António Nunes
“Desejo que revindiquemos, dos Jardins de Infância ao Ensino Superior, a possibilidade de pôr em prática dispositivos pedagógicos inspirados nas pedagogias cooperativas e institucionais, que permitam a cada um e cada uma “ter o seu lugar” num coletivo, quer dizer, não ocupar todo o espaço mas também não ser excluído, sub-repticiamente ou brutalmente, dele. É por isso que me parece essencial reafirmar a Escola como uma “instituição” que incarna os valores da República, e não um “serviço” encarregado de satisfazer, individualmente, os pedidos dos utilizadores.”[1]
1. O Expresso do dia 24 de novembro do corrente ano, num artigo intitulado “Gulbenkian ajuda alunos carenciados com mentorias e aulas extra”, dá-nos conta de um programa intitulado de GAP – Gulbenkian Aprendizagem, que pretende apoiar “pelo menos 5.000 alunos dos ensinos básicos e secundário", de forma que estes possam recuperar aprendizagens ligadas às disciplinas de Português, Inglês e Matemática e, ao mesmo tempo, que possam “desenvolver competências importantes para o estudo autónomo”.
Para isso irá selecionar alunos pertencentes a grupos socioeconómicos mais desfavorecidos, num universo de cerca de 120 escolas do país. Estas mentorias poderão ser realizadas de formas diferentes: apoio individual, ou em pequenos grupos ou mesmo dentro da sala de aula.
Sabemos também que já existe nas nossas escolas apoios realizados por jovens mentores - pessoas com formação superior - que se oferecem, segundo o artigo, e passo a citar, a “dedicar o seu tempo a tentar fazer a diferença numa escola”. Estes jovens pertencem à “Teach For Portugal [2]” que tem como objectivo “não deixar nenhuma criança para trás durante o seu percurso escolar, desenvolvendo o seu potencial ao máximo, desde os resultados académicos até à gestão emocional.” Para isso têm um “Mentor na sala de aula e na escola (que) permite dar mais atenção aos alunos, criar coesão e resolver situações repetitivas de abandono, desistência, desmotivação e conflito [3].”
Dito isto, e pensando serem estas iniciativas, quer por parte da Gulbenkian, quer por parte deste grupo de jovens, de saudar, gostaria de fazer algumas considerações que entendo serem pertinentes, quer à escola, quer, principalmente, aos professores e à sua Identidade Profissional. É que, os professores devem ter, verdadeiramente, um compromisso com a educação e com os seus alunos e, desta forma, assumir a fragilidade do ato pedagógico, das permanentes contradições que este lhes impõe e da complexidade que as relações humanas muitas das vezes apresentam.
2. Partindo de um conjunto de preocupações manifestadas por alguns intelectuais, na passagem do seculo XIX até cerca dos anos 30 do século XX, podemos ver, com relativa facilidade e evidência, uma panóplia de preocupações relativamente à escola e, principalmente, ao papel do professor na sala de aula e dos saberes necessários à profissão.
1866. "Para educar mestres não basta expor princípios de ciência, é preciso ensinar a ensinar, ensinar pedagogia" (João de Andrade Corvo)
1887. “Se a profissão do magistério é uma profissão científica como qualquer outra, o professor precisa de um período de aprendizagem, que o habilite a entrar capaz e dignamente no exercício das suas funções" (Ferreira Deusdado).
1915. “Um recrutamento de professores só pode ser feito por quem conheça perfeitamente as necessidades do ensino. O recrutamento de técnicos só pode ser conscientemente feito pelos seus iguais" (Adolfo Lima).
1930. “O Estado organiza o plano geral dos estudos, formula os objectivos a realizar mas aos professores e só a eles compete a organização dos programas dos cursos, isto é, a selecção das matérias, a concretização dos exemplos e a escolha dos métodos e processos adequados à realização dos fins que se tem em vista" (Eusébio Tamagnini).
1932. "Os que frequentam esta Escola Normal sabem muito bem que ela é um instituto de educação profissional: vem aqui aprender-se a ser educador, como numa faculdade de medicina se aprende a ser médico" (Alberto Pimentel Filho)
Encontramos nestes pequenos excertos um conjunto de considerações cuja natureza nos dirige, de forma nítida, para um leque de preocupações que poderemos centrar naquilo a que chamamos de legitimação da profissão de professor. Neles, deparamo-nos com uma combinação de imagens construídas à volta de três eixos: a profissão gerida pelos “seus iguais”, um poder próprio e intrínseco da profissão e, fundamentalmente, um saber particular, exclusivo e claramente identitário destes profissionais.
