sexta-feira, 18 de março de 2022

Quando interesse e desejo se misturam e confundem

Versão portuguesa de
Luís Goucha
[
Sobre um texto incluído num artigo de Magali Caille, no jornal “Ouest-France”]

Victoria Prooday, Terapeuta Ocupacional [Toronto-Canada] constata no seu dia-a-dia profissional que o desenvolvimento social, emocional e escolar das crianças está em regressão e que ao mesmo tempo aumentam de forma significativa as dificuldades de aprendizagem na escola. Trata-se, aliás, de uma constatação que se encontra em linha, com outras investigações nesta área, nomeadamente, a que nos é apresentada por Michel Desmurget, na sua “Fábrica de Cretinos Digitais”.

Como sabemos, o cérebro com a sua grande plasticidade, permite, ao sistema nervoso, a capacidade para o alterar. Graças ao ambiente que nos rodeia podemos torná-lo mais apto, ou mais lento. Acredita-se que, apesar de todas as nossas melhores intenções, infelizmente, o cérebro das nossas crianças está a caminhar na direcção errada.

Era importante reflectir sobre algumas dessas razões, que nos tocam mais de perto e podem ser corrigidas, porque é notório que as crianças se aborrecem cada vez mais na escola, têm menos paciência e, cada vez mais, fazem menos “verdadeiros” amigos.

1. DIVERTIMENTO SEM LIMITES

Criou-se um mundo artificialmente divertido para as nossas crianças. Não existem momentos sem fazer nada, aborrecidos. Quando o ambiente se torna calmo apressamo-nos a criar um novo divertimento, porque caso contrário nos sentimos maus pais. Vivemos em mundos separados: eles vivem um mundo “divertido”, nós vivemos um mundo de “trabalho”.

Porque é que as crianças, em casa, não ajudam nas ta­refas domésticas, a arrumar a casa, lavar a loiça, cuidar das suas roupas? Porque não hão-de arrumar o que de­sarrumaram? Trata-se de trabalho monótono e desin­teressante que treina o cérebro a trabalhar o que é “aborrecido”, precisamente o mesmo “músculo” que lhe irá ser solicitado na escola. Quando chegam á escola e lhes pedimos para escrever as respostas são sempre as mesmas: “Não sei, é muito difícil, é aborrecido, não me apetece”. Precisamente porque este o “músculo”, criado para o trabalho e o esforço, está apenas habituado a trabalhar em modo divertimento.

2. INTERACÇÃO SOCIAL LIMITADA

Na sociedade actual, andamos todos muito ocupados, por isso oferecemos brinquedos electrónicos às crianças para elas estarem “ocupadas”. As crianças durante muitos anos estiveram habituadas a brincar na rua, em locais exteriores não estruturados, onde aprendiam a exercer as suas competências sociais, capacidades e habilidades várias.

Infelizmente a tecnologia substituiu o tempo e a vida no exterior. A tecnologia também tornou os pais menos disponíveis para interagirem socialmente com os filhos. Evidentemente elas tornam-se menos aptas e ágeis, os gadgets e jogos, não foram concebidos para desenvol­ver competências sociais das crianças.

Se queremos que uma criança aprenda a andar de bici­cleta, temos de a ensinar. Se queremos que ela aprenda a esperar, temos de lhe ensinar a paciência. Se quere­mos que as crianças se socializem, teremos de fazer a mesma coisa… porque não há nenhuma diferença.

3. TER O QUE QUEREM QUANDO QUEREM

A possibilidade de retardar a “recompensa” é um dos factores essenciais para um futuro sucesso e não só das crianças. Desenvolvemos as melhores interacções para que sejam felizes, mas infelizmente apenas são felizes naquele instante e infelizes no futuro. Ser capaz de di­ferir a “recompensa” significa ser capaz de enfrentar si­tuações de stress. As crianças estão cada vez menos equipadas para enfrentar situações banais de contrari­edade. A incapacidade em diferir é muitas vezes cons­tatada nas salas de aula, nos centros comerciais, nos restaurantes no instante em que ouvem a palavra NÃO! Consequência evidente da situação em que têm tudo o querem, de imediato.

4 A TECNOLOGIA

A utilização das tecnologias como forma de baby-sitting grátis, é uma coisa que sai muito cara. O preço a pagar está em anexo. É o sistema nervoso das crianças que paga, com a atenção, e com a capacidade de diferi­mento do desejo. Ao lado da realidade virtual a vida quotidiana parece sem interesse, logo aborrecida. Quando as crianças chegam às aulas, estão sujeitas às vozes e relacionamento com várias pessoas, a uma es­timulação visual mais adequada em comparação com o bombardeamento de “efeitos especiais” com que lhes inundam os ecrãs.

Depois de algumas horas de realidade virtual, terão cada vez mais dificuldades em integrar o que lhes é ofe­recido numa sala de aula porque o cérebro esta habitu­ado a níveis muito elevados de estimulação fornecida pelos jogos de vídeo. A incapacidade de tratar níveis mais básicos de estimulação, lidar com situações de exi­gência diversa deixam as crianças incapazes de respon­der a desafios escolares menos complexos.

