«Nos liceus, o ensino do português é um exercício burocrático, um inferno gramatical», leio na página de Luís Osório [1]. E passando os olhos pelos comentários, retenho: «O português é completamente diferente de há 15/20 anos (até menos). A maioria cria uma enorme resistência à escrita porque não traz consigo hábitos de leitura». Tanto quanto julgo saber da minha relação com a escrita, não creio que este comentário reflicta, inteiramente, o que acontece.
Há tempos, ao falarmos do que andávamos a ler, um amigo diz-me: «Não tenho lido nada de especial. Uma coisa daqui, outra dali... Ultimamente, não me tem puxado a escrita!». Com muitos de nós, por estranho que pareça, é a escrita que puxa a leitura; é o "projecto" de escrita que faz ler! A leitura vem para ajudar a responder a um desejo de escrita.
Muitos professores fazem da "escrita" dos seus alunos o objecto que os leva à aprendizagem da leitura |
Se observarmos bem o que acontece nas escolas, não são só os alunos que têm resistência à escrita: muitos de nós também resistem à escrita! Quantas vezes falámos com os nossos pares, ou mesmo entre amigos, sobre o que escrevemos, da mesma forma que falamos de livros? [3] Quantas vezes nos expomos frente aos nossos alunos com a nossa escrita? [4] Qual é a nossa reacção quando chega a nossa vez de escrever uma acta, um relatório?
Não vamos confundir a nossa reacção, face à escrita de uma acta, com a dos nossos alunos, face à escrita que os "convidamos" a escrever – dir-me-ão –. Não sei! Não sei se não será a escrita de "actas" que, a maior parte das vezes, os nossos alunos sentem escrever.
No que me toca, não me lembro de ter escrito alguma coisa porque quis, na escola. Mesmo quando era "convidado" a escrever sobre um tema à minha escolha, não era sobre o que queria que escrevia ! E isto porque, tal como na leitura, a liberdade na escrita não tem hora marcada num calendário ou agenda. Tal como o verbo ler, o verbo escrever não suporta o imperativo [5]. Então, a questão que se coloca é saber como promover a escrita livre, aquela escrita que faz de facto escreventes, num espaço [a escola] onde a escrita é obrigatória. Como tentativa de resposta, Freinet propôs a instituição do Texto Livre.
Sobre este tema, LER: A propósito de Texto Livre >>>
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[1] «Nos liceus, o ensino do português é um exercício burocrático, um inferno gramatical, uma ditadura que mata a capacidade de imaginar. Viajar pela língua deveria ser um exercício de liberdade, uma regata de alma e identidade, não uma colher diária de óleo de fígado de bacalhau. As regras devem ser conhecidas com o conhecimento dos livros e autores, com a história da literatura e a história da história. Mas infelizmente tudo isso vem depois, quando tantos já se perderam. Um equívoco» [LUÍS OSÓRIO - 11.09.2022].[2] Francine Prose, Ler como um escritor, Casa das Letras, Lisboa, 2012.
[3] Tive colegas, bem mais leitores do que eu, que devoram livros como não me lembro de ter devorado e que, no entanto, para além da escrita que os "ossos do ofício" obrigam, diziam não escrever. Falta, tantas vezes, o hábito do uso da escrita como instrumento que ajuda a pensar, por exemplo, a profissão. Falta aprender a escrever a profissão. Isto liga-se com enunciado de que, em muitos de nós, é a escrita que puxa a leitura: a leitura que apoia a escrita que fazemos da profissão.
[4] Há professores que se obrigam, com frequência, a escrever sobre o que propõem aos seus alunos, nas mesmas condições em que estes escrevem: na sala de aula, ao mesmo tempo que eles.
[5] "O verbo ler não suporta imperativo – escreve Daniel Pennac –. É uma aversão que compartilha com outros verbos: o verbo amar, o verbo sonhar...". in Como um Romance, Edições ASA, Porto, 1993: p. 11
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