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terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Um apelo à resistência


Nem toda a inovação é, de facto, inovação, alerta Philippe Meirieu. Nem toda a inicia­tiva inovadora leva ao progresso.

A palavra inovação, na prática de muitos, re­mete para um conceito que se alastra de uma forma ambígua, que não questiona os seus fins: “Para que tudo fique na mesma é preciso que algo mude”, diz o príncipe de Salina, personagem do romance histórico "O Leopardo", de Giuseppe Tomasi. A inovação pode, aliás, esconder um retrocesso, ou uma abordagem comercial virada para o lucro, como é o caso da marca “Montessori”, que se tem expandido numa caricatura pedagógica, espécie de franchi­sing, que se alimenta do prestígio da peda­goga italiana. Nesta visão comercial, a peda­gogia surge como receita vendida por uma “casa-mãe”, com os seus centros de forma­ção,* que cuida que os utilizadores aplicam cor­rectamente a receita, usando os produtos (planos, materiais didácticos) fornecidos . 

Queres uma pedagogia inovadora? – pergun­tam-nos, certos vendilhões – Não penses mais. Nós já pensamos por ti. Temos a inova­ção que procuras ao preço de...

É preciso resistir ao endeusamento da “inova­ção” que faz de nós actores apenas. “O pro­fessor que inova não se submete a protocolos estandardizados”, defende Philippe Meirieu. E, citando Jules Ferry e Jaurés, continua: “Não faremos homens livres com professores sub­missos. A República não ensina por nenhum catecismo”. Devemos vivenciar e não apenas proclamar os valores republicanos, para que nenhum aluno seja excluído do conheci­mento, conclui Meirieu.

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* Algo que não é necessariamente mau, face à ausência propostas de trabalho que nos mobilizem!



terça-feira, 1 de novembro de 2022

A escrita satisfaz necessidades de diálogo com o real que nos acolhe

Durante um ano lectivo fui lendo os escritos de uma criança de 9 anos, com muitas dificuldades escolares, alheado, aparentemente desinteressado, quase apático ao que o rodeava. Neste falso ar de sonhador, consegui interessá-lo pelo que parecia ser o mais difícil: a escrita. Com a valorização que o grupo de colegas lhe deu, começou a escrever regularmente, acompanhando-os e fazendo como eles..., aproximando-se, desta forma, de um outro modo mais normal de se relacionar connosco.

Vários dos seus textos relatavam os seus fins-de-semana, descreviam a casa onde habitava, os pais no 1º andar e os avós no rés-do-chão... E enquanto os pais não chegavam do trabalho, ele ficava em casa dos avós, e esperava. A escrita envolvendo figuras familiares e suas vivências repetia-se: uma casa com vida própria, que se distinguia das casas dos colegas que moravam em prédios, com muitos andares e confusão. Tudo absolutamente normal, harmonioso, feliz para uma criança de 9 anos!

E assim vivemos um ano, com a escrita como importante elemento de trabalho aglutinador. Era uma escrita livre e libertadora[1], como toda ela deve ser, mesmo dentro de um quadro de aprendizagem imposto pelos programas escolares.

No fim do ano lectivo participei numa daquelas reuniões de avaliação global, a que chamávamos de “estudo de caso”, envolvendo todas as pessoas referidas àquele “caso” [esta criança de 9 anos] e a sua família. Levei comigo tudo o que até então vivêramos e que tinha como bom: as descrições e a harmonia que transparecia dos seus escritos.

Foi-me então dito que esta criança nunca conhecera o pai nem os avós, e que estava ao cuidado de uma tia, irmã da mãe, já que esta se tinha desinteressado dele.

Fiquei contente por ele: que se lixe “a” verdade, pensei. A verdade que ele construiu é bem mais forte. Com a escrita satisfez necessidades pessoais íntimas, em diálogo com o real que o acolheu ou por ele acolhido, tanto dá.

