sábado, 25 de setembro de 2021

Neurociências e trabalho pedagógico

Philippe Meirieu

Versão portuguesa de Daniel Lousada [Ler em PDF >>>]

Título Original: “les neurosciences ne feront jamais la classe” [Cap. 5 de La Riposte. Pour en finir avec les miroirs aux alouettes, Paris, Autrement, 2018: pp. 167-179].

Felizmente que a maior parte dos neurocientistas, não pretende criar uma neuropedagogia e, a este título, merecem ser ouvidos. Não é uma questão de negar ou subestimar o interesse dos conhecimentos adquiridos, hoje, neste domínio da investigação. A imagiologia cerebral contribuiu para descobertas estimulantes. Em todo o caso a imagiologia por ressonância magnética [1] não serve para observar todas as situações de aprendizagem, em todos os contextos, nomeadamente na sala de aula, ou durante um passeio pela natureza! O fascínio pela imagiologia deve-se, em grande medida, ao facto de esta mostrar o que até então era inacessível: a nossa actividade cerebral. Na verdade, a imagiologia permite-nos apenas estabelecer correlações – entre a actividade de certas zonas cerebrais e certos comportamentos – e dificilmente permitem inferir a causalidade que leva a prescrições pedagógicas precisas…

É verdade, contudo, que as neurociências permitem a certos investigadores, graças a protocolos sofisticados, revelarem fenómenos muitos interessantes. Assim Olivier HOUDÉ, professor de psicologia do desenvolvimento na Universidade de Paris-Descartes, replicou a experiência de Jean PIAGET sobre a comparação, por parte de uma criança, de duas séries de fichas mais ou menos espaçadas, e demonstrou, com o apoio de imagens do cérebro, a importância da inibição da resposta imediata por parte do córtex frontal, para entrar num registo de verificação, de demonstração e de argumentação.[2] Desta forma, confirmou experimentalmente os trabalhos no âmbito das didácticas, sobre a necessidade de trabalhar com o aluno, sobre as suas representações ou convicções espontâneas,[3] como Janusz KORCZAK já antes defendera, com a sua bela intuição, sobre a importância de pôr travão ao impulso espontâneo, para colocar em acção o pensamento. Mas, por outro lado, nada disto nos fornece o interruptor, que permitiria desencadear a inibição da reacção imediata, por parte do córtex frontal!

É portanto à pedagogia, que cabe inventar o interruptor, aquele que controla a desaceleração necessária ao desenvolvimento de um pensamento reflexivo. Compete- lhe a ela fazer da sala de aula um espaço onde se dá tempo para examinar antes de julgar, a preocupação de se documentar antes de afirmar, o hábito de demonstrar antes de impor, a vontade de reflectir antes de agir. Nada, basicamente, que não tenhamos encontrado nos fundadores seculares, com Ferdinand BUISON, Henri MARION, James GUILLAUME ou Octave GRÉARD.[4]

Dir-se-á, contudo, que as neurociências estão na origem de realizações decisivas, que mudaram a nossa visão da educação, evocando a noção de “plasticidade cerebral”. Este ponto é, com efeito, essencial. Quando a pedagogia falava do “postulado da educabilidade”, formulava uma exigência ética, um princípio necessário para não nos deixarmos tentar pela facilidade da “psicologia do dom”, uma forma de comunicar, explícita ou implicitamente, ao outro, uma predição negativa, que ele faria o possível por não nos desmentir: «não podemos instruir se não acreditarmos na inteligência da criança», dizia já o filósofo ALAIN.[5] Não podemos ensinar sem apostar que todas as crianças conseguem aprender e crescer. E as neurociências confirmam que esta aposta não é tão disparatada como nos querem fazer crer.[6] Mas os pedagogos não ficam por aí: ao necessário voluntarismo educativo, eles opõem um também necessário limite: a aprendizagem não se decreta; ela supõe a implicação daquele que aprende, porque, em algum momento, ele precisa começar a fazer o que não sabe como fazer, para aprender a fazê-lo e que tudo corra bem.[7] A coragem para começar – a andar, a falar, a escrever, a resolver equações de 2º grau, a nadar ou a manipular ferramentas, a fazer uma dissertação ou uma declaração de amor – pelo que nem a pedagogia mais elaborada poderá, jamais, dispensar seja quem for. Não pode, com efeito, deixar de criar um envolvimento o mais estimulante possível, de desenvolver uma teia de relações sociais que favoreçam a confiança em si e a consciência da importância da aprendizagem, para incentivar o outro a crescer… mas sem nunca forçá-lo nem, por maioria de razões, fazê-lo por ele.[8]

Porque uma predisposição nunca é – mesmo em medicina – uma predestinação, os neurocientistas devem, como os pedagogos, ter a preocupação de diferenciar sem catalogar, de se adaptar a cada um e a cada uma, mas sem desistir de descobrir as perspectivas e caminhos por conhecer.

