quarta-feira, 27 de maio de 2020

Afectividade e aprendizagem no romance "Cinco Reis de Gente" de Aquilino


Lembrar Aquilino Ribeiro 13.09.1885 - 27.05.1966

Para quem passou a vida na Escola, ultrapassando as aulas e as estruturas arcaicas, obsoletas e ineficazes, terá forçosamente de se sentir tocado com esta referência autobiográfica à entrada no mundo das letras, nada fácil, deste escritor português, proposto por um grupo de amigos, como candidato ao prémio Nobel.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Gramaticalizar: o calvário de transitar no intransitável e outras memórias de uma escola de outros tempos

Lembrar Ruben A. [26.05.1990 - 26.09.1975]
Excerto de "O mundo à Minha Procura I", Assírio & Alvim, Lisboa, 1992: pp. 75-76

Eu claudicava em matérias fundamentais: matemática  e latim. Em português conseguia às vez encontrar um mestre que me deixava ir comigo, que parava na aula e lia o meu exercício, como quem lê uma bíblia traduzida para chinês. Os outros colegas nada percebiam, uma vez que eu me afastava completamente do assunto dado para a dissertação. Não sei se foi Adolfo Casais Monteiro que um dia, na aula de português, me pediu para explicar um trecho dos Lusíadas  depois de ter lido o meu exercício sobre o assassínio de Inês de Castro. O Adolfo foi professor escasso tempo, mas para o caso pouco importa. Quando eu avancei com o livro na mão para junto da mesa, ele pediu-me que fizesse a minha crítica do célebre episódio. Ao que eu simplesmente respondi: - Senhor professor, o assassínio foi a única página que me apaixonou nos Lusíadas. Faltam mais tragédias íntimas nos Lusíadas. Gosto muito de descrições e de tudo o resto, mas sinto-me mais entusiasmado ao ler

Se de humano é matar uma donzela
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a que soube vencê-la.

O Casais Monteiro olhou para mim como querendo convidar-me para tomar café à saída do Liceu, e, na sua cara expressiva, disse que me podia sentar pois estava satisfeito. Posso dizer que devo à famosa passagem dos Lusíadas o ter-me encaminhado pela primeira vez - por uma descoberta a que não era alheio o meu estado de espírito - no sentido trágico da vida, no sentido dos gregos, de Shakespeare e de pouco mais. (...) E realmente pensando melhor, passados tantos anos, vejo que a falta de tragédia é que torna tão insípidas a nossa história e a nossa literatura. De humano, em grande parte, tivemos Inês de Castro, um pouco de Frei Luís de Sousa, e páginas da História Trágico-Marítima. De interesse universal, de valor transposto ao teatro, ao bailado, a novas interpretações, só na verdade a maravilhosa coroação daquela que depois de morta foi rainha.

Passados pouco meses, a liberdade mental de Adolfo Casais Monteiro meteu-o na cadeia. Apareceu, então, como professor de português o animal que regia latim e que a meu respeito tinha a mais fraca das opiniões. Começou para mim o Calvário de dividir orações, encontrar os complementos directos, transitar no intransitável, gramaticalizar de novo os Lusíadas de Camões. Murchei.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

A tecnologia... A bênção dos homens!

António Nunes
«A humanização da tecnologia ao serviço da aprendizagem»! A sério?
Estes "modernistas de circunstância", sempre atentos às oportunidades de um qualquer COVID, têm esta tendência de se enredar nestes delírios, ligando a humanidade a tudo, até mesmo à tecnologia, a um robot, talvez, assim ao jeito de quem diz: olha só…, como é tão humano!

segunda-feira, 18 de maio de 2020

O vírus, um poema de Ana Luísa Amaral e as tragédias que se eclipsaram

Enquanto isso, o "sujeito" pode ser "simples e composto"

Daniel Lousada [ARTIGO EM PDF >>>]

Com a chegada do "vírus" [hoje é o vírus, amanhã outra coisa será], de repente, todas as tragédias do mundo desapareceram. Desapareceram não, eclipsaram-se, tal como a Lua durante um eclipse, que sabemos estar onde está, mas escondidaas tragédias continuam a ocorrer, só que ainda mais distantes dos olhares, quase sempre indiferentes, dos que assistem à tragédia, protegidos por uma tela. As televisões não vêem razão para procurar tragédias, lá longe, nos mares da Grécia ou noutro mar qualquer!


Serão agora mares "livres" de refugiados, à procura de paz nas suas praias?

Nós por cá, com as escolas fechadas e as crianças recolhidas em casa, alimentamos os nossos medos, com doses diárias de estatísticas de infectados. Enquanto isso, na escola da rtp memória, a professora diz que "tão tanto" têm o mesmo significado, que o "sujeito" pode ser "simples e composto"...

Como eu gostaria de ouvir contar aos nossos jovens, através das histórias e dos poemas que o professor lhes lê, longe de exercícios de gramática, que eles são bem complexos, como sujeitos!

Não me interpretem mal. Não quero desvalorizar a importância dos "sujeitos compostos", nem tão pouco o estudo da gramática. E muito menos quero pôr em causa o trabalho militante dos professores, que dão a cara pela escola na tv. Mas, a sério, acham mesmo importante, entrarem-nos sala adentro, com exercícios de sintaxe? E querem que os pais mandem os filhos fazer com isso, o quê?

Sei que, em tão pouco tempo, seria difícil inventar outro modelo. E, no entanto, alimentei a secreta esperança de ver a tv, a agarrar os nossos jovens aos saberes que a escola tem de melhor, através de outras coisas, mais de acordo com..., como direi..., o seu ADN. O meio pode não ser a mensagem, como diz Alvin Toffler, mas faz parte dela, digo eu!

