quinta-feira, 13 de março de 2025

Tu és livre e deves portanto libertar-te *

Vergílio Ferreira
A liberdade começa em saberes o que te oprime. Não bem em haver opressão, mas em reconhecê-la como tal. Porque pode haver opressão e tu julgá-la uma fatalidade; porque pode haver opressão e convencerem-te de que é necessária para a liberdade que te prometem. 

Só a liberdade absoluta é um perpétuo horizonte, para lá de todos os horizontes, que é o horizonte do impossível. Mas é nos limites humanos que tu hás-de querer ser livre e esses são os limites do homem, ou seja, do possível. Por isso não aceites que te inventem a liberdade mas apenas que te ajudem na tua libertação. Não admitas que ninguém seja livre por ti, mas assume tu próprio essa difícil dignidade. Reduz ao máximo o baldio para os outros, para que sejas tu ao máximo em tudo aquilo que fores. Não consintas que alguém seja a tua própria voz e chame à sua vontade a vontade que é tua. 

Ninguém é livre sozinho, porque o é apenas com os outros. Assim, só com os outros tu o poderás ser. Mas ser livre com os outros não é serem-no os outros por ti. Que a fronteira da tua liberdade te não seja a porta da casa para que tu sejas livre dentro e fora dela. Que a tua liberdade comece no pão que te espera à mesa e persista no desconhecido que te espera na rua; na palavra que pensaste e naquela que disseste; na paz do teu sono e na agitação da vigília; naquilo que és para ti e no houveres de ser para os outros; naquilo que és tu e naquilo que mostras ser. 

Constrói a tua alegria, mesmo a tua amargura, e não esperes que te digam se o estar triste ou alegre está previsto num programa. Que a distância de ti a ti seja por ti preenchida e nunca pela polícia ou um director de consciência — seu irmão. Tu és livre.

É portanto do teu dever libertares-te.

* Fonte: Vergílio Ferreira, Contra-Corrente (1969-76), Lisboa: Livraria Bertrand, 1980, pp. 217-18.

quarta-feira, 12 de março de 2025

Introdução à metafísica *

Martin Heidegger
Um texto de 1935. Quem diria!

Essa Europa, estando num estado de cegueira incurável, sempre pronta para se apunhalar a si mesma, encontra-se hoje na grande tenaz, encurralada entre a Rússia de um lado e a América do outro. A Rússia e a América, consideradas metafisicamente, são ambas a mesma coisa; a mesma fúria desolada da desenfreada técnica e da insondável organização do homem vulgar. Quando o recanto mais remoto do globo tiver sido conquistado pela técnica e explorado pela economia, quando um qualquer acontecimento se tiver tornado acessível em qualquer lugar a qualquer hora e com uma rapidez qualquer, quando se puder «viver» simultanemanete um atentado a um rei em França e um concerto sinfónico em Tóquio, quando o tempo for apenas rapidez, momentaneidade e simultaneidade e o tempo enquanto história tiver de todo desaparecido da existência de todos os povos, quando o pugilista for considerado o grande homem de um povo, quando os milhões de manifestantes constituirem um triunfo — então, mesmo então continuará a pairar e estender-se, como um fantasma sobre toda esta maldição, a questão: para quê? — para onde? — e depois, o quê?

O declínio espiritual da terra está tão avançado que os povos ameaçam perder a última força espiritual que permite sequer ver e avaliar o declínio como tal. Esta simples constatação nada tem que ver com um pessimismo cultural nem tão-pouco, como é óbvio, com um optimismo; pois o obscurecimento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odienta contra tudo o que é criador e livre, atingiram, em toda a terra, proporções tais que categorias infantis como pessimismo e optimismo já há muito se tornaram ridículas.