 Atenção! Não usar a explicação cerebral como desculpa, aconselha Emmanuel FOURNIER: «os problemas parecem sempre mais suportáveis se eles se devem a causas que não são da nossa responsabilidade. É o cérebro que carrega o fardo. Nós utilizamo-lo para nos desculpabilizarmos, ou seja, para nos demitirmos das nossas responsabilidades.[9]» E a “desculpa cerebral” pode ocupar, com eficácia, o lugar da “desculpa sociológica”, tantas vezes utilizada a partir de uma leitura simplista de BOURDIEU: nada mais tentador, com efeito, que transformar uma dificuldade da criança [de que nós poderemos, pelo menos em parte, ser responsáveis] num problema neuronal… mesmo que defendamos, além disso, a maleabilidade do cérebro. Podemos ver claramente, no limite, o que não é de modo algum uma doutrina pedagógica, que se esforça para tornar as tensões que a atravessam numa fonte de superação, mas um conjunto de observações com usos múltiplos e até contraditórios. Quando, por vezes, pretendem fundar uma pedagogia, na realidade as neurociências apenas alimentam o pragmatismo em busca de eficácia imediata, muitas vezes cega, quanto aos seus objectivos.

Além disso, quando querem ser mais precisas, as neurociências fornecem-nos dados sobre apropriação e memorização de conhecimentos, que podem esclarecer-nos sobre o assunto, mas são incapazes de nos indicar uma prática. Elas insistem, por exemplo, no facto de que a aprendizagem é mais eficaz quando o feedback – as observações e avaliações dos adultos – é positivo, correctivo e rápido; elas defendem que os conhecimentos e o saber-fazer se inscrevem no cérebro progressivamente e que as conexões cerebrais não se instalam duradouramente se não forem exercitadas regularmente; elas sublinham a importância da consolidação dos saberes, para que estes fixem na memória os seus traços. Tudo isto constitui indicadores preciosos para delinear uma intervenção pedagógica, mas não permitem decidir sobre que conteúdos culturais oferecer aos alunos para mobilizá-los, nem mesmo a forma como lhos vamos apresentar. Tão pouco permite, como ouvimos recorrentemente aqui e ali, a reabilitação do “aprender de cor”. Não porque entendamos que o “aprender de cor” seja em si mesmo negativo, porque corresponderiam sempre a métodos mecânicos de aprendizagem – “aprendi de cor” numerosos poemas e tenho muito prazer em recitá-los –, mas porque “aprender de cor” não é verdadeiramente possível, se não se investir numa aprendizagem que pressupõe, a montante, o trabalho sobre o conhecimento em questão, antecipando o uso a fazer desse conhecimento e uma reflexão, no decurso da aprendizagem, sobre o caminho para aprender. O que pressupõe, muito simplesmente, utilizar a memória não como um mecanismo para gravar e armazenar as informações, mas como um meio, especificamente humano, de ligar o passado, o presente e o futuro numa intenção ou num projecto.

E é a mesma prudência que deve guiar-nos, quando aplicamos os conhecimentos das neurociências à aprendizagem da leitura. Não é este, infelizmente, o caso. Com efeito, se existem contribuições, particularmente estimulantes, sobre os fenómenos do cérebro, que são correlativos a certos comportamentos de leitura,[10] se temos debates sérios e argumentos sólidos sobre a questão[11], vemos, sobretudo, desenvolver-se uma vulgata oficial, que defende os métodos silábicos, em nome de argumentos, no mínimo, discutíveis.