Não é por acaso que Edward Bunker, em a “Educação de um ladrão”[2], diz que algumas vezes teve de vender sangue para pagar o curso de escrita criativa por correspondência, da Universidade da Califórnia, realçando desta forma a importância da escrita, que vai muito além da função de comunicação que lhe é reconhecida. E, por sua vez, José Ovejero, diz, em “Escritores delinquentes”[3], que escreve porque, com a escrita, tem um instrumento que lhe permite derrubar a aparente ordem da realidade, já que contar histórias é uma maneira de entender o mundo, com frases que soam mais ou menos bem, com maior ou menor justeza. A escrita pode ser um instrumento poderoso de mediação com um mundo que agride.

Dar esse poder às crianças é dar-lhes uma "arma de defesa pessoal". É tão importante saber escrever para poder escrever as suas histórias, histórias determinantes, em muitos casos decisivas nas suas vidas. E daqui o cuidado em não querer saber mais do que a criança, com a sua escrita, quer contar; a atenção que é preciso ter para não invadir a sua vida, evitando confrontá-la com as histórias que conta, numa espécie de coscuvilhice ou psicanálise de pacotilha.

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[1] No sentido do que lhe atribui Freinet, quando propõe a prática do “texto livre”

[2] Edward Bunker. Education of a Felon. Newy York, St. Martin’s Press, 2000

[3] José Ovejero. Escritores Delincuentes. Madrid, Educiones Alfaguara, 2011

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Crescer em Humanidade. Quando o pedagogo se encontra com o filósofo: notas de uma entrevista

Luís Goucha
[Também disponível em PDF>>>]

Philippe Meirieu [pedagogo] e Abdennour Bidar [filósofo] encontram-se na escrita do livro “Crescer em Humanidade”. Na entrevista ao “Café Pédagogique” lamentam as controvérsias que cercam a pedagogia de ataques cegos, que não aproveitam a ninguém e confundem o espaço público em vez de o iluminar. Recusando esta lógica, decidiram aproveitar o tempo que os juntou na escrita deste livro, para reflectir sobre o que importa, hoje, na educação, cada um com a sua sensibilidade e referências de análise.

Faire société”* 
é o tema  que abre o livro. Sem se deter na observação das fracturas sociais e aumento do comunita­rismo**, debruça-se antes sobre as mudanças antropológicas que estamos a viver, questionando-as na busca de respostas: como é que as escolas são afectadas por estas mudanças e como enfrentá-las? Isto mostra-nos, de imediato, a ausência de uma direcção clara, de um “projecto educativo fundador”. Philippe Meirieu e Abden­nour Bidar defendem, então, que a educação e a escola só recuperarão a sua legitimidade social se exprimirem um projecto educativo de emancipação colectiva, que questione a procura cega da “eficiência escolar”, assente na ló­gica da “evi­dência”. 

Os autores reforçam a importância da conciliação entre autoridade social e emancipação assente no diálogo, tal como definido por Merleau-Ponty, que explica que "os pensamentos dos outros são os seus pensamentos, não sou eu que os formo, embora os agarre assim que nascem: a objecção que o interlocutor me faz, retira de mim pensamentos que eu pensava não possuir, de modo que, se eu lhe empresto pensamentos, ele, em troca, força-me a pensar."

Ao reverem Bachelard que, no final da "La Formation de l'esprit scientifique", considera que a escola não deveria ser modelada pela sociedade, mas aquela a contribuir para a construção desta, interrogam-se sobre a possibilidade de uma mudança radical de paradigma na educação. Tudo isto daria a possibilidade de nos mobilizarmos para construir, ao mesmo tempo, uma instituição e uma sociedade, com valores capazes de construir um futuro, no futuro, ultrapassando ajustamentos na distribuição de poderes, na organização de programas, etc. O que implicaria, neces­saria­mente, um debate profundo à volta da liberdade pedagógica.

Recusando a liberdade pedagógica como porta aberta a caprichos individuais, apela a que nos interroguemos sobre como esta pode contribuir para a unidade do sistema, e em que condições este sistema pode encorajar a liberdade pedagógica dos seus actores. Insistem na ideia de que questão da liberdade pedagógica e da coerência do sistema é essencial, mas que a coerência do sistema não pode continuar a sobrepor-se à liberdade pedagógica. Embora considerando que a crise de recrutamento de professores está, em larga medida, ligada à questão remuneratória, acreditam que o problema do reconhecimento dos professores não é apenas material, mas também simbólico. O apelo a fazer vai, assim, no sentido de que os professores sejam considerados como actores e autores responsáveis e não como meros executantes de processos estandardizados.