Fonte: Martin Heidegger, Introdução à Metafísica, tradução de Mário Matos e Bernhard Sylla, Lisboa: Instituto Piaget, s.d., p. 45.

sábado, 8 de março de 2025

«Recomeçar» *

Tive a sorte de me cruzar com  crónica «Recomeçar» (iMISSIO 29.10.2022) de Tolentino Mendonça, de quem recupero o título, que é tão amplo, e permito-me citar este trecho:

“Há um dom naquelas estações em que a vida se resolve transparente, se movimenta em harmonia e tudo habilmente coincide.”

E é nessa harmonia que me quero inspirar para hoje recordar as mulheres “sem fotos” que preencheram a vida que corria na minha cidade. Lembro alguns rostos, alguns nomes mas sobretudo vidas de trabalho, cansaço e pouco rendimento mas que aliviavam as de alguns citadinos.

Neste cortejo de rostos, recordo as “lavadeiras”! que vinham de Alfaião, com os burros carregados de roupa lavada com restos de cinzas e sabão feito em casa e que depois de bem esfregadas branqueavam ao sol. Um ritual de domingo, na casa da minha mãe, era receber a lavadeira, contar as peças da semana anterior e fazer a listagem das peças para lavagem na semana seguinte. Essa tarefa era minha desde que comecei a saber escrever. Lembro depois que a lavadeira almoçava connosco, fruto daquela afabilidade apanágio da minha mãe.

As leiteiras que bem cedo saiam dos seus lugarejos, ainda longe da cidade, e distribuíam o leite que invariavelmente era fervido antes de ser servido ao pequeno-almoço de quem tinha o privilégio de o poder tomar com o pão fresco, que as padeiras colocavam, enquanto nascia o dia, nos sacos deixados na porta de entrada de alguns mais favorecidos.

As mulheres que carregavam as estevas que acendiam os nossos fogões e as nossas braseiras, e com as quais se ousava discutir o preço do feixe das urzes.

As mulheres, que iam ao mercado manhã cedo, escolhiam os dias da chegada do peixe mais fresco, transportavam na cabeça sacos carregados e que, com andares “acrobatas”, fizeram os seus estragos nas “posturas” que se materializaram nas artroses precoces.

Era um tempo de percursos feitos a pé ou de burro, sem “luzes”, só de alguma esperança, com neve, frio, chuva ou sol…por caminhos enviesados, em madrugadas mal acordadas e regressos a casa com bolsos de dinheiros esmolados, porque todos discutiam preços.

Não sei se se chamavam Marias, Aidas, Antónias ou Guilherminas… Sei que eram mulheres de força, algumas viúvas de homens vivos, interessadas na criação dos seus filhos e que foram envelhecendo em silêncios nunca partilhados.

Hoje quero celebrar essas mulheres silenciosas, sem voz, só presentes quando se mostra um Portugal de miséria, e não deixar que as traições da memória venham dizer: “nesse tempo é que era bom”!
Lembro, a propósito, uma homenagem feita recentemente às carquejeiras que “invadiam a cidade do Porto”, até há 70 anos, e que um grupo de mulheres de boa vontade teve o ensejo de lhe prestar homenagem.

Quero voltar a minha Bragança, percorrer ruas e praças e verificar se, em algum tempo e em algum lugar,vejo essas gloriosas anónimas serem relembradas com a força e o respeito que merecem. Estou farta de títulos e de condecorações que hoje “te dou a ti” para tu, mais tarde, “dares a mim” ou a um dos meus…

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* Publicado originalmente a 28 de Outubro, em "Memórias e outras coisas... — Bragança".

Por vezes, em vez da pergunta, o que faz falta é deixar fluir a magia

A propósito de um relato de Manuela Castro Neves


A história que trago aqui, retirada das muitas histórias que a Manuela conta no seu livro, fala de um espanto, que me fez pensar que nem sempre é útil ir atrás de respostas, em propostas de projectos, quando ninguém quer saber de perguntas. E não interessando a pergunta, ninguém quer saber da resposta, quanto mais inventar projectos.