3. A docência, ou dizendo de uma outra forma, o ato de ensinar, impõe uma determinada prática social, cultural, moral, ética e política, isto é, torna o professor num “carrejão e guardião” da missão que a sociedade lhe confiou, esforçando-se por conseguir, através da pedagogia, romper as barreiras e fronteiras que muitos alunos carregam consigo, impostas quer pela família, quer pela sociedade ou, noutros casos, fazendo mesmo parte do seu próprio desenvolvimento ou do seu património genético.
4. Para ensinar bem não basta ter domínios, por muito bons que sejam, de um determinado tipo de conhecimento, é determinante ter deste uma compreensão da sua raiz histórica, cultural, científica e social. O conhecimento, em cada profissão, é guiado por um conjunto de valores que lhe dão, naturalmente, sentido e objetivos, servindo, desta forma, todos aqueles “a quem se presta um serviço e às metas sociais mais abrangentes que se pretendem alcançar com esse serviço.” (Smylie, Bay, e Tozer, 1999).
5. Para se tornar um profissional de educação, o professor depende, pois, de um articulado de características, que passam, por exemplo, por uma boa formação pessoal, por valores morais sólidos e, muito, por uma boa formação profissional, que o ajude a lidar com a surpresa e o inesperado, na certeza de que o ato pedagógico é único e irrepetível, sendo a pedagogia “por natureza, um trabalho sobre situações particulares” (Meirieu, 2002). Desta forma, recorrendo a Nóvoa (in Santos, L.L., 2013) “só a pedagogia – uma pedagogia conduzida pelos professores – conseguirá reintroduzir sentido na escola e nas aprendizagens”
6. Com tudo isto, regresso à notícia do Expresso e fico-me com uma pergunta à qual me atrevo a dar uma resposta, em jeito de provocação: qual o lugar ocupado pelos professores perante as crianças em dificuldade? Quando estas situações acontecessem a que profissionais teremos então que recorrer? Se se tratasse da área da saúde, aos médicos e enfermeiros, da justiça, aos juízes e advogados…, e falando da educação? Naturalmente aos professores, esses herdeiros da pedagogia e dos pedagogos. Essa herança exige-lhes, contudo, um compromisso ético, o de educar todas as crianças e de ter sempre presente que só há ensino quando há aprendizagem, não podendo nunca ficar resignados com as dificuldades dos seus alunos, nem tão pouco desistir de os continuar a ensinar.
Bibliografia
MEIRIEU, Philippe (1991). Le choix d`éduquer – Éthique et Pédagogie. Issy-les-Moulineaux: ESF Editeur
MEIRIEU, Philippe. (1998). Aprender... Sim, mas como? Porto Alegre: Artes Médicas.
MEIRIEU, Philippe. (2002). A Pedagogia entre o dizer e o fazer: a coragem de começar. Porto Alegre: Artes Médicas.
SANTOS, L.L. (2013). Entrevista com o Professor António Nóvoa. Educação em Perspectiva, Viçosa, v. 4, n. 1, p. 224-237, jan./jun.
SMYLIE, M. BAY, M. e TOZER, S. (1999). Preparing teachers as agents of change. In G. A. Griffin (Ed.), Ninety-eighth Yearbook of National Society for the Study of Education. (Vol.1, pp.29-62). Chicago: University of Chicago Press.
1] Meirieu, P. “L´école dáprès”... avev la pédagogie dávant? Entrevista ao “Le café pédagogique” em 17.04.2020.
[2] “A Teach For Portugal existe desde 2018, fazendo parte da rede internacional Teach For All, que atua há mais de 30 anos, em 58 países.
Recrutamos e formamos pessoas de várias áreas profissionais para integrarem o nosso Programa e serem aliados de uma escola durante 2 anos letivos, com foco nos 5.º e 6.º anos.
Estas pessoas, que chamamos de Mentores, têm a função de acompanhar um ou mais professores, atuando em sala de aula. Dinamizam também atividades/projetos que correspondam às necessidades de desenvolvimento dos alunos.”
[3] Os “Mentores Teach For Portugal (...) estão preparados para participar em sala de aula, apoiar em estudo individualizado, desenvolver competências pessoais e sociais dos alunos, realizar várias atividades pedagógicas e lúdicas, entre outros exemplos. O Mentor TFP não é contratado pela escola, mas sim pela Teach For Portugal.”