"Há tanta coisa bonita que não há", diz Manuel António Pina, num belíssimo poema"coisas que já houve e já não há, livros por ler, coisas por ver (...) Tantas lembranças de que não me lembro, sítios que não sei, invenções que não invento"... Nem tudo são coisas bonitas certamente, algumas são mesmo muito feias, mas sobre as quais é tão importante falar, e zangarmo-nos com o que não tem razão de ser, e exorcizar os nossos medos, e... ... ...

E a escola? A escola está onde está, e lá estará quando voltarmos. Para já, só temos de manter a ligação!
Mas o que é da escola, da escola é: não precisamos de mandar tudo o que a escola tem para casa, até porque nem tudo chega a todas as casas, e muito menos da mesma foram!

sábado, 16 de maio de 2020

Desenvolvimento do sentido da autonomia na Escola … e em casa?

Claire Ravez
Versão portuguesa de Luís Goucha [LER EM PDF]

A autonomia escolar não é uma “autonomia geral”, uma capacidade geral e transversal, a adaptar-se a qualquer tipo de situação, mas uma autonomia específica, articulada com uma cultura escrita e com dispositivos objectivos.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Arrisquemos ser autores na profissão que escolhemos

António Nunes e Daniel Lousada 
[LER EM PDF >>>]

Quando os discursos sobre o futuro da escola mais se fazem ouvir, maior a necessidade de revisitar o espírito transformador dos pedagogos que nos precederam, na convicção de que é a compreensão do passado que marca a experiência actual, e é na história presente que o futuro − seja ele o que vier a ser − se fecunda.

A escola é um «espaço de professores transmutados em actores» – diz António Nunes – em vez do que seria de­sejável: um espaço condizente com o projecto cultural que abraça, «de professores-autores, capazes de repen­sarem as suas práticas, de as mo­difica­rem e recriarem constantemente»[1], tal como os professores dos primei­ros anos do século XX, os tais que Da­niel Hameline des­creve como «os anos loucos da peda­gogia». Daqui o nosso ar­gumento: não há forma de reconstruir aquele espaço, que não passe pela pedago­gia, que não passe pelo re­gresso do “professor-pedagogo”, por uma espé­cie de reinvenção dos «anos loucos da peda­gogia».

Colocada nestes termos, a empresa parece ser nada me­nos que enorme! Porquê? Porque, como refere Hame­line
[2], de certa forma, «os professores foram e serão sem­pre actores aos quais não será concedido, nem pelos po­deres públicos, nem pelos seus interlocutores directos [colegas, pais, alunos], nem pela sua própria consciên­cia, o direito de fazerem as coisas à sua maneira». Con­tradição, insanável, com o desejável de António Nunes? Não, de todo: antes resis­tência ao espirito transfor­ma­dor, que caracte­riza a vida de uma instituição.

De repente, a escola vê-se subitamente desalojada [pro­visoriamente, é certo] do espaço [físico] onde, ao longo dos tempos, se foi afirmando, sem grandes transforma­ções! São outros os cenários que, inesperadamente, se apresentam, e os professores percebem, rapidamente, que a peça onde têm sido actores, não tem condições para se manter em cena. Percebem que a “escola em casa” não é escola! Nem vale a pena fazer de conta. No entanto, vale a pena fazer tudo o que estiver ao seu al­cance para não deixar que a escola se perca. Então, de certa forma, mais «libertos de programas, horários, hie­rarquias, e, talvez, também, dos olhares dos colegas e dos sindicatos», para usar as palavras de François Dubet
[3], os professores têm a oportu­nidade única de, com menos constrangimentos, arriscar assumir a liber­dade de “fazerem as coisas à sua ma­neira”[4] [aquela mesma maneira de fazer as coisas que é própria dos au­to­res] e, de olhos postos no futuro, que a escola de cer­teza terá, reaprender a profissão.

A escola não voltará a ser mais a mesma, como dizem? Sem dotes adivinhatórios, podemos dizer apenas que, tal como antes, o acto pedagógico nunca é igual, que «a história da edu­cação escolar não se repete: in­siste»
[5]. O nosso desafio passa, en­tão, pela compre­ensão do sen­tido desta insistência, das suas pri­oridades, dos equilí­brios a promover, tão forte­mente abalados hoje.

A educação escolar faz-se de equilíbrios. 

Philippe Meirieu [6] aponta três polos determinantes e constitutivos da Pedagogia: «um Polo Axiológico [con­tendo os valores, as atitudes, etc.], um Polo Cientifico [por onde circulam os saberes específicos das matérias a en­sinar] e, finalmente, um Polo Praxeológico [onde en­con­tramos as opções das práticas educativas, assim como os diferentes utensílios que as sustentam e lhe dão um corpo coerente na intervenção educativa]». Três polos que se equilibram entre si, para que a educação escolar decorra sem grandes sobressaltos.

Se, aparentemente, no plano das intenções e apenas neste plano, com a “escola em casa”, poder-se-ia dizer que, no essencial, os valores e as atitudes a desenvolver ou os saberes específicos das matérias a ensinar, não estarão em causa [quando muito, poderemos ver reduzidas matérias a ensinar], o mesmo não se poderá dizer das opções, quanto às práticas educativas e utensílios que as sustentam, um facto que, por si só, fragiliza o equilíbrio entre estes três polos, constitutivos da pedagogia[7]. Aproveitemos, então, este estado da escola, para experimentar «fazer reset daquilo que achamos que é ensinar»[8]. Trata-se, usando a linguagem informática, de reiniciar o sistema, o que, como é próprio de qualquer reinício, nos remete à origem do nosso pensamento pedagógico e, na perspectiva que nos traz aqui, nos convida a revisitar o espírito transformador dos pedagogos, que nos precederam, na procura de um “upgrade”, que nos permita reconstruir o equilíbrio há muito perdido [ou talvez nunca conseguido], e que esta crise aprofundou.