Uma “escola de tecelagem” é a proposta. Uma escola onde são tecidas ligações entre todos, se tecessem laços entre os humanos e o planeta, profundamente solidários. Uma escola construída em redor de um colectivo solidário à escala humana. Uma escola em que o “mínimo gesto” esteja em conformidade com os princípios educativos: acesso à liberdade, igualdade no direito de acesso de todas e todos à educação e à prática concreta e quotidiana da fraternidade, através da ajuda e mútua cooperação.

Demasiadas vezes, as nossas instituições são esquizofrénicas: exibem ambições e traem-nas alegremente nas suas práticas. Abdennour e Meirieu quiseram escapar a este defeito e perguntaram-se uma e outra vez: como encarnamos os nossos valores nas nossas práticas?

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* Da capacidade ou vontade de cada pessoa, ou grupos de pessoas, considerar o outro, reconhecer a sua existência e compreendê-lo.
** Philippe Meirieu distingue sociedade de comunidade. O que caracteriza uma co­munidade são os afectos, as tradições, os laços; pertencer a uma comunidade re­sulta de uma escolha. Numa sociedade os afectos são importantes, obviamente, mas as pessoas não se escolhem entre si; o ci­mento que as mantém juntas são as re­gras.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Começar a aprender [a ler e a escrever] é difícil: Duas memórias para o futuro


Encontro no livro ERNESTINA de José Rentes de Carvalho, obra autobiográfica, a memória da sua iniciação à difícil arte das letras:
 
«As primeiras palavras que o meu avô me ensinou a soletrar foram, “Alfandega do Porto” que se liam em maiúsculas no topo de cada página dos cadernos em que ele anotava as ocorrências do serviço. Se eu soletrava a preceito ele incli­nava então o caderno para me ensinar as palavras impressas na margem em linha vertical: “Remessa de documentos para a sede”. Aí passou para o abecedário e como eu não mostrasse dificuldade em distinguir e decorar as letras, achou que podíamos avançar sem demora para o jornal. O seu dedo a seguir a linha, eu obediente a papaguear pala­vras de vago significado, esta minha aprendizagem da lei­tura resultou em que nunca me sentiria com gosto para ler histórias infantis.»
  
Já eu aproveitei o facto de ter nascido e vivido alguns anos em estações de comboios, ao tempo de caminhos-de-ferro. O meu avô e outros trabalhadores faziam funcionar uma es­trutura de grande responsabilidade, controlavam máquinas gigantescas, e centenas de pessoas apenas com telefones rudimentares.
 
Das folhas que me davam para eu estar sossegado, e que eu aproveitava para fazer como ele, aprendi ler no alto da fo­lha: “Parte Diária” – o resumo diário da vida da estação – e em baixo: “O Chefe da Estação”. Era difícil e esquisito, mas eu sabia ler aquilo, e copiava palavras afixadas na estação: saída, bilheteira, telégrafo, sala de espera... Mas mal sabia eu que na Escola aquilo de nada me serviria, porque só tinha [tínhamos] cadernos de linhas, ou de duas linhas, para co­piar letras que o professor nos ensinava a desenhar, en­chendo-as de tédio, horas ..., dias a fio, até doer a mão de tanto “escrever”, pelo esforço de não escrever nada!
 
Poder-se-á dizer que Alfândega do Porto ou Parte Diá­ria não será́ o mais apropriado para começar a Arte da Escrita. Mas foi! Sem "ciências da educação", estava ali o necessário para o sucesso nesta difícil aprendizagem: a utilidade, a fun­ção da escrita, estavam ali naquelas folhas, no uso que lhes dava. Mas sobretudo os afectos. A relação afectuosa com um avô... Que sorte a das crianças que tendo avós os acei­tam e aproveitam. João dos Santos, nos seus inúmeros escritos, fala-nos da sua importância nas aprendizagens. Sem afectos não há apren­dizagem, refere.
 