É, com efeito, muito interessante saber, que é a “reciclagem dos neurónios da visão”, que permitem o acesso à leitura; assim compreende-se melhor, porque uma criança que constata, que o lado para o qual a pega de uma chávena está virado não modifica a natureza da chávena, acredita que o b e o d são a mesma letra, tal como o são o p e o q.[12] Da mesma forma se explica o fenómeno da “escrita em espelho” [quando a criança escreve de maneira inversa, e os seus textos só são legíveis se vistos com a ajuda de um espelho]: podemos então relativizar a gravidade desta disfunção e, benevolente e pacientemente, introduzir ao longo da aprendizagem as correcções necessárias para ajudar a ultrapassar esta dificuldade. Compreendemos melhor, igualmente, graças às neurociências, os problemas de certas crianças: aquelas que sofrem para detectar invariâncias [cadeias de letras idênticas] em diferentes grafias, aquelas que não percebem que uma letra pode mudar totalmente o significado de uma palavra, aquelas que são incapazes de ler uma palavra nova complexa, porque não conseguem dividi-la nos elementos que a compõem. Tudo isto alerta-nos, efectivamente, para a necessidade de uma aprendizagem silábica específica, mas nada nos diz sobre o momento em que esta deve ser feita, o tipo de exercícios a fazer, a natureza dos textos a propor ou o comportamento pedagógico a adoptar; tudo isto deixa de lado a questão essencial do estatuto da escrita na sala de aula: como pedir às criançasque investam na leitura-escrita, sem que isso seja para elas uma oportunidade de comunicação, nem de emancipação, mas simplesmente um momento de sofrido numa operação escolar de pura normalização? Isto não se reduz, apenas, a uma questão de minimizar a compreensão, no decurso do processo de aprendizagem da escrita: colide com o próprio significado do acto de escrever… Em suma, são totalmente injustificadas as orientações ministeriais que, seguindo o lóbi de GILLES de ROBIEN e fingindo confiar na neurociência, passam alegremente do imperativo da vigilância silábica à prescrição dos “métodos silábicos”.

Destorção surpreendente [opiniões apresentadas como factos] ampliada massivamente pelos média. Aqui se lisonjeia a opinião nostálgica pelos bons métodos antigos, de que antes é que era bom – evidentemente, de quando éramos jovens! –, tudo tendo por base uma leitura, no mínimo abusiva, das observações das pesquisas cientificas mais avançadas. Que dizer mais? Esta “reconciliação” política do melhor da modernidade e do melhor da tradição funciona perfeitamente. E que importa se as instruções que aconselham estas abordagens,[13] são elas mesmo, quando as olhamos mais de perto, pouco mais, com leves diferenças, que um resumo das conclusões de um estudo americano de 1998[14], que sublinha a utilidade de um trabalho específico sobre a correspondência grafema-fonema [signo escrito/unidade sonora] … que é já prática adoptada pela quase totalidade das crianças do 1º ciclo! A questão aqui, tal como a vejo, não é verdadeiramente pedagógica. Ela é simplesmente política: «Descansem pessoas de bem. Nós descobrimos tanto o problema quanto a solução das dificuldades da criança, na sua relação com a palavra escrita. Nós tomamos o assunto em nossas mãos!» Entristece-nos ver os neurocientistas implicados neste género de situações.

Porque na realidade, se o interesse das neurociências é inegável para a pedagogia, é impossível considerá-las como uma ferramenta miraculosa, capaz de resolver todos os problemas educativos. Por um lado, porque as novas descobertas científicas não anulam, por si sós, as mais antigas: as neurociências não invalidam, por exemplo, a abordagem de WINNICOTT[15], nem o trabalho clínico do psicólogo ou do psiquiatra. Por outro lado, porque a compreensão do ser humano não se limita a uma só destas dimensões: a abordagem cognitiva e afectiva das neurociências não beliscam, em nada, as investigações sobre as dimensões sociais e culturais do indivíduo, pelo que não deveriam esquecer as obras linguísticas ou didácticas propriamente ditas. É verdade, o cérebro pode aparecer como a “cabine de pilotagem”, onde todos os dados se encontram [biológicos, sociológicos, cognitivos, afectivos, etc.] e donde partem todas as decisões em matéria de aprendizagem, em todos os domínios. Mas as decisões do piloto não podem, em caso algum, ser reduzidas a uma combinação mecânica destes dados, tal como poderia ser feita por um computador.