Subitamente, de uma “escola em crise”, passámos a uma “escola em suporte básico de vida”, a lutar pela sua sobrevivência! Face ao risco de colapso das suas funções vitais, vimo-nos obrigados a ligá-la, literalmente, às máquinas. Temos, portanto, uma escola com muitos dos seus órgãos afectados, alguns talvez em risco de falência, e que procuramos, a todo o custo, que recupere, sem sequelas irreversíveis! Sermos ou não bem-sucedidos, nesta procura, dependerá, em grande medida, daquilo que fizermos [e não fizermos, também], a partir do que sabemos hoje. Não sabemos muito, é certo, mas o que sabemos convida-nos a alguma prudência.

Sabemos que os alunos gostam da escola, mas não gostam das nossas aulas; como abordar esta situação, agora que a escola de que gostam, pelo menos no futuro imediato, não existe plenamente? Sabemos que muitos deles, só conseguem acompanhar a escola com a ajuda do professor, e se ele não estiver presente, em momentos críticos da aprendizagem, alguém terá de estar por ele;que fazer quando a capacidade de trabalhar autonomamente não existe?[9] São tudo coisas que vêm de há muito, obviamente, mas por razões que a razão desconhece, optámos, vezes demais, por ignorar.

Finalmente, se dúvidas houvesse, temos a confirmação de que a tecnologia não pode tudo, embora algumas vozes insistam em querer convencer-nos do contrário: que ela pode substituir muita coisa, até professores! São as vozes dos que acham que os professores podem ser reduzidos a simples peças de uma engrenagem, e que a tecnologia pode dispensar a pedagogia com vantagem. Numa escola assim, nem actores conseguimos ser!

Cuidemos, então, do reinício da escola; façamos «reset daquilo que achamos que é ensinar»; testemos o que a tecnologia pode fazer pela escola [não a escola por ela], como outros fizeram no passado, e arrisquemos ser autores, capazes de repensar as nossas práticas, de modificá-las e recriá-las. Revisitemos, por exemplo, Célestin Freinet, entusiasta das tecnologias do seu tempo: o que faria com as tecnologias de que dispomos?; como veria a imprensa, a correspondência, o jornal escolar?; teriam o mesmo sentido, cumpririam as mesmas funções?; deixar-se-ia entusiasmar pelos jornais digitais, pela correspondência electrónica, pelas redes sociais? Passada a crise, teremos capacidade de evitar, que a educação caia na relação Cliente/Prestador de serviços, há muito desejada pelos construtores de plataformas digitais, a quem a escola, num estado de necessidade, escancarou as portas? Revisitemos Sérgio Niza e o “Modelo de Organização do Trabalho de Aprendizagem” dos Professores da Escola Moderna: o Conselho e o Diário de Turma [descendentes da Assembleia Cooperativa e do Jornal de Pa- rede, de Freinet], os pequenos projectos de caracter curricular, organizados com os alunos. Revisitemos John Dewey, António Sérgio, Rui Grácio, Adolphe Ferrière, Paulo Freire, Maria Amália Borges, ... e tantos outros.

Arrisquemos ser autores na profissão que escolhemos.
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1 António NUNES “Refletir a Pedagogia”, Ágora Gaia, 2017.
2 Citado por António NÓVOA. “Os lugares da teoria e os lugares da prática da profissionalidade docente”, in Revista Educação em Questão, Natal, v. 30, n. 16, p. 197-205, set./dez. 2007.
3 In Après le virus, l’école sera-t-elle comme avant? www.cahiers-pedagogiques.com
4 Que passa pela «aceitação positiva de uma dupla contradição: a contradição da obediência rebelde e a contradição de prever o imprevisível», de acordo com Hameline, «uma das componentes da nova profissionalidade». António NÓVOA, ibidem.
5 «O gago não repete: insiste. A história da educação escolar não se repete: insiste. (...) Esta espécie de gaguejar intriga-me. O que devemos fazer da juventude, o que devemos fazer por ela, é fazê-la fazer. Como o fizemos nós próprios, mas de outra forma. Ambivalência do desejo de educar: que os que chegam sejam eles mesmos e que, ao mesmo tempo, sejam algo de nós. Que recebam. Que se envolvam. Que sejam envolvidos. Que se libertem». Daniel HAMELINE, “Prefácio”, in Philippe MEIRIEU, École Mode d’emploi. L'école, mode d'emploi. Paris, ESF éditeur, Paris 2000.
6 Conferência realizada por Philippe MEIRIEU na Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação de Lisboa, a 17 de Fevereiro de 2009.
7 Valores e atitudes não são conteúdos de um programa que se passem “de cátedra”, através de formas tradicionais de ensino: decorrem dos modelos de organização educativa em que se inscrevem. Para além do que, e mais importante ainda, não conseguimos «encontrar nenhum sentido coerente para a educação, se alguma coisa comum não acontecer num espaço público». Maxine GREEN, in António NÓVOA, “Ilusões e desilusões de educação comparada”. Educação, Sociedade & Cultura, no 51, Edições Afrontamento, Porto 2017.
8 Ilídia CABRAL [prof. Faculdade de Educação e Psicologia da U.
Católica], in TSF, Rádio Notícias.
9 Não é por acaso que, dos elogios aos professores, que se mobilizaram para se ligarem aos seus alunos, passamos rapidamente à manifestação crítica daqueles que não têm como ajudar os seus filhos a cumprir com o que os seus professores lhes pedem.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Amarrada a protocolos sanitários, a escola não é escola

Phlippe Meirieu
Versão em português de Daniel Lousada [LER EM PDF]

Mantendo-se as condições de saúde, só vejo um caminho: uma verdadeira consulta aos professores e aos pais, (…) a fim de construirmos, em conjunto, um modelo de escolaridade aceitável, que combine actividades em sala de aula, com ensino à distância, para todos os alunos. No entanto, (…) nada disto é possível por decreto: toda a comunidade educativa terá de se sentir envolvida, de aceitar este desafio, ou nada feito!

domingo, 10 de maio de 2020

Um abecedário resumido para questionar a "escola em casa"

Cécile Morzadec e Laurent Reynaud 
Versão em português de Luís Goucha [LER EM PDF >>>]

(...)
IMAGINAÇÃO
Porque nada nem ninguém nos preparou para o ensino à distância, precisamos ima­ginar outras formas de envolver os alunos nas suas aprendizagens, através de jogos e desafios à imaginação. Em vez de reduzir a continuidade pedagógica a uma acumulação de actividades, que mais se assemelham trabalhos de casa, não seria este o momento de estimular a inventividade dos alunos e ajudar desenvolver a sua imagi­nação? 

