quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Aprender a gostar de gostar

Daniel Lousada
O gosto de gostar é um gosto que se cultiva

Adília Lopes escreveu a "Prazenteira", a partir de um verso que abre um poema de Álvaro de Campos: "Gostava de gostar de gostar".

O gostar, aqui, não é gostar de alguma coisa: é tirar prazer da sensação que o gostar, independentemente de quê, nos traz. Não é um gostar qualquer, portanto.[1]

Aprender a gostar de gostar! Será que se pode ensinar?


Há os que tiram prazer do facto de não gostar de gostar; os que se deleitam a falar do que não gostam, proclamando ao infinito as razões do seu não-gostar, com indisfarçado gosto — até parece que se esforçam em garantir que não caem na tentação de gostar. E há os que, parafraseando Santo Agostinho, parece que nasceram a gostar [2]: um gosto que aprenderam a sentir, porque alguém os ensinou a cultivar e desenvolver continuamente.

Acho que o gosto de gostar é um gosto que se cultiva, aprendendo a olhar as coisas pelo que as coisas têm de melhor. E, neste sentido, sim, é possível ensinar a gostar!, se dermos como boa a mensagem presente no provérbio “diz-me com quem andas dir-te-ei quem és” e como bom o princípio que diz que, quem aprende, aprende com alguém ou alguma coisa. Mas aprender a gostar, como qualquer aprendizagem, dá trabalho: "Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa", escreveu Álvaro de Campos. A fadiga, obviamente, não é causada pelo sentir, mas pelo esforço de pensar, necessário para chegar a essa outra coisa, que o poeta faz por sentir.

Ensinar a gostar de gostar é o desafio que, qualquer professor ou professora, enfrenta diariamente na sala de aula: "conseguir que, no fim, o aluno goste daquilo que, no princípio, não gostava nada".[3] Um desafio que, de um modo simplista, poderemos começar por aceitar, confrontando o aluno com a pergunta: o que é que eu gosto, desta coisa que não gosto?

"Não há experiência que eduque melhor um homem do que a descoberta de um prazer superior, que ele teria ignorado, se não se tivesse dado ao esforço de o conhecer".[4] Assim, porque gosto de gostar, esforço-me por gostar e não vou embora ao primeiro desapontamento; porque gosto de gostar, o gosto está no centro do que me faz pensar. Então, para ensinar a gostar, nada melhor do que convocar os objectos onde a questão do gosto está mais presente: o objecto de arte. Nada melhor do que a arte para colocar a questão do gosto no centro do que nos faz pensar: um desenho, uma pintura, um poema…e talvez, a partir daqui, apontar para os conteúdos onde a questão do gosto não é tão óbvia.

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[1] “ 'Gostava de gostar de gostar' ”: a oração mais parece uma afirmação redundante, dada a enunciação, por três vezes, do mesmo verbo, duas delas na forma do infinitivo impessoal e uma terceira na primeira pessoa do pretérito imperfeito. Lembrando uma cantiga, este verso inicial apresenta uma construção simples e fechada [com a dupla regência em “de” terminando com o ponto final], mas que permanece aberta quanto ao sentido [com o terceiro gostar empregado intransitivamente], numa mescla de acabamento e inacabamento" (Claudia Souza e Márcio Suziki >>>

[2] in "Confissões" [Livro Terceiro]. Oeiras, Livraria apostolado da imprensa / Jornal Público, 2010: p. 57 ["Ainda não amava e já amava amar"].

[3] Paráfrase de António Nóvoa da seguinte expressão de Alain [pseudónimo de Émile-Auguste Chartier]: "Difícil é conduzir os homens a agradarem-se no fim, com o que, no princípio, não lhes agradava nada". In "Propos sur l'education". Paris, Quadrige/PUF, 1986.

[4] Alain [Émile-Auguste Chartier] "Propos sur l'education". Paris, Quadrige/PUF, 1986: pp. 13-15.


domingo, 29 de agosto de 2021

Reprovar ou reter, uma questão de semântica?

Daniel Lousada

Os alunos não reprovam, ficam retidos, ouço dizer, ironicamente, desde que, nos inícios dos anos noventa, a palavra repro­vação deu lugar a retenção em decretos e despachos, sem que, daqui, resultas­sem outros efeitos na progressão dos alu­nos, que passaram a ser retidos em vez de reprovados, no que foi entendido, por mui­tos, como apenas uma questão de se­mâ­ntica. E, no en­tanto, entre repro­vação e retenção há uma distância enorme. A re­provação tem subjacente um juízo de va­lor que a reten­ção não tem. Quando re­provo alguém es­tou a di­zer: O que fi­zeste é reprovável, isso não se faz; isto está er­rado, vai para o teu lu­gar e volta ao prin­cípio.

Imagine-se, por exemplo, que decido vi­a­jar do Porto até Lisboa. Embarco no “In­tercidades” e, ali pela região de Coimbra, a linha está interrompida. Fico então re­tido, à espera que a via seja desimpe­dida, ou que me seja dada alternativa para prosseguir a viagem. Compete à CP [Ca­minhos de ferro portugueses] fazer a ava­liação. E, na avaliação que fizerem, de certeza, não lhes passará pela cabeça fa­zerem-me regressar ao Porto, para ini­ciar de novo a viagem: fico retido apenas o tempo necessário à resolução do pro­blema. Mas, na re­pro­vação, a alternativa é voltar ao princí­pio, ponto!