Com efeito, o que caracteriza o ser humano, enquanto sujeito, é que ele é portador de projectos e selecciona as informações que recebe em função destes. A actividade duma criança, as suas motivações, os seus problemas, as suas perspectivas, não podem ser apreendidas de um modo puramente objectivo, acumulando informações científicas muito precisas. Impossível ignorar o que o move, e a que não acedemos a não ser através do relacionamento com ele. Essa relação inclui, é claro, uma parte emocional, que as neurociências também podem abordar, mas mais profundamente deve constituir um convite onde a confiança e a exigência favoreçam a emergência da liberdade e dos anseios do outro. Por outras palavras, se a neurociência e todas as outras abordagens científicas do desenvolvimento da criança podem ajudar-nos a criar melhores condições de aprendizagem, não poderão nunca esclarecer-nos sobre as causas: o que motiva o sujeito, o que desperta em si o desejo de aprender as fábulas de la Fontaine ou as equações de 2º grau, o que lhe proporciona a alegria de compreender um poema de Verlaine ou apreciar um concerto de Mozart, como a satisfação de ajustar um entalhe e um encaixe ou montar um circuito electrónico, tudo isto não se reduz – felizmente –, a uma perspectiva científica, condenada a isolar eventos, quando é necessário relacioná-los, ignorar o sujeito quando é, precisamente, necessário mobilizá-lo.

Como refere o filósofo alemão Markus GABRIEL, «o “eu” não é uma chave USB[16]»! Não o carregamos de conhecimentos, como um ficheiro informático. O “eu” – em matéria de aprendizagem, como noutros domínios – age apenas para alcançar um objectivo. Os seus actos têm um sentido para si, mesmo que não o considere totalmente. E é porque aceitamos o diálogo, e caminhar com o outro nessa busca do sentido, que contribuímos para sua educação.

Nenhuma ciência nos liberta, pois, do trabalho educativo, que consiste na procura do que é bom e verdadeiro, os conhecimentos e os saberes desejáveis para e pela criança, graças ao nosso exemplo e à nossa criatividade. Temos “ciências da educação” – e elas devem, evidentemente, desenvolver- se respeitando a pluralidade de abordagens – não há nem haverá nunca, para desgosto de Stanislas DEHAENE, a ciência da educação, no singular[17]: a existir, esta não seria mais do que uma “ciência de adestramento”. O verdadeiro ensino ocorre nas situações em que possibilitamos o encontro autêntico, em grande parte imprevisível, entre humanos e com as suas obras.