A Escola esquece-se desta componente vital, ao deparar-se com as crianças que se “portam mal”, que “nada querem fazer”, que “nunca estão concentradas”, “sempre desmoti­vadas”, porque o que lhes é proposto não lhes diz nada. E ignora que, a muitas delas, a vida não corre de feição. Que sabemos nós dessas vidas, que os mais novos não entendem, mas sentem? E ao sentirem, reagem, normalmente mal.
 
Continua a insistir-se na ideia de que o primeiro passo para a aprendizagem da língua escrita é a aprendizagem de uma técnica de codificação/descodificação, e que uma rápida análise dos manuais escolares parece confirmá-lo: o inte­resse mantém-se centrado na aprendizagem das letras, não da língua escrita em toda a sua complexidade, da qual a aprendizagem das letras faz parte [não o contrário]. Aqui não cabem nem "Alfândegas" nem "Comboios".
 
Para muitas crianças, a vida fora da escola é rude, e elas não conseguem desligar-se dela ao passar os portões da escola, o que as torna incapazes de cumprir com as suas exigências. Então, se não conseguem desligar-se, talvez parte da solu­ção esteja em deixar entrar na escola parte dos seus mundos com elas, dando-lhe a nossa a atenção. E a escrita é, talvez, uma das melhores portas de entrada de todos esses mundos que as suas vidas carregam: mundos de "estações de comboios e alfândegas" bem mais complicados do que os nossos.
 
E já agora, antes de exigirmos de uma criança o cumpri­mento de uma tarefa, talvez fosse útil perguntar-nos: gos­taria eu de fazer isto?

sexta-feira, 18 de março de 2022

Quando interesse e desejo se misturam e confundem

Versão portuguesa de
Luís Goucha
[
Sobre um texto incluído num artigo de Magali Caille, no jornal “Ouest-France”]

Victoria Prooday, Terapeuta Ocupacional [Toronto-Canada] constata no seu dia-a-dia profissional que o desenvolvimento social, emocional e escolar das crianças está em regressão e que ao mesmo tempo aumentam de forma significativa as dificuldades de aprendizagem na escola. Trata-se, aliás, de uma constatação que se encontra em linha, com outras investigações nesta área, nomeadamente, a que nos é apresentada por Michel Desmurget, na sua “Fábrica de Cretinos Digitais”.

Como sabemos, o cérebro com a sua grande plasticidade, permite, ao sistema nervoso, a capacidade para o alterar. Graças ao ambiente que nos rodeia podemos torná-lo mais apto, ou mais lento. Acredita-se que, apesar de todas as nossas melhores intenções, infelizmente, o cérebro das nossas crianças está a caminhar na direcção errada.

Era importante reflectir sobre algumas dessas razões, que nos tocam mais de perto e podem ser corrigidas, porque é notório que as crianças se aborrecem cada vez mais na escola, têm menos paciência e, cada vez mais, fazem menos “verdadeiros” amigos.

1. DIVERTIMENTO SEM LIMITES

Criou-se um mundo artificialmente divertido para as nossas crianças. Não existem momentos sem fazer nada, aborrecidos. Quando o ambiente se torna calmo apressamo-nos a criar um novo divertimento, porque caso contrário nos sentimos maus pais. Vivemos em mundos separados: eles vivem um mundo “divertido”, nós vivemos um mundo de “trabalho”.

Porque é que as crianças, em casa, não ajudam nas ta­refas domésticas, a arrumar a casa, lavar a loiça, cuidar das suas roupas? Porque não hão-de arrumar o que de­sarrumaram? Trata-se de trabalho monótono e desin­teressante que treina o cérebro a trabalhar o que é “aborrecido”, precisamente o mesmo “músculo” que lhe irá ser solicitado na escola. Quando chegam á escola e lhes pedimos para escrever as respostas são sempre as mesmas: “Não sei, é muito difícil, é aborrecido, não me apetece”. Precisamente porque este o “músculo”, criado para o trabalho e o esforço, está apenas habituado a trabalhar em modo divertimento.