A disponibilidade emocional dos pais é seguramente o principal factor que “alimenta” o cérebro das crianças, infelizmente a falta deste “alimento” é cada vez maior.

5. AS CRIANÇAS CONTROLAM TUDO

“O meu filho não gosta de legumes!” “Ela não gosta de se deitar cedo” “Não gosta de tomar o pequeno-al­moço” “Ele nunca brinca com os brinquedos que tem, mas não larga o i-Pad.” São algumas das muitas recla­mações dos pais. Desde quando é que as crianças nos ditam a forma como as educamos? Como diria Daniel Pennac, à força de querer responder ao que se diz ser os seus interesses, apenas respondemos aos seus desejos. Ora, os desejos das crianças, nem sempre, para não dizer quase nunca, correspondem aos seus interesses.

Sem uma alimentação saudável, sem as horas de sono adequadas as crianças chegam às escolas irritáveis, an­siosas e desatentas. Além disto, muitas vezes, também não lhes oferecemos os melhores exemplos.

Aprendem que podem fazer o que querem e a não fazer o que não querem. A noção de “dever”, desapareceu. Infelizmente para atingirmos objectivos nas nossas vi­das, temos de fazer o que é preciso, o que nem sempre é o que queremos fazer. As crianças sabem muito bem o que querem, mostram dificuldades em fazer o que é preciso para atingirem os seus objectivos. Tudo estas coisas apenas as conduzem a que se lancem, ou os lan­cemos em objectivos inacessíveis que apenas deixam as crianças frustradas.


segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Célestin Freinet: Histórias de uma vida, as lutas de um pedagogo

[Autor desconhecido]

Como é que um professor do ensino primário, de uma escola rural, do sul de França, se revelou um dos pedagogos mais influentes do seu tempo, iniciando a promoção de métodos pedagógicos praticados, hoje em dia, no mundo inteiro?

Dificuldades, hoje como ontem, nunca faltaram, como não faltam ainda grandes conflitos entre esta corrente pedagógica, que aposta na autonomia das crianças e no desenvolvimento da sua criatividade, à revelia, tantas vezes, das ideias de alguns políticos menos favoráveis à liberdade de pensamento. A expressão livre, a correspondência escolar, o trabalho cooperativo da classe…, são práticas introduzidas na sala de aula, por este professor primário genial, ao longo dos anos, com os seus alunos...

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

UMA ABORDAGEM "ESCRITICA"

Luís Goucha

Há já há algum tempo que alguns países do Norte da Europa tomaram a opção pedagógica de iniciarem a aprendizagem da escrita-leitura através dos teclados. Constataram que só nas Escolas se escrevia com, lápis, esferográficas, canetas, directamente em folhas de papel. Provavelmente convencidos de que assim se poupará a vida a muitas árvores essenciais à vida…

Em sentido contrário, os países do longínquo oriente, com "Alfabetos" de escrita totalmente distintos dos ocidentais, desenvolvem ao máximo, nas escolas, as capacidades das crianças na escrita pictográfica e ideográfica desses “alfabetos”… para equilibrar [?] o elevado desenvolvimento e utilização das tecnologias digitais de comunicação. Perceberam melhor o que está em jogo?

Segundo os primeiros estudos, de organismos internacionais dedicados ao desenvolvimento global dos alunos, a constatação é evidente: estas crianças estão bastante mais equipadas e desenvolvidas, em todas as competências, que as nórdicas.

Não se tendo ainda, entre nós, colocado a questão de forma generalizada, e desejando que esta nunca seja colocada de forma dicotómica [reforço dicotómica], no sistema ensino, avanço com a abordagem que sobre este assunto Alexandra Yeh e Hélène Combis tratam em “Écrire à la main: un geste du passé”(2019).

“A diferença que existe entre a escrita manuscrita e a dactilográfica, tem a ver com os gestos que efectuamos, a manuscrita solicita apenas uma mão, ao passo que a dactilográfica exige as duas. Do ponto de vista cerebral isto altera muitas coisas, por um lado temos um processo que faz trabalhar apenas a mão dominante, geralmente a direita, que é controlada pelo hemisfério cerebral esquerdo, o mesmo que controla a fala. Por ouro lado, a escrita em teclado exige a coordenação das duas mãos, o que implica e envio de dados do hemisfério direito para controlar a mão esquerda. Logo temos uma divisão da escrita entre os dois hemisférios cerebrais, desde que exista uma formação a este tipo de escrita.

Quando se aprende a escrever, os movimentos de grafia obrigam a memorizar uma forma e os gestos. Nos exames de ressonância magnética efectuados é bem patente, quando se pede à pessoa para observar as letras, a activação em simultâneo das zonas visuais e sensoriomotoras do cérebro e é esta dupla estimulação cognitiva que permite encontrar o nome da letra. Se não sabemos escrever à mão, a nossa capacidade de reconhecimento das letras diminui.