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Todas as cartas de amor são ridículas

Um poema de Fernando pessoa. Uma Actriz para interpretá-lo - Maria de Medeiros - A poesia, o texto literário, num cruzamento de línguas.

Num tempo em que se fala tanto de "flexibilização curricular" [falava-se até há bem pouco] e da importância dos projectos interdisciplinares, talvez esteja aqui uma inspiração que possa juntar professores das diferentes línguas, com os seus alunos, num projecto comum: A poesia, o texto literário, num cruzamento de línguas.

«Há alguns meses propus a Maria de Medeiros, pela ARTE, uma experiência poética e uma interpretação um pouco especial: dizer um poema de Fernando pessoa nas três línguas que a actriz controla perfeitamente: o português (a Língua original do poema), o francês e o alemão. Escolhemos "todas as cartas de amor são ridículas", um belo poema de Fernando pessoa.
Não se trata aqui de uma simples tradução, onde se sucederiam passivamente as três línguas, mas de algo mais complicado e mais misterioso.
O poema é dito em português e traduzido simultaneamente em francês e em alemão por Maria de Medeiros.
Três línguas cruzam-se, continuamente. Uma trança linguística poética maravilhosamente interpretada pela Maria de Medeiros.
É um momento raro».

Tradução francesa: Pedro Igreja-Costa. Tradução Alemã: Inês koebel

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Depois do vírus, voltará a escola ao que era?

François Dubet
Versão em português de Luís Goucha [LER EM FORMATO PDF]

Imaginemos que muitos alunos pensam que as relações pedagógicas virtuais, com os seus professores, foram mais cordatas e mais singulares... Imaginemos que é possível dar aulas de outra maneira. A acontecer, isto não conduziria ao encerramento das escolas, bem pelo contrário: poderia abri-las, ainda mais, para formas de trabalho inovadoras, capazes de lhes outorgar uma maior vocação educativa.
(...)
Imaginar no que se poderia transformar o formato escolar, depois deste confinamento, é, decididamente, trazer um certo optimismo para o debate, sem que este se transforme, no entanto, num utopismo.

domingo, 19 de abril de 2020

A "Escola do Depois"... Com a "Pedagogia do Antes"?

Philippe Meirieu
Versão em português de Luís Goucha [PASSAR PARA FORMATO PDF]

Se ainda houvesse dúvidas, relativamente ao carácter ridículo das profecias moralizadoras sobre o nosso futuro, a crise que atravessamos tê-las-á dissipado. É claro que toda a gente concorda que “haverá sempre um antes e um depois”, mas ninguém sabe como será esse “depois”. As análises multiplicam-se para realçar o carácter sem precedentes do momento que atravessamos, para mostrar que isso põe em causa todos os nossos hábitos e exige uma verdadeira revisão dos nossos sistemas de pensamento e de decisão. Dizem-nos que a escolha foi feita pela protecção da saúde de todos, em vez do crescimento económico para beneficio de apenas alguns. Dizem-nos que, amanhã, iremos revalorizar as profissões ligadas às humanidades, necessárias à nossa sobrevivência colectiva, em vez de continuar a exaltar o “primeiro a cortar a meta” e a promover os “vencedores”. Explicam-nos que chegou o tempo da partilha dos bens comuns, o que nos permitiria, finalmente, não “morrer arrastado pelas águas geladas do cálculo egoísta” de que falava Marx… Gostava de acreditar nisso. Queria ter a certeza que nos dirigimos, à escala planetária, para uma maior solidariedade entre pessoas e nações, por mais justiça social, por uma maior valorização das grandes questões ecológicas. Mas, na verdade, acredito que nada está decidido. ...  

domingo, 12 de abril de 2020

Desfiando a leitura e a escrita com jovens, em tempo de confinamento

Maria dos Reis
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O título deste apontamento prende-se com a forma de sa­bo­rear este meu estado de “avosice” e a interação com o meu neto, em tempo de confinamento, com os vídeo jogos bem à mão e os amigos a solicitar a sua presença nos desafios. Nesta conjuntura, os momentos on-line adquiriram outra importância no que diz respeito ao convívio entre pares; é preciso, no entanto, reinventar rotinas, criar momentos de pesquisa e conhecimento. E aqui, o encontro com o prazer na leitura, na organização e partilha da informação, é fundamental.

Não basta que a TV passe vídeos motivacionais, sugerindo tirar a poeira aos livros que exis­tem [ou não] em casa. Os hábitos de leitura não são, em geral, práticas que grassem, faltam livros em grande parte das casas, e o modo escolar de abordá-los, em leituras obrigatórias, é, no mínimo, questionável. Em tempo de pandemia, podemos ter mais dificuldade em aproximarmos os livros de cada um de nós.

Com tantas incertezas e opiniões, o melhor é jogar em dois tabuleiros. Sem abandonar as questões do currículo obrigatório, mas relativizando-as. É importante ir mais além, ao que realmente nos interessa, procurando matérias que nos emocionem, nos comovam, nos transportem para outras realidades. Pode ser sobre temas “mais formais”, como Literatura ou História, ou mais “descontraídos” [desporto, culinária, música, curiosidades…], sem esquecer nunca os afectos. Impõe-se uma intervenção que mobilize, que evite deixar os nossos alunos dependentes dos manuais obrigatórios e “caderni­nhos de exercícios”.

