Philippe Meireu
Versão [condensada] em português de Luís Goucha
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Philippe Meirieu conta que, no seu quinto ano de escolaridade, começara a construção do túnel do Monte Branco, notável obra de engenharia, que muitos julgavam impossível de realizar: furar montanhas – os Alpes –, para ligar dois países por um túnel com quase 12 km de extensão. Uma obra que lançou medos e receios de todo o tipo [Curiosamente, em 1963, Edgar Cardoso desafiava a tecnologia com a Ponte da Arrábida, no Porto, por onde muitos decidiram não passar por haver risco de desmoronamento!] [Passar para a versão em PDF >>>]
Este é o titulo do capitulo 8 do livro “Ce que l’école peut encore pour la démocratie”, onde Meirieu nos relata um tempo de vida na sua escola e que, pese embora o tempo que se passou entretanto, não se distingue grandemente da escola de hoje.
Apaixonado por este desafio tecnológico, Meirieu compra revistas e lê tudo o que consegue sobre esta obra gigantesca. O seu empenhamento foi de tal forma absorvente que a escola ficou para segundo plano.
Eu achava as aulas fastidiosas e passava-as a sonhar com os trabalhos no túnel. O meu professor, que já me acompanhava há dois anos, deu-se rapidamente conta disso e, perante as minhas dificuldades em Matemática, disse-me: Estás atrasado. Eu não sou profeta mas, no que toca à escola, sempre te digo que, se não recuperas rapidamente, não passas de ano.
Consegui, num último esforço, não chumbar nesse ano. No entanto, na realidade, eu não investi nada: os meus verdadeiros interesses estavam noutro sítio… e o meu professor nada sabia. Se ele tivesse sabido teria mudado alguma coisa? Duvido, porque não iria dar valor à minha atenção sobre o túnel do Monte Branco, e ter-me-ia forçado a concentrar-me nos “sumários das lições”. Ele nunca tiraria qualquer partido deste meu interesse, para fazer uma comunicação aos meus colegas, aproveitar a ocasião para dar uma aula de geometria, das proporções, de geografia, ou ler um dos muitos artigos que inundavam os jornais.
Estávamos em 1959 e, com toda a evidência, a obra de Freinet ainda não era do seu conhecimento.
Do interesse à exigência
No entanto, nessa época, Celestin Freinet e a sua mulher Élise já tinham lançado o movimento pedagógico internacional, que dava a conhecer a sua obra, através de brochuras e livros: as "Técnicas da Escola Moderna”.
Absolutamente convencido de que é pelo interesse que o aluno aprende melhor, e também forçado pelo seu estado de saúde bastante debilitado, vê-se obrigado a adoptar uma metodologia radical. O professor deixa de ser o único transmissor de saberes, passando a ser um organizador do trabalho das crianças e o garante das suas aprendizagens, auxiliado pelas suas “técnicas”: a correspondência, a imprensa escolar, as conferências dos alunos, os ficheiros auto-correctivos, o cinema e a biblioteca com pequenas brochuras para os alunos, os projectos de classe, o conselho cooperativo…
Em 1928 tinham criado a Cooperativa do Ensino Laico que se tornará no ICEM, ainda em actividade nos nossos dias. O meu professor ignorava tudo isto. Mantinha-se fiel ao rigor da escola, a que Freinet chamava de escolástica. O termo é, evidentemente, desajustado, porque isto nada tem a ver com o conceito que nos chegou da filosofia medieval. Tratava-se, pois, de uma pedagogia que seguia exclusivamente o programa definido, do mais simples ao mais complexo, partindo de bases que os alunos teriam de dominar para aceder, passo a passo, num universo totalmente fechado ao exterior, aos conhecimentos académicos mais elaborados. A pedagogia escolástica é aquela que assenta sempre pré-requisitos – explica Freinet –, “como se fosse preciso conhecer todas as regras da gramática para falar". Uma pedagogia que coloca “as crianças, em dificuldade, perante exercícios que nada têm a ver com as suas necessidades básicas”, as “necessidades da vida”, que lhes permitem desenvolver-se e aceder a formas mais elevadas da cultura. É contra esta escolástica que Freinet desenvolve aquilo a que ele chama “método natural”, uma expressão polémica, porque se é “método” é elaborado, foi construído; mas o que é “natural” emerge espontaneamente e a sua realidade escapa ao professor. “Fazer tudo sem nada fazer”, organizar situações para que as crianças façam por si, e se desenvolvam a partir delas.
O seu projecto é este: considerar a sala de aula como um meio aberto, vivo, que aproveita todas as ocasiões que surjam para ajudar as crianças a aprenderem.
Freinet utiliza sempre um vocabulário da vida – exalta a “torrente da vida” – e o “poder criador da criança”, e insiste na “lei universal do tacteamento experimental” graças à qual a criança reconhece “naturalmente” os seus sucessos, que não são para criar ilusões, já que ele nunca defende a abstenção pedagógica, antes pelo contrário!
