados que investigo..."], os nossos conhecimentos estabilizados ["Isto é o que me parece adquirido no momento presente..."] e as nossas propostas ["Isto é o que me parece desejável e que deve ser posto à prova..."]. Sem esta abertura às diferentes dimensões do conhecimento, na educação, receio que estejamos condenados a um diálogo interminável de surdos.

Em suma, gostaria que fossemos um pouco mais "pop­perianos", tanto em debates democráticos como em diálogos sobre educação, tanto nas nossas práticas, enquanto cidadãos, como nas nossas práticas, enquanto educadores. Gostaria que apostássemos um pouco mais no domínio da investigação e do conhecimento autêntico... e menos no domínio da propa­ganda.

Precisamos de convocar as grandes figuras da pedagogia, abordando-as não de um ponto de vista enciclopédico, mas segundo uma lógica de "descoberta", no âm­bito de um movimento de procura de sentido e de diálogo com os nossos próprios compromissos. Dialogar com Pestalozzi ou Itard, Freinet ou Montessori, Rous­seau ou Jacotot, procurando encontrar neles algo que nos ajude a compreender esta ou aquela dimensão essencial... Não como autores de obras sub speciae aeter­nitatis** que bastaria conhecer e admirar numa dimensão cultural [embora isto não seja de forma alguma negligenciável], mas sim como interlocutores, eles próprios lutando com contradições, com problemas por vezes intransponíveis... mas, por vezes, também, em contacto com os seus próprios demónios, que podem ser os nossos, e deixarmos-nos, quem sabe, abalar pela sua história e pelos seus pensamentos

Peguemos nas diferentes contribuições – de sociólogos, historiadores, neurocien­tistas, psicanalistas, linguistas, filósofos, escritores, o que seja – mas tomemo-las apenas pelo que são: contribuições, apenas isso. 

Reabramos constante e obstinadamente a questão dos fins e dos métodos, através do património pedagógico [legado dos pedagogos]. Esta deve ser, hoje, a nossa prioridade.

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* No original «Philippe Meirieu dénonce "la malédiction des certitudes", en éducation notamment (interview exclusive)» – uma entrevista apresentada, nesta versão, em jeito de artigo: uma leitura do que me ficou de mais importante, para os tempos que hoje vivemos.
** Em Inglês, sub specie aeternitatis significa aproximadamente "a partir da perspectiva do eterno".

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A pedagogia e o digital: em que é que ficamos?

Philippe Meirieu

Versão portuguesa [condensada] de Luís Goucha

Assistimos, com um misto de preocupação e sensação de impotência, a um processo de desinstitucionalização da escola. Em poucos anos, passámos de uma escola institucional e estável, para uma “lógica de serviço”, onde cada um surge, conforme lhe apetece, com o que lhe apetece, esquivando-se da mínima contrariedade. Se, antigamente, se entrava na escola como quem entra num teatro, hoje entra-se na escola como numa sala de estar, em que a televisão está ligada e, se o programa não agrada, tiramos o comando ao vizinho e mudamos de canal. Num contexto assim, estruturar um colectivo é quase impossível. LER MAIS >>>

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

O poder das imagens no imaginário

Leitores dão uma vista de olhos aos livros da biblioteca de Holland House,
em Londres, alvo de uma bomba incendiária em 22 de Outubro de 1940
Luís Goucha

Para quem viveu mal a Escola, esta é uma imagem de felicidade: a destruição do livro. Livro é escola. Eu não gosto da Escola, logo o “livro” desapareceu! 

Gostava que esta fotografia fizesse parte da nossa Humanidade, na procura perpétua da inteligência, aquela coisa que só os Homens são capazes de construir e destruir com o mesmo rigor e sabedoria.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Cultivar o silêncio como elemento essencial da conversa

Daniel Lousada
«Ouvir é a maneira mais pura de calar», leio num verso de Filipa Leal. Mas só o é se for por opção. E c
alar da "maneira mais pura" é interromper a fala, naquele momento em que a escuta é mais importante do que tudo o que possamos ter para dizer.

Nem sempre me calo da maneira mais pura. Quer dizer, muitas vezes, quando me calo, calo-me apenas..., sem qualquer compromisso com a escuta. Outras vezes, no que me parece ser o mais normal, calo-me quando não tenho nada para dizer..., ou então, o que tenho, digo melhor em silêncio..., que o silêncio também faz parte da conversa [às vezes é a maneira mais pura de dizer! — «O silêncio só raramente é vazio», leio num verso de José Tolentino Mendonça *].