É sobre estas premissas que estabeleci acordo com o meu neto. Para responder à ingenuidade própria da idade dele, e ao nosso impulso irresistível para opinar sobre tudo, propusemo-nos conversar sobre assuntos que nos interessam.

Assim, à noite pelo telefone, partilhamos entre outras coisas, os livros que estamos a ler, as pesquisas que fizemos.

Como tópicos de abertura deste ciclo [chamemos-lhe assim], ele optou por figuras ligadas à política actual – eu escolhi artistas ou pensadores modernos.O próximo passo será escrevermos em conjunto e via videoconferência sobre o que aprendemos um com o outro nesta nova experiência.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Como vai ser a escola, quando a escola voltar?

IMAGINANDO SER PROFESSOR, outra vez
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Divagações a partir do poema 
“Para além da curva da estrada” 
de Alberto Caeiro, que me tem 
acompa­nhado nestes dias.

Não sei como vai ser a escola, quando a escola voltar. “Não sei e tenho raiva de quem sabe”!, como é uso dizer-se por cá. Quem quiser saber que procure, desde que me mantenha confortavelmente à distância. De momento, estou ocupado a percorrer a “estrada antes da curva”, como Alberto Caeiro 1. Se estou longe ou perto da curva, não sei! - ainda não me foi dado ver curva nenhuma, quanto mais o que virá depois dela: quando lá chegar saberei. Então, do que preciso é de compreender a escola hoje, como é amanhã! Mas amanhã mesmo! Não o amanhã poético, indefinido, longínquo…, mas o dia que sei ter pela frente ao acordar – Hoje, o que menos me interessa são perguntas que paralisam. Não quero, sinceramente, que me digam o que virá depois disto, porque venha o que vier não será o que me disserem que vem:Talvez haja um poço, e talvez um castelo, e talvez apenas a continuação da estrada” 2, não sei!

Há quem diga, numa expressão que me soa [por culpa minha, certamente] a treina­dor de bancada, que tenho “de fazer ‘reset’ 3 daquilo que acho que é ensinar”! Para passar a achar o quê? [Ensinar será sempre - dêem as voltas que derem ao conceito - fazer com que o outro aprenda!] Para já, não tenho mais que focar-me na estrada antes da curva a que chegarei quando chegar, a conduzir o veículo que melhor se adaptar à estrada e ao meu tipo de condução. Talvez faça falta um curso de condução intensivo, para garantir o risco mínimo de despiste, talvez! A mim, sobretudo, falta a paciência para penduras irritantes a gritar-me ao ouvido: olha a passadeira, cuidado que o carro da frente abrandou,… tra  ááá  va … –  Nestas alturas, apetece-me quase sempre dizer: salta tu para aqui, que eu vou para aí berrar.

Nos tempos mais próximos, não há como “pôr novamente em estado conveniente” o estado a que a escola chegou. Não há, ponto! Então, distancio-me dela. Não para me agarrar a outra forma de escola, mas para colocá-la em suspenso, até melhores dias!

Tão cedo não quero saber de escola [que está onde está], mas quero, isso sim, manter-me ligado aos meus alunos: 4 procurar saber como estão, quais as suas preocupações e dizer-lhes o que me preocupa; perguntar-lhes como posso ajudá-los a “passar o tempo” e dar-lhes conta dos meus planos: os encontros que quero agendar, na plataforma que escolhermos; falar dos livros que tenho para ler com eles, dos livros que eles, talvez, possam querer ler comigo; falar da correspondência que vou ter com todos e com cada um deles; dos desafios que estou a pensar colocar no grupo privado que temos na net, …  e o mais que vier das conversas que tivermos entre nós 5

É claro que não tenho como fugir do “funcioná­rio” que, sempre diligente, me vai en­cher a caixa de correio [electrónico], com toda a sorte de impressos, a pedir-me in­for­mações sobre coisas que, porque propositadamente deixei passar ao lado, não faço. Por isso, se tiver de burlar…, com toda a criatividade de que for capaz, burlo! 6

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1 In Poemas inconjuntos
2 Alberto Caeiro, ibidem
3 Ilídia Cabral [prof. Faculdade de Educ. e Psicologia da U. Católica], “Os professores têm de fazer ‘reset’ daquilo que achavam que era ensinar”. In TSF, Rádio NotíciasResetRepor, voltar a pôr; colocar de novo; pôr de novo no seu devido lugar; pôr novamente em estado conveniente. In Dicionário Inglês/Português, Porto Editora
4  Sem currículo estrito ou avaliações sumativas, a opção é de que a escola deve manter uma relação cultural de largo espectro”. Francisco Teixeira
5 No fim, quem sabe, talvez, tudo isto seja o início de reset, daquilo que eu acho que é ensinar. Ou não é início nenhum, e tenha achado sempre que ensinar passa por aqui.
6 A lealdade do professor não pode ser com o livro de sumários, nem com relatório de aula, nem com coisas parecidas. A lealdade dos professores é com as crianças. Portanto burlem o que puderem. Rubem Alves

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Resgatar a pedagogia, precisa-se!