Retenção não é reprovação. E só é repro­vação porque, desde início, se viu redu­zida a um conjunto de medidas puramente adminis­trativas e burocráticas, com "planos de re­cuperação" que, rapidamente, se integra­ram num processo de legitimação da re­pro­vação! Porque, sejamos claros, não há plano de recuperação que recu­pere, na recta final do ano escolar [Por isso é cha­mado também de retenção, por muito boa gente]. Neste sen­tido, um plano de recu­peração só será legítimo quando não ti­ver data fixa, num calendá­rio, para acon­te­cer, quando me for per­mitido “pa­rar” sempre que a dificuldade se fizer sen­tir: “parar” [reter naquele con­teúdo] porque algo acontece que não deixa avançar no caminho. Então ava­lio, e convoco os apoios e recursos neces­sá­rios se o desimpedimento da via for coisa que não sei fa­zer sozinho.

É aqui que tudo falha. Porque planos de recupe­ração, a acontecerem ali pela pás­coa, apenas dão para confirmar o óbvio, reduzindo a pedagogia a um mero acto administrativo. E, num ex­cesso burocrático, tudo se conjuga para que não se resolva problema nenhum: fa­zem-se diagnósticos e (pr)escrevem-se medidas, em impressos pronto-a-vestir, num processo em que a forma prevalece sobre o conteúdo. E se o problema não fi­car resolvido, que fique, pelo menos, bem arquivado, colocando entre ele e nós uma distância que não incomode!

domingo, 18 de julho de 2021

Sobre a utilidade das reprovações, em dois pontos de vista.


Daniel Lousada

Ponto de vista do aluno que fui.

Como qualquer aluno que se preze, não fui imune a re­provações. Reprovei portanto. Reprovei no 4º ano do li­ceu, ao tempo considerado um ano de escolari­dade muito propenso a este tipo de eventos.

Do que senti, quando me vi reprovado, recordo ter dito «Lá vou ter que empinar, outra vez, a “me§da” da bo­tâ­nica» [um dos conteúdos da disciplina de ci­ências na­tu­rais à qual, muito a custo, consegui posi­tiva]. Repro­var significava [julgo que significa ainda] repetir todas as dis­ciplinas, a partir do início, tenha ou não negativa a todas, saiba muito ou pouco ou coisa nenhuma de todas elas.

Não foi por culpa da botânica que reprovei. Mas isso não me dispensou de ter que voltar ao sistema re­pro­dutor das plantas, de decorar novamente os no­mes dos órgãos que compõem uma flor, de voltar a empinar os nomes das ordens e classes de plantas e plantinhas. E não pen­sem que à segunda o empi­nanço foi mais fácil!

Agora perguntem-me o que sei do que “aprendi” de botânica!

Não quero com isto dizer que o trabalho que a bo­tânica me deu tenha sido inútil; que só o que recor­damos vida fora é útil. Bem pelo contrário. O que aprendi de botâ­nica não fez de mim um botânico. Mas deu-me a cons­ci­ência de que um dia soube bo­tânica, da mesma forma que em tempos soube resolver uma raiz quadrada, um saber que em qualquer altura posso recuperar, haja necessidade ou interesse em fazê-lo.

Poderia ser diferente?

Ponto de vista do professor que fui

Uma escola de lugar único [1 professor – 4 classes], final de um ano escolar, nos inícios dos anos 70. Aquela cri­ança do 1º ano junta letras, soletra pala­vras em carrei­ri­nha e chega ao fim da frase sem me­mória do que leu no início. Ao ensaiar a conversa a ter com ela, dou- me conta que iríamos viver juntos outra vez, quer ela re­provasse quer não! Então, vou reprová-la para quê? – interroguei-me. Não fosse professor de uma turma que juntava as 4 classes e, talvez, não tivesse chegado à per­gunta, con­fesso: haveria, certamente, outra turma, ou­tro profes­sor, em “melhores condições”, com quem re­petir o per­curso que não concluiu comigo. Olho-a então uma vez mais. Faltam-lhe automa­tis­mos na leitura, é certo, mas, surpreendentemente [mais atenta, tal­vez, ao que me ouvia dizer aos “gran­des” do que à tarefa que tinha em mãos], sabia o que alguns da 4ª classe não sabiam sobre Viriato e as lutas que este tra­vou com os romanos, que D. Afonso Henri­ques, foi o 1º rei de Portugal, que o rio que passa em Cha­ves é o Tâ­mega, que o comboio passava por Vidago, Vila Pouca de Aguiar e terminava na Régua, … E dei por mim a pensar na minha dificuldade em me or­ganizar no meio de todos aqueles programas, que naquelas condições a di­visão do programa por anos de escolaridade, por vezes, era mais empecilho do que ajuda. Então, procurei olhar os quatro programas como se fossem um só, na pro­cura da ideia de um programa para cumprir em qua­tro anos.

Pensar a aprendizagem por ciclos de aprendizagem, para além do 1º ciclo não é tarefa fácil. E, pela ma­nifesta­ção de vontades a que assisto, não vislumbro a possibili­dade de procurar alternativas nos siste­mas educativos que, parece, resolveram ou estão em vias de resolver o problema. Continuo a ouvir di­zer que Portugal não é a Finlândia ou um qualquer outro país mais bem posicio­nado nestes campeona­tos. E não é de facto: nesses países vivem os que lá vivem; não são portugueses os que por lá moram; como não são portugueses os seus políticos e, já agora, os seus professores.