In "Vem à quinta-feira", Assírio & Alvim, Lisboa, 2016
Calamos tão pouco, hoje em dia. Parece que desaprendemos [será que alguma vez aprendemos?] de cultivar o silêncio como elemento fundamental da conversa:

O que por palavras nos está oculto
no silêncio crepita
em intimidade *

«Ouvir é a maneira mais pura de calar». Será que isto se ensina? Creio que sim! E, nesta crença, elejo a poesia, como instrumento privilegiado do processo. 
Na poesia está tudo o que é preciso: o apelo à voz, através das palavras que mais significam, muito mais para além delas...; os silêncios — aqueles que fazem parte do poema, mais aqueles que somos convidados a fazer —; a escuta...** 

O silêncio não está sob controle 
ninguém consegue activá-lo 
sem transitar por ele *

O difícil está aqui: dar por ele neste "trânsito". E se, no que fazemos, o silêncio [ou a necessidade dele] não está presente, a dificuldade é maior.

Daqui o poema, que vive de silêncios, para ajudar a ensinar a cultivar o silêncio. Precisamos "apenas" de acertar na escolha dos "poemas certos", a cada um, em cada momento.


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* In "A papoila e o monge", Assírio & Alvim, Lisboa, 2013
** A música também convida à escuta, poder-se-á dizer. Mas ao servir também outros propósitos, não convida com a mesma intensidade. Às vezes, perante passantes de auscultadores enterrados nas orelhas, o que vejo não é propriamente alguém implicado com a escuta, mas que tão só transita entre "ruídos"!

sábado, 8 de agosto de 2020

Competências: quem as define?

António Nunes
Quando nos invadem os ouvidos e os olhos com o conceito de competência [uma invasão que nos chega, invariavelmente, pela voz ou pela mão daqueles que não conseguem ter, sobre a educação-formação, mais do que um olhar de senso comum], até parece que estamos na presença de um assunto de simples resolução.

Contudo, os mais atentos sabem bem que não é assim. E que esta espécie de simplicidade [pequena traição que a ignorância, por vezes, nos prega], aliada à emergência da sua afetação a quase tudo aquilo que respeita às aprendizagens, coloca este tema como objeto de uma mais profunda reflexão e que deveria sujeitar todos aqueles que com ela trabalham, a um estudo sistemático e consistente desta "nova" (?) realidade, no trabalho pedagógico.

Pela sua estrutura, poderá parecer, aos olhos de alguns, que as mesmas se detetam num saber fazer e em operacionalizações mais ou menos rebuscadas. Nesta facilidade de análise, não se interroga se esse tipo de ação incorpora valores como a consciência, a justiça, a cultura, o humanismo, a solidariedade, etc. Este tipo de qualidades, embora muito faladas, não representam uma grande preocupação ao nível do seu desenvolvimento e desocultação, visto estas não interessarem muito aos “mercados”, nem tão pouco serem preocupações e, por isso, objeto de avaliação dos sistemas educativos, como o sistema educativo português.

O conceito de competência tem, ao longo do tempo, transportado consigo as marcas do mundo laboral e, com isso, construído uma semântica da qual com dificuldade se libertará. Isto porque, tradicionalmente, tem sido enquadrado num tipo de ações que se orientam para um desempenho qualificado num posto de trabalho. Competência era [ainda é, na cabeça de alguns] uma qualidade pessoal que se tinha ou se adquiria, que se mostrava ou se demonstrava, tendo por base uma “genética” marcadamente operativa, que respondia, em momentos determinados, a tarefas de diferentes exigências.

Esta dificuldade leva a que muitos [responsáveis pela educação e formação incluídos] subestimem, por incultura ou má-fé, a sua vertente de mutabilidade temporal e estrutural, bem como a sua harmonização com outros conceitos. Parecem não entender que se exige à figura de competência uma descolagem de um arquétipo tradicional de base simplista e se deve sugerir a sua adesão ao mundo da complexidade, propondo-se-lhe, por via disto, uma nova linguagem.

Torna-se então necessário um olhar moderno sobre as competências, para que ao procurar integrá-las no currículo escolar e formativo, estas possam ser aprendidas, mantidas e circunscritas por toda a vida e não, como tem acontecido até hoje, revividas num espaço de tempo curto, ao serviço exclusivo dos fetiches daqueles que não entendem muito, nem de competências, nem da avaliação das mesmas.