Daniel Lousada 

É urgente o regresso dos pedagogos do exílio, onde se encontram esquecidos

É simples ter a energia que leva à acção”, diz Ulrich, personagem de Robert Musil.1 A acção da generalidade dos professores parece comprovar isso mesmo: foram rápidos nas primeiras respostas; nalguns casos, anteciparam mesmo orien­tações, que a tutela enviou mais tarde para as escolas. Mas, como diz a mesma persona­gem, fica por fazer o mais difícil: “buscar e encontrar sentido para ela”. E continua mais à frente: Na verdade, não devíamos exigir qualquer acção uns aos outros, mas criar primeiro condições para a sua exequibilidade.” Pelo que é interpelado por Agathe, a outra personagem que participa no diálogo: “E como é que íamos fazer isso?”2Ora, é nesta tensão entre a acção e o seu sen­tido, que assenta a reflexão pedagógica: a acção educativa leva à reflexão e a reflexão à acção. En­tão… “fa­lhar... falhar sempre, mas cada vez me­lhor”.3
Agir na urgência, decidir na incerteza”, diz por sua vez Perrenoud,4 porque, em educação, não é possível parar à espera das condições óptimas para agir: o acto educativo, como defende António Nunes,5é sempre ir­repetível, nunca igual, assente, quando muito, em certezas provi­só­rias; e, sem certezas absolutas, temos apenas certeza quanto baste, para não ficar paralisado, sem acção. Depois de, num primeiro momento, em que a palavra de ordem foi estar ligado, terem lançado mão de todos os instrumentos capazes de manter a ligação, é preciso que os professores se mobilizem, agora, na procura do sentido do trabalho escolar, que desenvolvem para os seus alunos e com eles [promover este “com”, fundamental no processo educativo, é, no contexto actual, um grande desafio].

Nesta altura confusa (…) em que as tecnologias (…) se tornaram num qualquer deus que ilumina todo o sistema educativo, teremos, imagino, aberto a porta a tentativas poderosas, de interesses múltiplos e de origens e objectivos muito diferentes, a um movimento pandémico destes instrumentos. (…). O problema, pela sua natureza, e que é novo, é o seu poder e a forma como este será incorporado nas práticas e qual o seu enquadramento pedagógico (…)”.6 Por isso, resgatar a pedagogia, nunca foi tão importante: só ela nos oferece os recursos, de que pre­cisamos, para nos opormos não só aos treinadores de bancada, que proliferam um pouco por todo o lado, como – mais importante – opormo-nos aos “Pseudo-pedagogos em­pre­sariais, de que fala Sérgio Niza, aquela “espécie de seres para o lucro, represen­tan­tes de uma “peda­go­gia de negócio, que invade a escola pública.7 Porque, desengane-se quem acha que, passada a tempestade, consegue fechar a porta, agora escanca­rada, a interesses privados: estes tudo farão para mantê-la aberta à expansão do seu negócio.8 Quando muito, será possível impor limites, regular o trânsito, atra­vés do neces­sário enquadramento pedagógico das práticas, de que fala António Nunes.
Aqui a urgência da vigilância pedagógica. Pelo que nunca foi tão urgente, o regresso dos pedagogos do exílio, onde se encontram esquecidos.
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1Robert Musil, in “O Homem sem Qualidades” – vol. 2, Pu­blicações Dom Qui­xote, Lisboa, 2008: p. 103.
2Idem, p. 104.
3. Samuel Beckett.
4. Philippe Perrenoud, Art­med, Porto Alegre, 2002.
5. E, portanto, tudo o que acontecer no dia seguinte, não pode ser uma cópia de qualquer coisa que deu resul­tado no dia anterior” [Entrevista concedida à Gondomar fm, 16.02.2017].
6. António Nunes, na sua página do facebook, 28 de Março de 2020.
7. Uma pedagogia que “traiçoeiramente, transforma, esses empresários, em educadores do povo e promotores da inclusão” [Sérgio Niza, Universidade de Évora, 2013].
8. Agradecer a solidariedade, sim. Mas não tenhamos a in­genuidade de esquecer que, muita dela, esconde oportunidades de negócio.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Precisamos de responsáveis políticos capazes de transmitir uma imagem de segurança

O ministro da educação, Tiago Brandão Rodrigues, concedeu uma entrevista ao Jornal da Tarde da Rtp1. Procurei ouvir com a atenção que, nas circunstâncias que atravessamos, a fala de um ministro da educação nos merece. Mas, pelo que ouvi, parece que o Sr. Ministro encara uma entrevista como uma qualquer conferência de imprensa, sem direito a perguntas; parece ignorar que, no que tem para dizer, é condicionado pelas perguntas que lhe são feitas.

Tirando uma pergunta genérica, já no fim da entrevista, sobre a articulação com a ministra do trabalho, a merecer uma resposta igualmente genérica [que pouco ou nada acrescentou ao que já se sabe], todas as perguntas ficaram sem resposta. Fiquei perplexo - se um ministro tem dificuldade em apresentar e discutir este tipo de cenários, como será se a situação se complicar! E daqui a minha irritação, e a irritação dos que comigo ouviram a entrevista, que manifestámos com uma montagem-vídeo, uma caricatura do que nos foi dado ouvir:

Precisamos de responsáveis políticos capazes de transmitir uma imagem de segurança, e de uma comunicação social capaz de ajudar aqueles que não sabem como transmiti-la. Porque não confundir competência com capacidade de comunicação, nunca foi tão necessário! Não quero, portanto, pôr em causa a competência do ministro da educação. Mas a verdade é que, nos tempos excepcionais de hoje, quando a comunicação não é assertiva, a degradação da confiança é inevitável. E aqui o papel da comunicação social!

Façam chegar, aos entrevistados, antecipadamente, as perguntas que querem ver respondidas. Eu sei que não está no vosso ADN este tipo de práticas, que muitos de vós preferem a pergunta numa espécie de emboscada [não é este o caso, devo elogiar]. Mas sabem, aqui não se trata de tentar apanhar, em falso, um ministro. É que, em tempos excepcionalmente difíceis, nunca vividos, não há lugar ao improviso, nem mesmo na resposta a uma pergunta.  E as entrevistas em directo, sem guião, trazem o risco do improviso de quem, sem resposta a dar, quer evitá-la a todo o custo.

