Lembrar Ruben A. [26.05.1990 - 26.09.1975]
Excerto de "O mundo à Minha Procura I", Assírio & Alvim, Lisboa, 1992: pp. 75-76
Eu claudicava em matérias fundamentais: matemática e latim. Em português conseguia às vez encontrar um mestre que me deixava ir comigo, que parava na aula e lia o meu exercício, como quem lê uma bíblia traduzida para chinês. Os outros colegas nada percebiam, uma vez que eu me afastava completamente do assunto dado para a dissertação. Não sei se foi Adolfo Casais Monteiro que um dia, na aula de português, me pediu para explicar um trecho dos Lusíadas depois de ter lido o meu exercício sobre o assassínio de Inês de Castro. O Adolfo foi professor escasso tempo, mas para o caso pouco importa. Quando eu avancei com o livro na mão para junto da mesa, ele pediu-me que fizesse a minha crítica do célebre episódio. Ao que eu simplesmente respondi: - Senhor professor, o assassínio foi a única página que me apaixonou nos Lusíadas. Faltam mais tragédias íntimas nos Lusíadas. Gosto muito de descrições e de tudo o resto, mas sinto-me mais entusiasmado ao ler
Se de humano é matar uma donzela
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a que soube vencê-la.
O Casais Monteiro olhou para mim como querendo convidar-me para tomar café à saída do Liceu, e, na sua cara expressiva, disse que me podia sentar pois estava satisfeito. Posso dizer que devo à famosa passagem dos Lusíadas o ter-me encaminhado pela primeira vez - por uma descoberta a que não era alheio o meu estado de espírito - no sentido trágico da vida, no sentido dos gregos, de Shakespeare e de pouco mais. (...) E realmente pensando melhor, passados tantos anos, vejo que a falta de tragédia é que torna tão insípidas a nossa história e a nossa literatura. De humano, em grande parte, tivemos Inês de Castro, um pouco de Frei Luís de Sousa, e páginas da História Trágico-Marítima. De interesse universal, de valor transposto ao teatro, ao bailado, a novas interpretações, só na verdade a maravilhosa coroação daquela que depois de morta foi rainha.
Passados pouco meses, a liberdade mental de Adolfo Casais Monteiro meteu-o na cadeia. Apareceu, então, como professor de português o animal que regia latim e que a meu respeito tinha a mais fraca das opiniões. Começou para mim o Calvário de dividir orações, encontrar os complementos directos, transitar no intransitável, gramaticalizar de novo os Lusíadas de Camões. Murchei.
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