sábado, 8 de março de 2025

«Recomeçar» *

Tive a sorte de me “cruzar” com a excelente crónica de Tolentino Mendonça, de 29 de Setembro de 2022 {LER>>>}. Recupero o título que é tão amplo e permito-me citar este trecho:

“Há um dom naquelas estações em que a vida se resolve transparente, se movimenta em harmonia e tudo habilmente coincide.”

E é nessa harmonia que me quero inspirar para hoje recordar as mulheres “sem fotos” que preencheram a vida que corria na minha cidade. Lembro alguns rostos, alguns nomes mas sobretudo vidas de trabalho, cansaço e pouco rendimento mas que aliviavam as de alguns citadinos.

Neste cortejo de rostos, recordo as “lavadeiras”! que vinham de Alfaião, com os burros carregados de roupa lavada com restos de cinzas e sabão feito em casa e que depois de bem esfregadas branqueavam ao sol. Um ritual de domingo, na casa da minha mãe, era receber a lavadeira, contar as peças da semana anterior e fazer a listagem das peças para lavagem na semana seguinte. Essa tarefa era minha desde que comecei a saber escrever. Lembro depois que a lavadeira almoçava connosco, fruto daquela afabilidade apanágio da minha mãe.

As leiteiras que bem cedo saiam dos seus lugarejos, ainda longe da cidade, e distribuíam o leite que invariavelmente era fervido antes de ser servido ao pequeno-almoço de quem tinha o privilégio de o poder tomar com o pão fresco, que as padeiras colocavam, enquanto nascia o dia, nos sacos deixados na porta de entrada de alguns mais favorecidos.

As mulheres que carregavam as estevas que acendiam os nossos fogões e as nossas braseiras, e com as quais se ousava discutir o preço do feixe das urzes.

As mulheres, que iam ao mercado manhã cedo, escolhiam os dias da chegada do peixe mais fresco, transportavam na cabeça sacos carregados e que, com andares “acrobatas”, fizeram os seus estragos nas “posturas” que se materializaram nas artroses precoces.

Era um tempo de percursos feitos a pé ou de burro, sem “luzes”, só de alguma esperança, com neve, frio, chuva ou sol…por caminhos enviesados, em madrugadas mal acordadas e regressos a casa com bolsos de dinheiros esmolados, porque todos discutiam preços.

Não sei se se chamavam Marias, Aidas, Antónias ou Guilherminas… Sei que eram mulheres de força, algumas viúvas de homens vivos, interessadas na criação dos seus filhos e que foram envelhecendo em silêncios nunca partilhados.

Hoje quero celebrar essas mulheres silenciosas, sem voz, só presentes quando se mostra um Portugal de miséria, e não deixar que as traições da memória venham dizer: “nesse tempo é que era bom”!
Lembro, a propósito, uma homenagem feita recentemente às carquejeiras que “invadiam a cidade do Porto”, até há 70 anos, e que um grupo de mulheres de boa vontade teve o ensejo de lhe prestar homenagem.

Quero voltar a minha Bragança, percorrer ruas e praças e verificar se, em algum tempo e em algum lugar,vejo essas gloriosas anónimas serem relembradas com a força e o respeito que merecem. Estou farta de títulos e de condecorações que hoje “te dou a ti” para tu, mais tarde, “dares a mim” ou a um dos meus…

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* Publicado originalmente a 28 de Outubro, em "Memórias e outras coisas... — Bragança".

Da importância de resistir à pergunta que o espanto provoca

Por vezes, em vez da resposta, o que faz falta é deixar fluir a magia.

A história que trago aqui, retirada das muitas histórias que a Manuela conta no seu livro, tem um espanto dentro que só espantou a Manuela — não tinha ainda detectado a magia que o habitava —, e que me fez pensar que nem sempre é útil ir atrás de respostas, em propostas de projectos, para todos os espantos, quando o que é preciso é prolongar a magia. Para os seus alunos "flor candeeiro" só é candeeiro porque dá luz.. Não fazem sentido perguntas. 
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sábado, 1 de março de 2025

A fluência leitora e a leitura em contra-relógio

Daniel Lousada

Até hoje nunca soube quantas palavras conseguia ler (?) por minuto. A ideia do desenvolvimento da competência leitora, através do exercício da leitura rápida em voz alta, que a actual equipa do ministério da educação recuperou de Nuno Crato, fazendo dela prova obrigatória dos alunos do 2º ano, do 1º ciclo do ensino básico (designada por «diagnóstico da fluência leitora»!) despertou a curiosidade (a minha) de quem, numa tarde de Sábado, não lhe apetece fazer nada. Então, de cronómetro na mão, qual ciclista em prova de contra-relógio, atiro-me a despachar palavras, pouco ou nada preocupado com o que me querem dizer.

Escolhi um texto de Eduardo Lourenço, impresso em «Artes e Educação. Antologia de autores portugueses» (uma novidade para mim, que adquiri há dias), organizada por António Carlos Cortez, que desenvolve um tema que, não me sendo desconhecido, não é daqueles em que estou mais à vontade e tem, aqui e ali, um ou outro termo de articulação mais exigente. Feitas as contas, consegui ler em voz alta 211 palavras. Não sei se este número está dentro, abaixo ou acima da média, para alguém com o meu nível de escolaridade e formação. Mas diz-se que a uma criança que frequenta o 9º ano, são pedidas, no mínimo, 180 palavras! [*]

Não nego a importância da rapidez de leitura no desenvolvimento da fluência leitora. Uma importância que expresso nesta proposta de trabalho (VER >>>). Mas entre considerar a sua importância e colocá-la no centro das preocupações, ao ponto de fazer dela um tema crítico, de que depende a competência na leitura das nossas crianças, vai uma enorme distância. Creio, aliás, que esta obsessão partilhada por Nuno Crato, arrasada no tempo em que foi ministro (VER VÍDEO >>>), se baseia no pressuposto de que o reconhecimento eficaz das palavras depende, quase em exclusivo, da rapidez que o leitor coloca na sua articulação (é caso para perguntar como é que fica o gago nesta relação?). Reparemos, por exemplo, na expressão «fui ao mar colher cordões, vim do mar cordões colhi», um trava línguas usado, em brincadeiras, entre amigos. Lida em silêncio, identificámo-la rapidamente, não nos oferecendo qualquer problema de leitura. Experimentemos, então, dar-lhe voz alta, o mais rápido que nos for possível, e o resultado será, certamente, problemático!

«(...) avaliar a competência de leitura na rapidez de leitura de palavras é pouco e esquece dimensões essenciais como compreensão e prosódia — diz José Morgado. E continua: «Quantas vezes, apesar de sermos leitores competentes e experientes precisamos de diminuir o ritmo de leitura para tornar mais sólida a compreensão do que estamos a ler». Tanto assim é que, se me perguntarem sobre o conteúdo do texto de que me servi para testar a minha rapidez na leitura, terei de voltar a ele com esse propósito! 

Fazendo minhas as palavras de José Morgado, «gostava que não lessem este texto de forma demasiado rápida para que possa ficar mais claro o que pretendi reflectir». Algo que seguramente farei, quando voltar à leitura (ou melhor, quando iniciar a leitura) do texto de Eduardo Lourenço.

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[*] Fazendo fé nos estudos que andam pela net, estou um pouco acima dos mínimos, que anda nas 200 palavras, para o tipo de textos (o ensaio) de que me servi no meu teste. Se bem que os números se refiram a leitores falantes de língua inglesa.