Perante perguntas bem simples, quase de sim ou não, o Sr. Ministro preferiu fugir da resposta. Improvisou. Mal. Quis, talvez, dar a imagem de quem controla a situação. Não deu! Até porque, como ele próprio referiu na entrevista, as escolas têm ido à frente do ministro, desenham já os seus cenários. Atrevo-me mesmo a dizer que, alguns dos cenários projectados pelas escolas, fazem parte dos cenários que circulam pelas mesas do ministério. Podemos até equacioná-los, numa brincadeira de crianças:
  • Temos exames ou não? 
  • Se não, o caso está arrumado. 
  • Se sim há dois casos a considerar: ou realizam-se na data prevista [coisa em que ninguém acredita], ou são adiados.
Nesta matéria, um ministro, ou qualquer outro decisor político, não tem que se apresentar, sempre, com certezas. Pode ter dúvidas, como qualquer mortal, sobre as decisões a tomar, desde que seja claro sobre as dúvidas que o impedem de tomar decisões. Teria passado outra imagem [mais lúcida] se tivesse garantido, já, que, no mínimo, os exames seriam adiados, ficando por discutir o seu agendamento futuro.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Sanções e Castigos

Philippe Meirieu
Capítulo 12 de Le choix d'éduquer - pp. 65-68
Versão em português de Daniel Lousada

Bem no centro do trabalho educativo, reflectindo, por vezes dramaticamente, as suas tensões, a sanção disciplinar reveste-se de um carácter particular, em razão do silêncio que, habitualmente, se mantém à volta dela. Todos se servem dela, mas quase nunca a referem, como se tratasse de uma espécie de mal necessário, contra o qual nada podemos e a que convém recorrer, com mais ou menos frequência, mas sempre na clandestinidade… Na realidade, o “secretismo” que a rodeia bem pode ser, precisamente, a expressão “mal amanhada” do que constitui o seu estatuto paradoxal: a sanção é, sem dúvida, inevitável em educação, mas só é tolerável na medida em que nos resignamos a ela, com má consciência.

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domingo, 9 de fevereiro de 2020

Neurociências e trabalho Pedagógico


Versão portuguesa do capítulo 5 de "La Riposta" de Philippe Meirieu
«(...) uma predisposição nunca é – mesmo em medicina – uma predestinação, os neuroci­entistas devem, como os pedagogos, ter a preocupação de diferenciar sem catalogar, de se adaptar a cada um e a cada uma, mas sem desistir de descobrir as perspectivas e caminhos por conhecer. 
Atenção! Não usar a explicação ce­rebral como desculpa, aconselha Emmanuel Fournier: "os problemas parecem sempre mais suportáveis se eles se devem a causas que não são da nossa responsabilidade. É o cérebro que carrega o fardo(...)". E a desculpa cerebral pode pode ocupar, com eficácia, o lugar da “desculpa sociológica”, tantas vezes utilizada a partir de uma leitura simplista de Bourdieu: nada mais tentador, com efeito, que transformar uma dificuldade da criança [de que nós po­deremos, pelo menos em parte, ser responsáveis] num problema neuronal… (...)»

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Reprovação e jogo da glória - Cair na casa do inferno e voltar ao ponto de partida


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Reprovação, sim ou não?
Colocada esta pergunta num inquérito de rua, atrevo-me a dizer que o sim ganha por goleada. Porquê? Porque «a favor das reprovações basta o senso comum e a ignorância».*
O senso comum refugia-se na tradição, na tradição que sustenta a escola tal como tem sido vivida pela generalidade dos que têm a sorte ou o azar de a viver. E pese embora já não ser aquilo que era, a tradição continua a ter muita força, sobretudo quando de mãos dadas com a ignorância que não questiona, ou faz apenas a pergunta para a qual não pode haver outra resposta.
– “No fim do ano, um aluno não sabe. Passa ou não passa?” – Pergunta Rui Rio, em linha com a observação de uma deputada do seu partido [Ver figura]. Esperava outra pergunta de alguém com a ambição de chefiar o governo do meu país, por exemplo: no fim do ano, um aluno não sabe. Que é preciso fazer para que não reprove?
A questão não está no sim ou não à reprovação, mas no que fazer para que a reprovação acabe. Mas para isso é preciso “pensar fora da caixa” – como está na moda dizer –, estar disponível para olhar o mundo de fora dele, disposto, também, a olhar outros mundos possíveis.
O aluno passa ou não passa? Não, não passa. O que passa são os anos por ele! Cabe-nos garantir que no decurso do tempo que por ele passa, ele aprenda o que tem para aprender.
Vejo, nesta matéria, a escola a funcionar como um Jogo da Glória: caímos na casa do inferno e voltamos ao ponto de partida. Aluno que reprova não fica apenas retido, volta atrás no percurso para fazer tudo de novo, tenha aprendido alguma coisa ou coisa nenhuma, e sem ter quem lhe garanta não voltar a cair na casa do inferno. Porque a garantia do sucesso está, por tradição, apenas nas mãos do aluno – afinal, é nas suas mãos que estão os dados que fazem andar os pinos. E isso é, a cada nova partida, um inferno. 
Como qualquer professor, também me perguntei: reprovo ou não este aluno? Até que me ouvi a dizer: vou reprová-lo para quê? Trabalhava numa escola de lugar único, nos longínquos anos setenta: um professor quatro classes. E ao ensaiar a conversa a ter com aquela criança [da 1ª classe], dou-me conta de que iríamos viver juntos outra vez, quer ela reprovasse quer não. Não tinha como fazer dela o problema de outro. Então, olhando-a uma vez mais, ouço-a a juntar as letras muito devagarinho, a perder a memória do que tinha lido antes. Faltava-lhe automatismos na leitura, é certo, mas, surpreendentemente [talvez porque mais atenta ao que me ouvia dizer aos "grandes" do que à tarefa que tinha em mãos], sabia o que alguns da 4ª classe não sabiam sobre Viriato e as lutas que este travou com os romanos, que D. Afonso Henriques foi o 1º rei de Portugal, que o rio que passa em Chaves é o Tâmega, que o comboio passava por Vidago, Vila Pouca de Aguiar e terminava na Régua. E dei por mim a pensar que a dificuldade dela talvez fosse a minha dificuldade em me organizar no meio de todos aqueles programas, que naquelas condições a divisão do programa por anos de escolaridade, por vezes, era mais empecilho do que ajuda. Então [não sem ajuda] procurei olhar os quatro programas como se fossem um só, na procura da ideia de um programa para cumprir em quatro anos. A esta aposta, o senso comum, que se refugia no conhecimento que lhe chega pela tradição, chamaria de “via verde” do 1º ao 4º, motivada por interesses ideológicos. São questões ideológicas que questionam a reprovação, como efeito na avaliação dos alunos? Também são. Foi a ideologia que me levou a questioná-la? Não. A minha escolha foi, em primeiro lugar, pragmática. Até porque, se fosse a ideologia a comandar, não chegaria sequer à pergunta; passava o aluno e pronto, e teria criado, de facto, uma autêntica via verde. E não teria reprovado um dos alunos da 4ª classe!**
Pensar a aprendizagem por ciclos de aprendizagem, para além do 1º ciclo, não é tarefa fácil.*** E, pela manifestação de vontades a que assisto, não vislumbro a possibilidade de procurar alternativas nos sistemas educativos que, parece, resolveram ou estão em vias de resolver o problema. Continuo a ouvir dizer que Portugal não é a Finlândia ou um qualquer outro país mais bem posicionado nestes campeonatos****. E não é de facto: nesses países vivem os que lá vivem; não são portugueses os que por lá moram; como não são portugueses os seus políticos e, já agora, os seus professores.
 
