domingo, 20 de setembro de 2020

"A Lei do Quão", de Paulo Leminski, e as pandemias que nos assolam


Leio "A lei do quão",* um pequeno poema de Paulo Leminski, e dou comigo a pensar nas sombras que nos assolam; o medo por uma pandemia, a atingir os limites do irracional, ameaça confinar as nossas vidas.

Não sei se ocorrerá "em breve / uma brisa que leve / um jeito de chuva / à última branca de neve". Mas sei que a brisa desejada não terá jeito de ocorrer se não a fizermos soprarE nada disto acontece se nos deixarmos paralisar pelo medo. Aproveitemos "então o medo para mudar; seguindo a direcção desejada" — apetece-me dizer com Gonçalo M. Tavares —, até porque "permanecer imóvel é avançar na direcção desagradável".**

Para tal, é fundamental uma estrita disciplina, uma máxima atenção aos "pequenos detalhes" [não descurar os protocolos sanitários que nos permitem manter vivos, obviamente]. Mas recusemos que tudo isto nos desvie do para quê de estar vivo. Estamos vivos para viver e não para morrer de medo.

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O título do poema, fazendo um trocadilho com a expressão popular “a lei do cão”, refere-se ao período da ditadura militar no Brasil [Em especial à lei que, entre outras medidas repressivas, não considerava a  garantia de habeas corpus no caso de crimes políticos]. Tal como o poema sugere, não há sombra sem luz, por mínima que seja. A “luz mínima” da poesia pode ser o único espaço possível para o exercício da liberdade. Um poema, coisa pequena, tem o poder de difundir, desejo de liberdade, multiplicando-o. Mas não nos iludamos: a sombra máxima está sempre à espreita.
** Gonçalo M. Tavares, "O Senhor Swedenborg e as investigações geométricas". Editorial Caminho, Lisboa, 2009: p. 39.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Este tempo... A escola... E agora?

Luís Goucha [Mudar para PDF >>>]


Em Julho, o Ministro da Educação anunciou a data do arranque do novo anos escolar. Com este anúncio divulgou também que este iria decorrer numa de três situações: se os dados epidemiológi­cos in­dicas­sem más condições sanitárias, continuaríamos com o ensino não presencial; se indicassem boas condições, voltaríamos a passar os portões da escola, cumprindo as regras necessárias para evitar contágios; se fossem assim-assim, uns iriam para a escola e outros logo se via

Dias depois, o Ministro da Educação francesa dizia exactamente o mesmo – Isto de apostar numa tripla será sempre a forma [política] mais eficaz de acertar.

Agora, inícios de Setembro, continuamos sem saber muito bem o estado da situação em que nos encontramos. Com alguma [ou muita] ansiedade, vamos olhando para o lado procurando descortinar, na casa do vizinho [dos países que abriram a escola primeiro que nós], o que nos poderá cair em sorte.

Curiosamente, da Alemanha, onde o ano lectivo leva já um mês de avanço, fala-se pouco. Do pouco que se fala, sabe-se de casos positivos em muitas escolas e que as decisões para controlar os contágios são dispares, diferentes de região para região [os estados regionais têm poderes para decidir nesta matéria]. Assim, em algumas localidades onde se registaram casos de infecção – de alunos, professores ou funcionários –, fecharam-se as escolas; noutros locais, encerraram só as escolas onde se verificaram casos de contaminação; noutros ainda, apenas a turma a que pertenciam os alunos, ou em que os professores infectados leccionavam, foram encerradas.

Por cá, a fazer fé nas palavras do ministro, as medidas andarão algures por aqui. Tudo isto, perante o olhar inquieto de pais, funcionários e professores, e a desconfiança endémica dos sindicatos, a exigir garantias que ninguém tem para dar.

As escolas estão a poucos dias de abrir. Esta é a única garantia! E os primeiros tempos serão dedicados a recuperar aprendizagens, sem garantia nenhuma [digo eu] – basta ver o resultado dos “Planos de Recuperação”, que os professores são obrigados a apresentar, ano após ano, no final do 2º período. As crianças que se perderam nos últimos meses, nas suas aprendizagens, serão por ventura as mesmas; não se perderam nestes meses, mas nos anos que já levam de escola – A “(sem)es­cola em casa” não fez mais que agravar o estado em que se encontravam, antes da pandemia [isto para não falar do pesadelo que foi a vida das famílias com crianças deficientes enclausuradas em suas casas, com uma anedota de apoio].

Os saberes escolares são importantes, obviamente. Mas nestes tempos estranhos que vivemos, a escola tem um papel muito mais decisivo, na vida das crianças e jovens, que está para além de todo e qualquer conteúdo académico que queiramos que aprendam. Que sabemos do que viveram nos últimos meses?, do que sentiram?, do que sentem? Que sabemos do que pensam do amanhã?