Fizemos nas nossas salas de Jardim de Infância uma simples análise com os nossos alunos, ensinando um grupo a escrever directamente nos teclados e outro a escrever à mão. Ao fim de três semanas era evidente que quando pedíamos às crianças para reconhecerem visualmente as letras que tinham aprendido, as que tinham aprendido a escrever à mão tinham melhores resultados que os outros.

Isto leva-nos a pensar que existem processos diferentes de funcionamento. Num caso o processo é a passagem dum toque numa tecla que leva a uma imagem no ecrã, a relação corporal entre a mão e o cérebro é alterada em benefício da utilização social tecnológica.  

Na outra situação a aprendizagem corresponde a um processo de memorização ligando o gesto a uma aquisição cognitiva, um exercício manual de grafia, uma actividade mental.

Trata-se de uma dificuldade actual do ensino que deverá articular a formação humana e a adaptação às práticas sociais instituídas, sendo que o mais importante é a questão não se colocar apenas nos primeiros anos de escolaridade, mas prolongar-se ao longo de toda a escolaridade…

Facilmente podemos também pensar para além da questão do manuscrito, as outras actividades similares, desenhar, colorir, a utilização dos múltiplos instrumentos que exigem saberes e técnicas: diferentes lápis, canetas, marcadores, tintas, diferentes texturas, cores etc…

Talvez que as “queixas” de muitos professores da fraca qualidade das “produções artísticas” dos seus alunos esteja em parte ligada a esta questão, quando se deveria passar o contrário dada a enorme “melhoria técnica” dos tempos sem teclados na Escola: melhores instrumentos, melhor papel e mais, sobretudo, saber…

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Há dia felizes

Maria dos Reis

[Aceder à versão em PDF >>>]

A Empatia também se ensina. Ensina-se pelo Exemplo

Sim… há dias felizes, sobretudo quando, em situações menos agradáveis, encontramos alguém que se coloca no nosso lugar e nos ajuda a resolver um problema. Aconteceu ontem, quando me preparava para entrar no cinema. Para tal era necessário apresentar o comprovativo da vacinação. Por qualquer razão, o meu certificado não estava a conseguir ser lido no telemóvel. Dada a exigência na entrado do espaço e perante a evidência de eu ter de abandonar o mesmo foi a funcionária de serviço que me ajudou a procurar outras alternativas. E conseguiu. Manifestava uma facilidade no manuseamento das tecnologias bem superior à minha – eu sou mais analógica –. A disponibilidade da funcionária e a sua empatia permitiram que a barreira fosse ultrapassada.

A propósito revisitei os “meus escritos” e reli um ensaio que tinha tentado sobre “empatia” – esta capacidade que algumas pessoas têm de se colocar no lugar do “outro” e experimentar, de forma objectiva e racional, viver a situação do seu semelhante. A empatia pressupõe altruísmo e capacidade de ajudar e não julgar. Pressupõe que nos descentremos dos nossos problemas para conseguir alargar o nosso foco de atenção. Pressupõe ultrapassar a barreira do egoísmo, do medo do desconhecido e do preconceito, relativamente ao que julgamos diferente.

Provavelmente, todos seríamos mais felizes se usássemos essa capacidade. Ela não é genética mas passível de aprendizagem. Sempre a partir do exemplo. Em primeiro lugar na família, quando possível… Na escola deveria ser sempre possível…. Não tem porque não ser.

Como diz a voz popular, a família não se escolhe. Quanto à escola, está muito nas mãos de quem a frequenta, nos seus diferentes papéis, desenvolver práticas em que a empatia seja práxis. Na Dinamarca a empatia ensina-se desde os primeiros anos na escola. Implementada como área obrigatória dos 6 aos 16 anos, com uma duração diária de uma hora, explora as vertentes da empatia afectiva, cognitiva e reguladora de emoções. Os responsáveis afirmam que esta prática ajuda os alunos a construir relacionamentos, evitar o assédio e obter sucesso.

Não podemos comparar-nos com a Dinamarca, não temos o seu capital económico, mas temos um capital humano infindável, temos um manancial de predicados – somos solidários, abertos ao mundo, transparentes, prestativo … –, que nos faz sobressair, em qualquer parte do mundo, e pelas melhores razões.

A forma como as escolas se podem organizar já aponta para a implementação de práticas diferenciadoras, a realizar através de projectos capazes de fazer a diferença, capazes [quem sabe!] de construir outros rankings, de inventar outros “quadros de honra, que evidenciem competências humanistas.

Assim, é urgente promover uma escola que se diz universal, obrigatória e gratuita, onde as aprendizagens sejam significativas, desenvolvidas através de práticas e processos de aprendizagem e formação cooperada, que desenvolvam a capacidade de reflexão e competências de comunicação, capazes de levar os alunos a assumir compromissos e práticas de entreajuda.