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[1] A ressonância magnética permite visualizar a existência [mas não o conteúdo] duma actividade cerebral, graças à observação da variação de fluxos sanguíneos nas diferentes zonas do cérebro.
[2] Numerosas crianças afirmam, espontaneamente,que o número de fichas é mais elevado quando a linha é mais comprida. Outros inibem esta reacção e, antes de dar a resposta, verificam fazendo corresponder cada ficha de uma linha à ficha correspondente da outra. Cf. Olivier HOUDÉ, Apprendre à resister, Paris, Le Pommier, 2014.
[3] Quando nos referimos ao sujeito de uma frase, o aluno crê que é aquele que pratica a acção [pelo menos na voz activa] … o que não é o caso na frase [na voz activa, portanto] “Pedro leva uma palmada”!
[4] Cf. Dictionaire de pédagogie et d’instruction primaire.
[5] Alain, Propos sur l’éducation, Estou longe de partilhar todas as concepções de Alain sobre a educação, em particular o fascínio pelo ascetismo intelectual absoluto – sala de aula com paredes nuas, insistência no exercício formal – que ele considera com um preâmbulo da aprendizagem, enquanto que vejo isto como uma dimensão educativa a cultivar e um objectivo a atingir. Estou convencido que as suas propostas sobre educação constituem um texto riquíssimo, suspectível
de alimentar a reflexão para lá das clivagens tradicionais.
[6] Nenhuma pessoa mantém a “estrutura cerebral” que lhe foi “dada à nascença”; ela está sujeita a pressões externas, nomeadamente pela educação, evoluindo por esta via, no decurso do seu desenvolvimento [nota do tradutor].
[7] Só pela investigação pedagógica chegamos à proposta de práticas capazes de levar os aprendizes a esta necessária implicação [nota do tradutor]
[8] Sobre esta difícil, questão permito-me reenviar para o meu livro Le Choix d’educateur. Éthique et pedagogie, Paris, ESF sciences humaines, 1991.
[9] “Le cerveau, gage de bonne éducation?”, conferência de Emmanuel FOURNIER no colóquio “L’aventure des neurosciences”, Angers, 2 de Junho, 2015.
[10] Encontraremos muitos no livro publicado por Stanislas DEHAENE em 2007, sobe o título Les Neurones de la lecture [Paris, Odile Jacob]. O autor refere então que «estamos longe de uma neurociência prescritiva» e que as neurociências não têm por vocação substituir a
psicologia experimental e a pedagogia. Ele escrevia também que «na sala de aula, o professor continua a ser o único mestre a bordo. É a ele que cabe criar os exercícios, as estratégias e os jogos que despertem as crianças para a leitura. E dá conta das dificuldades particulares que requere uma perícia pedagógica que eu respeito profundamente» [idem]. Hoje, presidente do conselho científico da educação, criado por Jean-Michel BLANQUER, parece que virou partidário de uma “neurociência prescritiva” [Le Monde, 15 de Janeiro 2018].
[11] Ver em particular os trabalhos de Édouard GENTAZ e Patrice DESSUS, Psycologie cognitive de l’appentissage. Lire, écrire, compter [Paris, Dunod, 2006], Levantamentodirigido por Roland GOIGOUX, “Lire et écrire”. Estudo da influência de práticas de ensino da leitura e escrita, sobre a qualidade das primeiras aprendizagens”, e “Apprentissage de la lecture: le point sur les acteurs et les pratiques”, debate entre Laurent CROS e Roland GOIGOUX, realizado por Luc CÉDELLE, le Monde,
15 de Maio 2018.
[12] Este fenómeno alguns de nós identificam de “confusão cognitiva” – a lógica presente na identificação das letras segue a lógica da identificação dos objectos
[nota do tradutor].
[13] Instruções do Ministério da Educação francês, consagradas ao ensino da leitura [nota do tradutor].
[14] Este estudo do National Reading Panel de há vinte anos, é conhecido pelo nome de Teaching children to read. Ele compara os resultados de 38 inquéritos [nenhum dos quais realizado em França] sobre a leitura. Os resultados deste estudo são hoje pouco contestados, desde logo, evidentemente, que não os questionem, para além das suas conclusões comprovadas.
[15] Donald WINNICOTT, pediatra e psicanalista. Interessou- se pelas condições psíquicas do desenvolvimento do bebé e da criança, pelos comportamentos parentais e a função do jogo.
[16] “Porquoi je ne suis pas mon cerveau”, Paris, Jean- Claude Lattès, 2017.
[17] Le Monde, 15 Janeiro 2018.

domingo, 12 de setembro de 2021

É necessário, urgente, fazer regressar às escolas os pedagogos e a pedagogia

António Nunes

Leio em Apple & Jungck que «a intensificação leva os professores a seguir por atalhos, a economizar esforços, a realizar apenas o es­sencial para cumprir a tarefa que têm entre mãos; obriga os pro­fessores a apoiar-se cada vez mais nos especialistas, a esperar que lhes digam o que fazer».* Mas dar ou vender aulas, qual vendedor dedicado a passar informação por catálogo, não chega para que alguém se pense e se diga professor.

Sustentada na pedagogia, a profissão de professor tem uma se­mântica própria que, construída ao longo de séculos, nos foi dei­xando exemplos fabulosos da parte seus melhores, na promoção dos valores, do conhecimento e das competências que lhe dão corpo.

Desligada da reflexão pedagógica, a profissão de professor cai num «processo de depreciação da experiência e das capacidades adquiridas ao longo dos anos […], a qualidade cede o lugar à quan­tidade. [...] Perdem-se competências colectivas à medida que se conquistam competências administrativas. Finalmente, é a estima profissional que está em jogo, quando o próprio trabalho se encon­tra dominado por outros actores»,* obcecados por uma educação que imaginam científica.

Reivindiquemos ser autores [não apenas actores] na profissão que escolhemos.

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* APPLE,  Michael &  JUNGCK,  Susan.  "No  hay  que  ser  maestro  para  enseñar  esta unidad:  la  enseñanza,  la  tecnologia  y  el  control  en  el  aula”. Revista  de  Educación, 291, 1990, pp. 149-172

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Desaprender: divagações a propósito d'«o vício de explicar»!