Lembramos, por fim, que quando fazemos alguma afirmação acerca de competências estamos, ao mesmo tempo, a desenhar e a definir politicamente o currículo que elegemos e, assim, a determinar o desenvolvimento e o futuro dos nossos pares.

[Texto disponível também em PDF >>>]

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Pai, quando é que o freguês vem?

António Nunes

[Também disponível em PDF >>>]


Leio e releio partes de um livro intitulado “Pierre Guérin, sur les pas de Freinet”, isto porque, nestes últimos tempos, em que o sol aquece um pouco mais, o vento amansou, o tempo se mostra mais tranquilo e os dias, embora contando as mesmas horas, se tornam mais longos, tem-me apetecido dar um outro rumo a um livro por mim escrito e já publicado,* para torná-lo num outro, rejuvenescido no seu conteúdo e empurrado, se possível, para uma nova edição, “actualizada e aumentada”, como é uso dizer.

Lembrando Freinet, lembro-me sempre do João e da Mafalda, os meus dois filhos, ao mesmo tempo que me empurro muitos anos para trás, quando serpenteávamos juntos os Alpes Marítimos franceses, à descoberta dos espaços por onde aquele professor francês ensaiou a sua pedagogia: a escola de Le Bar-sur-Loup [a sua primeira escola], a de Saint Paul [onde é exonerado do serviço público] e depois a sua escola privada, também em Vence. São memórias que me levam a olhá-los na sua pequenez, ainda tão crianças, e recordar as brincadeiras que por vezes tínhamos.

Agora, tão distante desse tempo, parece que todos perdemos o prazer de brincar — Esta coisa de ser adulto é, muitas das vezes, uma chatice!

Apetecia-me brincar agora com eles... saltar por cima das mesas, correr à volta das cadeiras da esplanada onde escrevo, cairmos uns por cima dos outros, despejar-lhes até água por cima. E se o empregado resmungasse, paciência: chapinávamo-lo com Coca Cola, que é mais pegajosa e custa mais a limpar. Apetecia-me subir com eles para cima da escada frente a mim, e, empoleirados nela, pintarmos o céu com todas as cores do arco-íris, mais a cor do mar, a cor do pôr-do-sol, mesmo quando noite…, a cor da esperança, da alegria, da amizade, do amor…, a cor de alguns lábios, de alguns olhos…, ou de um sorriso até, daquelas crianças que nunca viram os pais sorrirem-lhes. Cada um pintava como queria, com pincéis de formas e tamanhos diferentes, com as mãos ou mesmo com a ponta do nariz — para isso, teríamos de contar mentiras, muitas mentiras como o Pinóquio, para facilitar a pintura—. Podíamos gastar a tinta que nos apetecesse gastar. Só não podíamos apagar o que decidíssemos pintar!, para aprendermos que, na vida, o que fazemos não pode ser mais apagado. Pode ser reorganizado..., modificado, … Apagado não!

Chegados a Vence, frente à escola privada de Freinet, o João, vendo-me tocar mais do que uma vez na campainha da porta, sem que alguém atendesse, pergunta-me:

— Pai, quando é que o freguês vem?

Ainda hoje nos rimos com ele, pouco importando as memórias que ele guarda deste episódio. E ele ri-se connosco. Para ele, Freinet ou freguês tanto dava... Para nós, pela sua afetividade, é uma troca que, vinda do passado, mantemos presente: faz parte de nós. Queremo-la, enquanto vivermos, inalterável. Não a queremos, jamais, apagada!

sexta-feira, 31 de julho de 2020

A urgência do regresso da pedagogia à escola... e ao imaginário do professor

António Nunes

(...) a cada reforma, mantém-se aquilo que os historiadores da educação e os pedagogos apelidam de "gramática da escola" (...), ancorada em regras, a maioria delas invisíveis (...), interligadas naquilo que, vulgarmente, se apresenta como tradição. Um facto que as faz, por si só, (...) resistentes à mudança ["a tradição tem muita força"]

terça-feira, 28 de julho de 2020

«Sou maior quando envelheço»

E por falar do tempo: a memória, a consciência, o sentimento de si... e outras "coisas menores" 

A propósito de um poema de Viviane Mosé

Neste poema vejo o tempo identificado com a própria vida, que se estende no passado de olhos postos no futuro. Um poema que, de certa forma, reflecte o conceito de consciência, com o qual se identifica o tempo.

De que modo cresce o passado que já não é mais? Interroga-se Sto. Agostinho. Cresce com a memória das coisas que vivi, diria eu ! se fosse chamado a responder. Para acrescentar, de seguida, que apenas com as coisas que faço, com a consciência das experiências que vivi [nas quais o aprender se inclui] sou capaz de crescer. Um crescimento que varia com o tempo dedicado às "coisas que mantêm todo o seu significado".