2. INTERACÇÃO SOCIAL LIMITADA

Na sociedade actual, andamos todos muito ocupados, por isso oferecemos brinquedos electrónicos às crianças para elas estarem “ocupadas”. As crianças durante muitos anos estiveram habituadas a brincar na rua, em locais exteriores não estruturados, onde aprendiam a exercer as suas competências sociais, capacidades e habilidades várias.

Infelizmente a tecnologia substituiu o tempo e a vida no exterior. A tecnologia também tornou os pais menos disponíveis para interagirem socialmente com os filhos. Evidentemente elas tornam-se menos aptas e ágeis, os gadgets e jogos, não foram concebidos para desenvol­ver competências sociais das crianças.

Se queremos que uma criança aprenda a andar de bici­cleta, temos de a ensinar. Se queremos que ela aprenda a esperar, temos de lhe ensinar a paciência. Se quere­mos que as crianças se socializem, teremos de fazer a mesma coisa… porque não há nenhuma diferença.

3. TER O QUE QUEREM QUANDO QUEREM

A possibilidade de retardar a “recompensa” é um dos factores essenciais para um futuro sucesso e não só das crianças. Desenvolvemos as melhores interacções para que sejam felizes, mas infelizmente apenas são felizes naquele instante e infelizes no futuro. Ser capaz de di­ferir a “recompensa” significa ser capaz de enfrentar si­tuações de stress. As crianças estão cada vez menos equipadas para enfrentar situações banais de contrari­edade. A incapacidade em diferir é muitas vezes cons­tatada nas salas de aula, nos centros comerciais, nos restaurantes no instante em que ouvem a palavra NÃO! Consequência evidente da situação em que têm tudo o querem, de imediato.

4 A TECNOLOGIA

A utilização das tecnologias como forma de baby-sitting grátis, é uma coisa que sai muito cara. O preço a pagar está em anexo. É o sistema nervoso das crianças que paga, com a atenção, e com a capacidade de diferi­mento do desejo. Ao lado da realidade virtual a vida quotidiana parece sem interesse, logo aborrecida. Quando as crianças chegam às aulas, estão sujeitas às vozes e relacionamento com várias pessoas, a uma es­timulação visual mais adequada em comparação com o bombardeamento de “efeitos especiais” com que lhes inundam os ecrãs.

Depois de algumas horas de realidade virtual, terão cada vez mais dificuldades em integrar o que lhes é ofe­recido numa sala de aula porque o cérebro esta habitu­ado a níveis muito elevados de estimulação fornecida pelos jogos de vídeo. A incapacidade de tratar níveis mais básicos de estimulação, lidar com situações de exi­gência diversa deixam as crianças incapazes de respon­der a desafios escolares menos complexos.

A disponibilidade emocional dos pais é seguramente o principal factor que “alimenta” o cérebro das crianças, infelizmente a falta deste “alimento” é cada vez maior.

5. AS CRIANÇAS CONTROLAM TUDO

“O meu filho não gosta de legumes!” “Ela não gosta de se deitar cedo” “Não gosta de tomar o pequeno-al­moço” “Ele nunca brinca com os brinquedos que tem, mas não larga o i-Pad.” São algumas das muitas recla­mações dos pais. Desde quando é que as crianças nos ditam a forma como as educamos? Como diria Daniel Pennac, à força de querer responder ao que se diz ser os seus interesses, apenas respondemos aos seus desejos. Ora, os desejos das crianças, nem sempre, para não dizer quase nunca, correspondem aos seus interesses.

Sem uma alimentação saudável, sem as horas de sono adequadas as crianças chegam às escolas irritáveis, an­siosas e desatentas. Além disto, muitas vezes, também não lhes oferecemos os melhores exemplos.