Daniel Lousada
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* Ana Benavente, usa esta expressão, referindo-se aos exames nacionais.
** Nesse tempo ainda estavam em vigor os exames da 4ª Classe e não o propus a exame.
***A monodocência é de grande ajuda neste caso. Daqui a minha estranheza perante tanta hesitação na criação de um 1º Ciclo de seis anos.
**** Acho que a questão não passa por olhar unicamente quem está mais bem posicionado neste ou naquele ranking, mas por olhar as respostas que os diferentes sistemas propõem para responder aos problemas com que se vão confrontando. Até porque, nestas coisas dos campeonatos, a história tem-nos ensinado que ninguém é campeão eternamente. As circunstâncias mudam e ou as instituições respondem à mudança ou ... ...

sábado, 23 de novembro de 2019

Pedagogia: Tudo menos certezas

Na prática pedagógica, apoio-me nas «minhas certezas», sem a certeza que o são, e caminho a partir delas como se fossem certezas de facto. Umas vezes, chego a bom porto; outras, verifico não ser o caminho desejado, antes mesmo de concluída a jornada, enquanto que noutras, depois de concluída, não me reconheço no lugar que encontro. Mas sei que a (in)certeza tem de ser certeza, no instante de iniciar o caminho, não esquecendo que com tanta incerteza nas certezas que me apoiam, nada me é dado por garantido: «Agir na urgência, decidir na incerteza», diz Philippe Perrenoud.
Nesta matéria, como em tantas outras, as minhas [nossas] certezas assentam nas certezas passadas, no que deu certo ou errado, portanto: nas certezas do conhecimento produzido pelas diferentes áreas do saber, sempre provisório, em que a pedagogia se sustenta. Eis, então, o desafio a que permanentemente me imponho, algumas vezes [se não muitas] sem grande sucesso, confesso: procurar a razão dos meus actos, sem desejar, à partida, ter razão! Porque, como o acto pedagógico é irrepetível, nunca igual, não posso presumir que o gesto conseguido no passado, se repetido, seja conseguido no futuro. E no entanto, como tantos outros, presumo, naquele instante e apenas nele, em que inicio o caminho! E sigo até onde a razão, que sustenta as minhas (in)certezas, me permite seguir. «O meu princípio foi sempre do Beckett: “falhar... falhar sempre, mas cada vez melhor”. Porque, ao fazer apenas pela certa, amarrado ao medo de falhar, o resultado do meu trabalho sabe a pouco» – diz Luís Goucha.* Sabe a pouco o resultado do seu trabalho como saberia o meu e o das crianças que trabalhassem connosco.O fascínio do trabalho pedagógico está aqui: não na incerteza que por vezes me faz vacilar, mas na certeza de que nunca é o fracasso que espreita; na certeza da oportunidade, sempre renovada, de novos caminhos, a partir do ponto de chegada, que até pode ser um engano, fruto de um erro cometido. Sem certezas absolutas, há apenas certeza quanto baste, para não ficar paralisado, sem reacção. E, para início das tarefas, em que quotidianamente me envolvo, isso basta. Tem de bastar!
Por tudo isto, e porque ainda fascinado pelo trabalho pedagógico, irrito-me tanto com tanta certeza que nos invade: com a certeza colocada, por exemplo, na «bondade» das rotinas que, hoje em dia, nos contamina [horários rígidos, com tempos marcados para cada disciplina, e toda uma cultura de gestão, que obriga a fazer tudo e nada, obcecada pelo controlo administrativo], e que «provém de uma organização do trabalho que realmente só permite tratar dos problemas mais padronizados e condena a viver com os outros, habitado pela sensação de que seria possível fazer algo positivo se»** a razão que sustenta esta organização burocrática não fosse um elástico que não pára de esticar.

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* Numa das nossas muitas conversas
** Philippe PERRENOUD, Agir na urgência, decidir na incerteza. Porto Alegre, Artmed, 2001: p. 85.