Diz o Principezinho [de Antoine de Saint-Exupéry] que «Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que fez a tua rosa tão importante». No fim é a importância das coisas que faço, que dá sentido ao tempo que lhes dedico, e me faz ser maior quando envelheço.
Daniel Lousada

segunda-feira, 20 de julho de 2020

A professora Isa não é leitora?

A propósito da vergonha alheia de Raquel Varela


Daniel Lousada [ Disponível também em PDF >>> ]


A professora Isa, como professora do 1º Ciclo, “ensina” muitas artes: expressão plástica, musical, matemática, história, ciências... e, claro, português. Duvido que alguém possa gostar de tudo isto por igual.

«Não sou leitora. Nunca fui muito de ler livros»[*], responde quando lhe perguntam o que andava a ler. Quer dizer que se afasta dos livros como se estes fossem repelentes? Não, diz tão só que procura entretimento noutras leituras ou noutras artes. E, curiosamente, embora diga não ser leitora, também diz gostar de livros: «Os livros infantis são muito importantes para mim, (...). Em casa, na pequena biblioteca que tenho, e na escola, passaram a ser um grande contributo para o meu trabalho». Afirma inclusive, uns parágrafos acima, que está «a estudar para tirar uma pós-graduação em "livro infantil"». Ora, isto não se consegue sem leitura e sem escrita. Donde que alguma coisa terá de ler. Mas ao ler a entrevista e, a seguir, os comentários violentos, que se escreveram sobre ela, centrados unicamente numa resposta infeliz, esquecendo tudo mais, fica-me a impressão de estar na presença de "leitores de letras gordas".

Conheço professores que, não gostando de grandes leituras, ligam-se à leitura pelo desejo de saber. E conseguem passar este desejo aos seus alunos, como só muito poucos conseguem! Outros, do mundo universitário, confessam que as suas leituras acontecem em função das aulas que têm para dar e dos projectos de escrita [de artigos, coisas de carreira] que têm em mãos: a leitura amarrada, não ao prazer de ler, mas ao propósito de uma escrita utilitária. Outros ainda, grandes leitores(as), são incapazes de fazer gostar seja do que for – Entre os primeiros e estes últimos, prefiro seguramente os primeiros, pela seriedade com que encaram a profissão.

CLARO QUE GOSTAR DO QUE SE ENSINA AJUDA: dispensa-nos o trabalho de fazer de conta que gostamos! Sim, fazer de conta! E até nem é muito complicado fazê-lo com crianças deste nível de ensino: basta saber ler e investir na construção de uma personagem que adora ler o que está a ler. Pode, depois, acontecer a dificuldade em discorrer sobre a qualidade literária da obra, mas isso é irrelevante neste nível de ensino. Durante a minha carreira tive de ler e dar a ler livros que não gostava, e li-os aos meus alunos, como se os adorasse, tão convincentemente, que alguns quiseram levar o livro, para repetir a leitura em casa! Nalguns casos [poucos, confesso] deixei-me entusiasmar pelo seu entusiasmo, e dei por mim a gostar do que lia!

Há confissões que só devem fazer-se no confessionário! E, Infelizmente para a professora Isa, os jornais não são confessionários, nem lhes compete perguntar ao entrevistado se acha mesmo do seu interesse partilhar esta ou aquela informação. Eles iam lá perder a oportunidade de partilhar esta confissão, destacando-a das demais em letras gordas. Enfim, coisas de quem, ingenuamente, se enreda nestas redes e deixa que a visibilidade do seu trabalho o transforme em curiosidade mediática.

Já agora, eu nunca gostei de algoritmos, nem de raízes quadradas [estas já nem sei mesmo como se fazem], mas isso não me impediu de ser competente no seu ensino, quando ensinava.

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[*] Esta citação foi partilhada, pela historiadora Raquel Varela, da seguinte forma: "A professora de português – já vimos não ser de português – (...) deu uma entrevista ao Expresso este fim de semana onde diz que nunca gostou de ler, cito". Obviamente, não citou coisa nenhuma. De nunca gostei de ler a nunca fui muito de ler livros, há uma distância enorme: eu que nunca fui muito de copos, gosto muito de um bom copo, principalmente se a acompanhar uma boa conversa entre amigos – Apetece dizer que até os melhores se deixam contaminar pela mentalidade facebook.