Explica que a criança “necessita de limites”, limites contra os quais se confrontará, inevitavelmente, ao longo do seu desenvolvimento, quer sejam limites impostos pela natureza, pelas regras em vigor na família e na sociedade: limites que podem constituir recursos preciosos para o seu desenvolvimento a partindo do pressuposto de que foram adaptados às suas necessidades. Explica, também, que é necessário que os desafios, que lhe são propostos, sejam suficientemente elevados, sem serem inultrapassáveis, nem constituírem um perigo [por exemplo, à integridade física ou psicológica], mas que, com os outros possam ser facilmente ultrapassados. É preciso que encontre obstáculos, na condição que eles não lhe impeçam a vista sobre horizontes calmos e promissores, num ambiente educativo que lhe fornece os recursos de que necessita. Ou seja educar é saber colocar-se na dinâmica do sujeito, aceitar o carácter imprevisível, aleatório, a surpresa e a derrota, mas é também intervir para “colocar a criança na linha do seu potencial máximo”, para usar a expressão de Paul Le Bohec.
Quando evocamos as “novas pedagogias” ou os “métodos activos” é preciso não esquecer que estes apenas têm valor pela exigência que nos impõem. “Partir do interesse e da expressão a criança”, não é tudo. Sobretudo, não podemos ficar só por aqui. Não nos devemos deixar seduzir pelas suas "ideias fantásticas", e deixá-los encerrar-se nas suas obsessões, fechando os olhos aos erros que cometem, para não os contrariar. Isto não é ajudar e pode mesmo tornar-se numa falta de respeito. É preciso que ela progrida e consiga atingir formas cada vez mais elaboradas de pensamento.
Freinet dá grande importância às “técnicas de vida”: o texto livre, a imprensa, as conferencias e as reuniões cooperativas, mas também os planos individuais de trabalho, as fichas de aprendizagem auto-correctivas … Tudo técnicas que articulam a liberdade e o compromisso, para ajudar cada um a ser o autor do seu próprio progresso.
Instituir a "decisão interior"
Numa classe em que o texto livre emerge da discussão diária, aproveita-se o entusiasmo de alguém que viu um filme para motivar outros a fazerem o mesmo. Mas nesta sala há muitos outros modos de valorizar a escrita: painéis afixados nas paredes, o jornal que recolhe todos os textos, trabalhados com o professor. Reformulam-se ideias, trata-se da ortografia de determinadas palavras para que o texto fique o melhor possível, mas é à criança que pertence dizer o que é essencial no seu texto. Trata-se de organizar um dispositivo que ajude a pôr por escrito “o que lhe vai na cabeça”. A criança ouve as sugestões e decide por si. Tudo se joga nesta “decisão interior”.
Só existe uma pedagogia: a diferenciada!
Freinet ao fazer dos intercâmbios cooperativos um meio privilegiado de interiorização, abriu as portas ao que Louis Legrand chamou em 1982 de “pedagogia diferenciada”. Um pedagogia que assume ao mesmo tempo, a heterogeneidade dos alunos e a ambição de fazer com que todos atinjam os conhecimentos de base. Uma pedagogia que encoraja todos a exprimirem-se sempre de modo exigente. Uma pedagogia que reconhece as diferenças e as necessidades, nos assuntos a abordar e no modo de trabalhar, sem nunca renunciar ao acesso a uma cultura comum. Esta pedagogia, activamente desenvolvida nos anos 80 e 90, é hoje recusada por duas correntes: a da tentação da igualdade formal e a da diferenciação inultrapassável.
Alguns professores podem deixar-se seduzir por modelos em que tudo corre bem, porque tudo está bem, mas a norma não é essa. Não se pode esquecer a dialéctica do acompanhamento específico de cada um tal como é, para que ele possa, por si, aceder aos conhecimentos que lhe são propostos. Ignorar esta dialéctica é ignorar o percurso individual de cada um e cortar a possibilidade de democratizar o acesso aos conhecimentos.
Um cérebro único mas com histórias e projectos diferentes
Este modelo igualitário conseguiu muitos adeptos imprevisíveis entre as neurocientistas. Cumprindo a sua vocação, estudam o que se passa nos nossos cérebros para concluírem regras universais que regem o seu funcionamento. Nada a opor, desde que não se declare a inexistência daquilo que decidimos, metodologicamente, ou de não o ter em conta. Nenhuma investigação pode abarcar todas as variáveis implicadas da actividade humana. Por isso muitas investigações são científicas, como muitas práticas não o podem ser. A prática pedagógica nunca será científica, felizmente! Se existisse uma “pedagogia científica” seria uma catástrofe, e estaríamos perante uma fábrica de robots, em vez de uma formação de seres livres.
São pois necessários múltiplos caminhos para se aceder ao conhecimento, apesar de todos termos o mesmo cérebro e as mesmas estruturas mentais, não temos todos a mesma história nem os mesmos projectos, que é o que torna toda a situação de comunicação, logo toda a pedagogia, numa aventura apaixonante que solicita a nossa criatividade a todo o instante.