Aprendem que podem fazer o que querem e a não fazer o que não querem. A noção de “dever”, desapareceu. Infelizmente para atingirmos objectivos nas nossas vi­das, temos de fazer o que é preciso, o que nem sempre é o que queremos fazer. As crianças sabem muito bem o que querem, mostram dificuldades em fazer o que é preciso para atingirem os seus objectivos. Tudo estas coisas apenas as conduzem a que se lancem, ou os lan­cemos em objectivos inacessíveis que apenas deixam as crianças frustradas.


sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

UMA ABORDAGEM "ESCRITICA"

Luís Goucha

Há já há algum tempo que alguns países do Norte da Europa tomaram a opção pedagógica de iniciarem a aprendizagem da escrita-leitura através dos teclados. Constataram que só nas Escolas se escrevia com, lápis, esferográficas, canetas, directamente em folhas de papel. Provavelmente convencidos de que assim se poupará a vida a muitas árvores essenciais à vida…

Em sentido contrário, os países do longínquo oriente, com "Alfabetos" de escrita totalmente distintos dos ocidentais, desenvolvem ao máximo, nas escolas, as capacidades das crianças na escrita pictográfica e ideográfica desses “alfabetos”… para equilibrar [?] o elevado desenvolvimento e utilização das tecnologias digitais de comunicação. Perceberam melhor o que está em jogo?

Segundo os primeiros estudos, de organismos internacionais dedicados ao desenvolvimento global dos alunos, a constatação é evidente: estas crianças estão bastante mais equipadas e desenvolvidas, em todas as competências, que as nórdicas.

Não se tendo ainda, entre nós, colocado a questão de forma generalizada, e desejando que esta nunca seja colocada de forma dicotómica [reforço dicotómica], no sistema ensino, avanço com a abordagem que sobre este assunto Alexandra Yeh e Hélène Combis tratam em “Écrire à la main: un geste du passé”(2019).

“A diferença que existe entre a escrita manuscrita e a dactilográfica, tem a ver com os gestos que efectuamos, a manuscrita solicita apenas uma mão, ao passo que a dactilográfica exige as duas. Do ponto de vista cerebral isto altera muitas coisas, por um lado temos um processo que faz trabalhar apenas a mão dominante, geralmente a direita, que é controlada pelo hemisfério cerebral esquerdo, o mesmo que controla a fala. Por ouro lado, a escrita em teclado exige a coordenação das duas mãos, o que implica e envio de dados do hemisfério direito para controlar a mão esquerda. Logo temos uma divisão da escrita entre os dois hemisférios cerebrais, desde que exista uma formação a este tipo de escrita.

Quando se aprende a escrever, os movimentos de grafia obrigam a memorizar uma forma e os gestos. Nos exames de ressonância magnética efectuados é bem patente, quando se pede à pessoa para observar as letras, a activação em simultâneo das zonas visuais e sensoriomotoras do cérebro e é esta dupla estimulação cognitiva que permite encontrar o nome da letra. Se não sabemos escrever à mão, a nossa capacidade de reconhecimento das letras diminui.

Fizemos nas nossas salas de Jardim de Infância uma simples análise com os nossos alunos, ensinando um grupo a escrever directamente nos teclados e outro a escrever à mão. Ao fim de três semanas era evidente que quando pedíamos às crianças para reconhecerem visualmente as letras que tinham aprendido, as que tinham aprendido a escrever à mão tinham melhores resultados que os outros.

Isto leva-nos a pensar que existem processos diferentes de funcionamento. Num caso o processo é a passagem dum toque numa tecla que leva a uma imagem no ecrã, a relação corporal entre a mão e o cérebro é alterada em benefício da utilização social tecnológica.  

Na outra situação a aprendizagem corresponde a um processo de memorização ligando o gesto a uma aquisição cognitiva, um exercício manual de grafia, uma actividade mental.