Daniel Lousada

Leio Vergílio Ferreira e dou comigo a divagar sobre a expressão, “Levei quarenta anos a explicar coisas aos alunos. Ficou-me assim o vício de explicar, mesmo o inexplicável. Precisava agora de outros quarenta anos para desaprender a explicação do que expliquei”.[1] Talvez que Vergílio Ferreira, ao dizer «... quarenta anos para desaprender...», o dissesse com a consciência de quem sabe que a cultura profissional, onde nos deixamos cristalizar, sem disso nos darmos conta, é um instrumento poderosíssimo de resistência à busca de outros caminhos![2] Ou talvez o que disse não fosse mais do que o desabafo de um professor desencantado, não sei. E nas divagações em que me encontro, centro-me nas três palavras que marcam esta confissão [uma espécie de desejo?] do autor de “Aparição”: vício, explicar e desaprender.

Desaprender é palavra que traz a dimensão psicanalítica com que a pedagogia nos convida a encarar o nosso lugar na profissão.[3] Desaprender é desfazer o que aprendemos, não é esquecer: é um acto de vontade e não um acto involuntário da memória. Mesmo admitindo a palavra esquecer no conceito de desaprender, quando muito ela será um esquecer que não é esquecimento que quer.[4] Até porque não esqueço, só porque quero, o que aprendi sobre “rios”, mas querendo desaprendo de seguir rio abaixo até ao mar, questionando se é razão bastante aquela [a da corrente] que me impele a navegar, sempre, rumo à mesma foz. Digo, então, que desaprender vai mais naquele sentido de quem nos diz “esquece”, não como conselho para largar da memória o que aprendemos [bem pelo contrário], mas para activar lembranças na busca daquilo que nos bloqueia, nos amarra na corrente, indiferentes a outras escolhas que tenhamos por que optar!

Volto a Vergílio Ferreira e releio: “desaprender a explicação do que expliquei”. E interrogo-me: o que explico diariamente na aula, faço-o consciente da força da minha explicação, como método de ensino? Ou porque, ficando-me apenas «o vício de explicar, mesmo o inexplicável», já não dou conta do sentido a que me prende a “corrente” que me faz navegar? Sendo o vício sinónimo de dependência, talvez que o vício de explicar nos tenha desviado da conjugação de outros verbos, porventura daquele que lhe está mais próximo, não pelo sentido, mas pela etimologia: implicar.[5] É certo que, se o aluno não entende, é preciso explicar. Mas como fazer entender quem não está implicado?

“O essencial é saber ver / ... / Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),/ Isso exige um estudo profundo, / Uma aprendizagem de desaprender. / ... / Procuro despir-me do que aprendi, / Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, / e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, /... /”.[6]

Se quero acompanhar um aluno, vê-lo e entendê-lo no seu modo de aprender, não tenho mais do que desaprender o modo de ensinar que aprendi [naquele modo de aprender que me ensinaram],[7] e procurar aprender de novo, agora com ele, implicado com ele, para que ele possa aprender comigo também. A explicação, não fazendo agora mais parte de um vício, até pode estar presente, só que numa relação marcada por outros tons: sem deixar de partir de uma geometria vertical [aquela que caracteriza a relação professor-aluno[8]] adquire os traços de horizontalidade das relações que vêem o sujeito que aprende como ser autónomo, que se implica na sua própria formação, longe da passividade de quem apenas ouve.


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[1] In «Pensar». Lisboa, Livraria Bertrand, 1992: p.178.
[2] Cristalizados, corremos o risco de nos deixarmos ficar na rotina, contribuindo pouco para o avanço da profissão, da sua cultura, portanto.
[3] Pergunto-me, se esta não será uma importante dimensão a contemplar em qualquer programa de formação de professores.
[4] Desaprender é a acção contrária de aprender; não é bem esquecer, se bem que, com o tempo, o esquecimento possa acabar por resultar da acção de desaprender. O português do Brasil tem uma palavra que os dicionários de português europeu não contemplam: desaprendizagem – significa abrir espaço em nossas mentes para novas aprendizagens, eliminar modelos mentais que nos fecham para aprender o novo; ou então um convite a ver melhor o que aprendemos: desaprendendo reaprendemos. De certa forma, trata-se de recuar no trajecto, que o pensamento traçou.
[5] Explicar [explicare: desdobrar, desenrolar, estender] e implicar [implicare: dobrar em volta de, enrolar, envolver] derivam do verbo latino plicare, que significa dobrar.
[6] «Guardador de rebanhos» (excertos), in Alberto Caeiro. (Fernando Pessoa) Poesia. Lisboa, Assírio & Alvim, 2001: p.58 e 82.
[7] Dito assim, «não tenho mais do que...», até parece que digo que é fácil. Mas NÃO É.
[8] Se assim não for não é da relação professor-aluno que tratamos: um professor não perde o poder que tem, apenas porque decide larga-lo da mão a favor do aluno.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Aprender a gostar de gostar