A individualização em questão
Oposto ao igualitarismo, que finge ignorar o aumento das diferenças – aquilo a que Bourdieu chama de “a indiferença às diferenças” – dá atenção às diferenças nos princípios básicos do ensino escolar. Em 1921 Claparède, no seu livro ”L’école à la mesure”, diz que, se o alfaiate fazia os fatos de acordo com cada pessoa … porque é que não se faz o mesmo em relação à escola?
Só existe uma pedagogia: a diferenciada!
Freinet ao fazer dos intercâmbios cooperativos um meio privilegiado de interiorização, abriu as portas ao que Louis Legrand chamou em 1982 de “pedagogia diferenciada”. Um pedagogia que assume ao mesmo tempo, a heterogeneidade dos alunos e a ambição de fazer com que todos atinjam os conhecimentos de base. Uma pedagogia que encoraja todos a exprimirem-se sempre de modo exigente. Uma pedagogia que reconhece as diferenças e as necessidades, nos assuntos a abordar e no modo de trabalhar, sem nunca renunciar ao acesso a uma cultura comum. Esta pedagogia, activamente desenvolvida nos anos 80 e 90, é hoje recusada por duas correntes: a da tentação da igualdade formal e a da diferenciação inultrapassável.
Alguns professores podem deixar-se seduzir por modelos em que tudo corre bem, porque tudo está bem, mas a norma não é essa. Não se pode esquecer a dialéctica do acompanhamento específico de cada um tal como é, para que ele possa, por si, aceder aos conhecimentos que lhe são propostos. Ignorar esta dialéctica é ignorar o percurso individual de cada um e cortar a possibilidade de democratizar o acesso aos conhecimentos.
Um cérebro único mas com histórias e projectos diferentes
Este modelo igualitário conseguiu muitos adeptos imprevisíveis entre as neurocientistas. Cumprindo a sua vocação, estudam o que se passa nos nossos cérebros para concluírem regras universais que regem o seu funcionamento. Nada a opor, desde que não se declare a inexistência daquilo que decidimos, metodologicamente, ou de não o ter em conta. Nenhuma investigação pode abarcar todas as variáveis implicadas da actividade humana. Por isso muitas investigações são científicas, como muitas práticas não o podem ser. A prática pedagógica nunca será científica, felizmente! Se existisse uma “pedagogia científica” seria uma catástrofe, e estaríamos perante uma fábrica de robots, em vez de uma formação de seres livres.
São pois necessários múltiplos caminhos para se aceder ao conhecimento, apesar de todos termos o mesmo cérebro e as mesmas estruturas mentais, não temos todos a mesma história nem os mesmos projectos, que é o que torna toda a situação de comunicação, logo toda a pedagogia, numa aventura apaixonante que solicita a nossa criatividade a todo o instante.
A individualização em questão
Oposto ao igualitarismo, que finge ignorar o aumento das diferenças – aquilo a que Bourdieu chama de “a indiferença às diferenças” – dá atenção às diferenças nos princípios básicos do ensino escolar. Em 1921 Claparède, no seu livro ”L’école à la mesure”, diz que, se o alfaiate fazia os fatos de acordo com cada pessoa … porque é que não se faz o mesmo em relação à escola?
Voltando a Freinet, encontramos os ficheiros auto-correctivos, as avaliações semanais, das quais decorre o trabalho da semana seguinte, proporcionando a cada o tempo necessário para atingir os seus objectivos.
A grande questão de como se constrói um ensino estritamente individualizado, que corresponda, exactamente, às necessidades de cada um, parece uma tarefa impossível … e no entanto…
Diferenciar sem limitar
Pegar num aluno, tal como ele é, não o deixando ficar onde está; apoiarmo-nos na sua dinâmica própria para o conduzir além do que ele julgava serem os seus limites, é o desafio. Longe da gestão tecnocrática da diferenciação que põe etiquetas, a verdadeira pedagogia diferenciada agarra as ocasiões e abre horizontes.
Desafiar sempre até que se produza o clic que irá fazer com que a criança se interesse. E uma vez interessada, investir de imediato na dinâmica da exigência. Será então a ela que compete encontrar novas ocasiões de progredir, procurando apoios que a ajudem a avançar e a avaliar os resultados e os seus métodos de trabalho, para se tornar cada vez mais autónoma. É assim que uma pessoa aprende e cresce. É assim que se orientará, progressivamente, nas suas aprendizagens. É assim que uma criança se tornará adulto.
Diferenciar sem limitar
Pegar num aluno, tal como ele é, não o deixando ficar onde está; apoiarmo-nos na sua dinâmica própria para o conduzir além do que ele julgava serem os seus limites, é o desafio. Longe da gestão tecnocrática da diferenciação que põe etiquetas, a verdadeira pedagogia diferenciada agarra as ocasiões e abre horizontes.
Desafiar sempre até que se produza o clic que irá fazer com que a criança se interesse. E uma vez interessada, investir de imediato na dinâmica da exigência. Será então a ela que compete encontrar novas ocasiões de progredir, procurando apoios que a ajudem a avançar e a avaliar os resultados e os seus métodos de trabalho, para se tornar cada vez mais autónoma. É assim que uma pessoa aprende e cresce. É assim que se orientará, progressivamente, nas suas aprendizagens. É assim que uma criança se tornará adulto.
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