Trata-se de uma dificuldade actual do ensino que deverá articular a formação humana e a adaptação às práticas sociais instituídas, sendo que o mais importante é a questão não se colocar apenas nos primeiros anos de escolaridade, mas prolongar-se ao longo de toda a escolaridade…

Facilmente podemos também pensar para além da questão do manuscrito, as outras actividades similares, desenhar, colorir, a utilização dos múltiplos instrumentos que exigem saberes e técnicas: diferentes lápis, canetas, marcadores, tintas, diferentes texturas, cores etc…

Talvez que as “queixas” de muitos professores da fraca qualidade das “produções artísticas” dos seus alunos esteja em parte ligada a esta questão, quando se deveria passar o contrário dada a enorme “melhoria técnica” dos tempos sem teclados na Escola: melhores instrumentos, melhor papel e mais, sobretudo, saber…

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Este tempo... A escola... E agora?

Luís Goucha [Mudar para PDF >>>]


Em Julho, o Ministro da Educação anunciou a data do arranque do novo anos escolar. Com este anúncio divulgou também que este iria decorrer numa de três situações: se os dados epidemiológi­cos in­dicas­sem más condições sanitárias, continuaríamos com o ensino não presencial; se indicassem boas condições, voltaríamos a passar os portões da escola, cumprindo as regras necessárias para evitar contágios; se fossem assim-assim, uns iriam para a escola e outros logo se via

Dias depois, o Ministro da Educação francesa dizia exactamente o mesmo – Isto de apostar numa tripla será sempre a forma [política] mais eficaz de acertar.

Agora, inícios de Setembro, continuamos sem saber muito bem o estado da situação em que nos encontramos. Com alguma [ou muita] ansiedade, vamos olhando para o lado procurando descortinar, na casa do vizinho [dos países que abriram a escola primeiro que nós], o que nos poderá cair em sorte.

Curiosamente, da Alemanha, onde o ano lectivo leva já um mês de avanço, fala-se pouco. Do pouco que se fala, sabe-se de casos positivos em muitas escolas e que as decisões para controlar os contágios são dispares, diferentes de região para região [os estados regionais têm poderes para decidir nesta matéria]. Assim, em algumas localidades onde se registaram casos de infecção – de alunos, professores ou funcionários –, fecharam-se as escolas; noutros locais, encerraram só as escolas onde se verificaram casos de contaminação; noutros ainda, apenas a turma a que pertenciam os alunos, ou em que os professores infectados leccionavam, foram encerradas.

Por cá, a fazer fé nas palavras do ministro, as medidas andarão algures por aqui. Tudo isto, perante o olhar inquieto de pais, funcionários e professores, e a desconfiança endémica dos sindicatos, a exigir garantias que ninguém tem para dar.

As escolas estão a poucos dias de abrir. Esta é a única garantia! E os primeiros tempos serão dedicados a recuperar aprendizagens, sem garantia nenhuma [digo eu] – basta ver o resultado dos “Planos de Recuperação”, que os professores são obrigados a apresentar, ano após ano, no final do 2º período. As crianças que se perderam nos últimos meses, nas suas aprendizagens, serão por ventura as mesmas; não se perderam nestes meses, mas nos anos que já levam de escola – A “(sem)es­cola em casa” não fez mais que agravar o estado em que se encontravam, antes da pandemia [isto para não falar do pesadelo que foi a vida das famílias com crianças deficientes enclausuradas em suas casas, com uma anedota de apoio].

Os saberes escolares são importantes, obviamente. Mas nestes tempos estranhos que vivemos, a escola tem um papel muito mais decisivo, na vida das crianças e jovens, que está para além de todo e qualquer conteúdo académico que queiramos que aprendam. Que sabemos do que viveram nos últimos meses?, do que sentiram?, do que sentem? Que sabemos do que pensam do amanhã?

Quando a palavra de ordem deveria passar por dar voz aos professores, convidando-os a pensar as melhores formas de trazer para a escola a normalidade possível, de fazer o apgrade do modo de planear as aprendizagens dos alunos, temos um Ministério da Educação que não consegue libertar-se dos tiques do costume, e nos quais as direcções das escolas se apoiam, para produzir o que tanto gostam e sabem fazer melhor: papéis e mais papéis, em planos inúteis, que será preciso "grelhar" em avaliações igualmente inúteis! *


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Como refere Raquel Varela, mais do que medo do vírus “os professores têm medo da escola, da burocracia, de relatórios esquizofrénicos”… e coisas afins.