Daniel Lousada
O gosto de gostar é um gosto que se cultiva

Adília Lopes escreveu a "Prazenteira", a partir de um verso que abre um poema de Álvaro de Campos: "Gostava de gostar de gostar".

O gostar, aqui, não é gostar de alguma coisa: é tirar prazer da sensação que o gostar, independentemente de quê, nos traz. Não é um gostar qualquer, portanto.[1]

Aprender a gostar de gostar! Será que se pode ensinar?

Há os que tiram prazer do facto de não gostar de gostar; os que se deleitam a falar do que não gostam, proclamando ao infinito as razões do seu não-gostar, com indisfarçado gosto - até parece que se esforçam em garantir que não caem na tentação de gostar. E há os que, parafraseando Santo Agostinho, parece que nasceram a gostar, que ainda não sabiam o que é gostar e já gostavam de gostar:[2] um gosto que aprenderam, porque os ensinaram, a cultivar.

Acho que o gosto de gostar é um gosto que se cultiva, aprendendo a olhar as coisas pelo que as coisas têm de melhor. E, neste sentido, sim, é possível ensinar a gostar!, se dermos como bom o princípio que diz que, quem aprende, aprende com alguém ou alguma coisa. Mas aprender a gostar, como qualquer aprendizagem, dá trabalho: "Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa", escreveu Álvaro de Campos. A fadiga, obviamente, não é causada pelo sentir, mas pelo esforço de pensar, necessário para chegar a essa outra coisa, que o poeta faz por sentir.

Ensinar a gostar de gostar é o desafio que, qualquer professor ou professora, enfrenta diariamente na sala de aula: "conseguir que, no fim, o aluno goste daquilo que, no princípio, não gostava nada".[3] Um desafio que, de um modo simplista, poderemos começar por aceitar, confrontando o aluno com a pergunta: o que é que eu gosto, desta coisa que não gosto?

"Não há experiência que eduque melhor um homem do que a descoberta de um prazer superior, que ele teria ignorado, se não se tivesse dado ao esforço de o conhecer".[4] Assim, porque gosto de gostar, esforço-me por gostar e não vou embora ao primeiro desapontamento; porque gosto de gostar, o gosto está no centro do que me faz pensar. Então, para ensinar a gostar, nada melhor do que convocar os objectos onde a questão do gosto está mais presente: o objecto de arte. Nada melhor do que a arte para colocar a questão do gosto no centro do que nos faz pensar: um desenho, uma pintura, um poema…e talvez, a partir daqui, apontar para os conteúdos onde a questão do gosto não é tão óbvia.

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[1] “ 'Gostava de gostar de gostar' ”: a oração mais parece uma afirmação redundante, dada a enunciação, por três vezes, do mesmo verbo, duas delas na forma do infinitivo impessoal e uma terceira na primeira pessoa do pretérito imperfeito. Lembrando uma cantiga, este verso inicial apresenta uma construção simples e fechada [com a dupla regência em “de” terminando com o ponto final], mas que permanece aberta quanto ao sentido [com o terceiro gostar empregado intransitivamente], numa mescla de acabamento e inacabamento" (Claudia Souza e Márcio Suziki >>>

[2] in "Confissões" [Livro Terceiro]. Oeiras, Livraria apostolado da imprensa / Jornal Público, 2010: p. 57 ["Ainda não amava e já amava amar"].

[3] Paráfrase de António Nóvoa da seguinte expressão de Alain [pseudónimo de Émile-Auguste Chartier]: "Difícil é conduzir os homens a agradarem-se no fim, com o que, no princípio, não lhes agradava nada". In "Propos sur l'education". Paris, Quadrige/PUF, 1986.

[4] Alain [Émile-Auguste Chartier] "Propos sur l'education". Paris, Quadrige/PUF, 1986: pp. 13-15.