Quando a palavra de ordem deveria passar por dar voz aos professores, convidando-os a pensar as melhores formas de trazer para a escola a normalidade possível, de fazer o apgrade do modo de planear as aprendizagens dos alunos, temos um Ministério da Educação que não consegue libertar-se dos tiques do costume, e nos quais as direcções das escolas se apoiam, para produzir o que tanto gostam e sabem fazer melhor: papéis e mais papéis, em planos inúteis, que será preciso "grelhar" em avaliações igualmente inúteis! *


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Como refere Raquel Varela, mais do que medo do vírus “os professores têm medo da escola, da burocracia, de relatórios esquizofrénicos”… e coisas afins.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Denunciar a maldição das certezas, convocar os pedagogos*

Philippe Meirieu

Versão portuguesa de Daniel Lousada [Mudar para PDF >>>]

Vivemos hoje assombrados pela maldição das certezas que transformam o debate democrático em fúteis disputas oratórias, confrontos estéreis de toda espécie, quando não é a violência que abala gravemente o vínculo social. A maldição das certezas que invadem o campo social e paralisam qualquer busca serena da verdade em favor das "notícias falsas", das teorias da conspiração ou dos dogmas sectários mais ou menos esotéricos; a maldição das certezas, promovidas pelos motores de busca comerciais e por todos os senhores do digital, que preferem a sedução da resposta “certa” ao exame crítico de hipóteses possíveis; a maldição das certezas que bloqueiam a aprendizagem de crianças e adolescentes, enquistados no que acreditam saber, e que rejeitam tudo que possa desestabilizá-los. Enfim, uma maldição de certezas que bloqueia a investigação, e dificulta o diálogo necessário e fecundo entre as nossas convicções e o nosso saber

O debate educativo contemporâneo está a enredar-se em conflitos de certezas que paralisam qualquer diálogo autêntico. É urgente promover um diálogo sereno que exclua completamente afirmações como: "Esta é a verdade científica que deve ditar todas as decisões”! E, em vez deste teatro de sombras dogmático, que hoje triunfa, deveríamos ser capazes de debater e explicar os nossos objectivos ["Isto é o que acredito ser necessário para os nossos filhos..."], a nossa área de referência ["Este é o campo em que trabalho e estes os dados que investigo..."], os nossos conhecimentos estabilizados ["Isto é o que me parece adquirido no momento presente..."] e as nossas propostas ["Isto é o que me parece desejável e que deve ser posto à prova..."]. Sem esta abertura às diferentes dimensões do conhecimento, na educação, receio que estejamos condenados a um diálogo interminável de surdos.

Em suma, gostaria que fossemos um pouco mais "pop­perianos", tanto em debates democráticos como em diálogos sobre educação, tanto nas nossas práticas, enquanto cidadãos, como nas nossas práticas, enquanto educadores. Gostaria que apostássemos um pouco mais no domínio da investigação e do conhecimento autêntico... e menos no domínio da propa­ganda.

Precisamos de convocar as grandes figuras da pedagogia, abordando-as não de um ponto de vista enciclopédico, mas segundo uma lógica de "descoberta", no âm­bito de um movimento de procura de sentido e de diálogo com os nossos próprios compromissos. Dialogar com Pestalozzi ou Itard, Freinet ou Montessori, Rous­seau ou Jacotot, procurando encontrar neles algo que nos ajude a compreender esta ou aquela dimensão essencial... Não como autores de obras sub speciae aeter­nitatis** que bastaria conhecer e admirar numa dimensão cultural [embora isto não seja de forma alguma negligenciável], mas sim como interlocutores, eles próprios lutando com contradições, com problemas por vezes intransponíveis... mas, por vezes, também, em contacto com os seus próprios demónios, que podem ser os nossos, e deixarmos-nos, quem sabe, abalar pela sua história e pelos seus pensamentos

Peguemos nas diferentes contribuições – de sociólogos, historiadores, neurocien­tistas, psicanalistas, linguistas, filósofos, escritores, o que seja – mas tomemo-las apenas pelo que são: contribuições, apenas isso. 

Reabramos constante e obstinadamente a questão dos fins e dos métodos, através do património pedagógico [legado dos pedagogos]. Esta deve ser, hoje, a nossa prioridade.

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* No original «Philippe Meirieu dénonce "la malédiction des certitudes", en éducation notamment (interview exclusive)» – uma entrevista apresentada, nesta versão, em jeito de artigo: uma leitura do que me ficou de mais importante, para os tempos que hoje vivemos.
** Em Inglês, sub specie aeternitatis significa aproximadamente "a partir da perspectiva do eterno".

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A pedagogia e o digital: em que é que ficamos?

Philippe Meirieu

Versão portuguesa [condensada] de Luís Goucha

Assistimos, com um misto de preocupação e sensação de impotência, a um processo de desinstitucionalização da escola. Em poucos anos, passámos de uma escola institucional e estável, para uma “lógica de serviço”, onde cada um surge, conforme lhe apetece, com o que lhe apetece, esquivando-se da mínima contrariedade. Se, antigamente, se entrava na escola como quem entra num teatro, hoje entra-se na escola como numa sala de estar, em que a televisão está ligada e, se o programa não agrada, tiramos o comando ao vizinho e mudamos de canal. Num contexto assim, estruturar um colectivo é quase impossível. LER MAIS >>>