domingo, 13 de abril de 2025

Quando antes do significado é o significante que importa

(...) na hora de ler o poema, ouvir é o que mais importa! Vejo uma palavra, um verso, uma estrofe, e é a sua voz, num encadeamento de sons, que quero ouvir. A sonoridade e o ritmo dela decorrente (a que se junta a configuração das linhas que fazem os versos), concorrem, mais do que em qualquer outro tipo de texto, para aquela percepção (livre do significado preciso das palavras), que dá sentido ao poema – Entre amigos, não consigo falar de um poema sem dizê-lo ou trazer para a conversa a sua leitura; quer dizer, se me perguntam sobre ele, não o sabendo de cor ou não o tendo presente, apenas me ocorre dizer: Ah, tens que lê-lo! Mas se for um texto em prosa consigo falar dele, sem tê-lo presente, precisamente porque me obrigou a outro tipo de esforço: precisei de entrar nele pela conquista, antes de ser (ou não) conquistado por ele.

E aqui entra o meu argumento, em defesa da integração da poesia no processo de iniciação à aprendizagem da leitura: LER MAIS >>>

quinta-feira, 20 de março de 2025

O outro é uma mais-valia *

Laurent Reynaud

Do «penso, logo existo» de Descartes ao «penso porque tu existes» de Albert Jacquard, há o outro, a alteridade como motor do pensamento. Pensar é ter dúvidas, mas para isso as nossas certezas e representações precisam ser desestabilizadas. A ambição do professor é desenvolver o pensamento, incutindo o reflexo da dúvida fundamentada. 

Na prática, estamos constantemente a caminhar sobre uma corda bamba. Por um lado, há o risco da dúvida generalizada, que abre abismos de suspeita permanente, de pensamento confuso e estéril: será que ainda devemos ter dúvidas sobre o aquecimento global antropogénico, sobre a esfericidade da Terra...? Por outro lado, há o abismo das certezas dogmáticas e das crenças que não toleram, verdadeiramente, a dúvida: o que podes dizer a um aluno que afirma que «o homem não é um animal, que o homem é assim mesmo», ou que «os dinossauros são uma fantasia, nunca existiram». A queda, para um lado ou para o outro, ao sabor do vento, mergulha num confinamento ideológico que só reforça os laços do clã. A aparente solidariedade do grupo tranquiliza e conforta ao mesmo tempo que conforma. Entre os dois, há o confronto de opiniões, de representações e de «certezas» que suscita dúvidas e activa a investigação racional através do pensamento. 

O desacordo é aqui frutuoso, desde que cada um possa exprimir as suas opiniões e ouvir as dos outros sem ser desacreditado de antemão. Não se trata do exercício de hábitos espontâneos, mas de hábitos que temos de aprender (e ensinar) a praticar. Muitas vezes, porém, o nosso ensino transmite conceitos de forma dogmática, sem utilizar muito o recurso da alteridade. O máximo que é costume fazer-se é recolher as ideias dos alunos, durante as avaliações diagnósticas, mas muito raramente as comparamos com a forma como os outros as vêem. Aprender, organizando o confronto de pontos de vista, significa aprender a duvidar com os outros e a agradecer-lhes por isso. É isto que o trabalho de grupo, assente no conflito sócio-cognitivo, propõe. Se for utilizado regularmente, podemos, razoavelmente, apostar que os alunos verão a sua utilidade, muitas vezes expressa no registo da crença: «O outro é uma mais-valia».


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* in Faire collectif pour apprendre, Paris, ESF, 2023 (versão digital)

quinta-feira, 13 de março de 2025

Tu és livre e deves portanto libertar-te *

Vergílio Ferreira
A liberdade começa em saberes o que te oprime. Não bem em haver opressão, mas em reconhecê-la como tal. Porque pode haver opressão e tu julgá-la uma fatalidade; porque pode haver opressão e convencerem-te de que é necessária para a liberdade que te prometem. 

Só a liberdade absoluta é um perpétuo horizonte, para lá de todos os horizontes, que é o horizonte do impossível. Mas é nos limites humanos que tu hás-de querer ser livre e esses são os limites do homem, ou seja, do possível. Por isso não aceites que te inventem a liberdade mas apenas que te ajudem na tua libertação. Não admitas que ninguém seja livre por ti, mas assume tu próprio essa difícil dignidade. Reduz ao máximo o baldio para os outros, para que sejas tu ao máximo em tudo aquilo que fores. Não consintas que alguém seja a tua própria voz e chame à sua vontade a vontade que é tua. 

Ninguém é livre sozinho, porque o é apenas com os outros. Assim, só com os outros tu o poderás ser. Mas ser livre com os outros não é serem-no os outros por ti. Que a fronteira da tua liberdade te não seja a porta da casa para que tu sejas livre dentro e fora dela. Que a tua liberdade comece no pão que te espera à mesa e persista no desconhecido que te espera na rua; na palavra que pensaste e naquela que disseste; na paz do teu sono e na agitação da vigília; naquilo que és para ti e no houveres de ser para os outros; naquilo que és tu e naquilo que mostras ser. 

Constrói a tua alegria, mesmo a tua amargura, e não esperes que te digam se o estar triste ou alegre está previsto num programa. Que a distância de ti a ti seja por ti preenchida e nunca pela polícia ou um director de consciência — seu irmão. Tu és livre.

É portanto do teu dever libertares-te.

* Fonte: Vergílio Ferreira, Contra-Corrente (1969-76), Lisboa: Livraria Bertrand, 1980, pp. 217-18.

quarta-feira, 12 de março de 2025

Introdução à metafísica *

Martin Heidegger
Um texto de 1935. Quem diria!

Essa Europa, estando num estado de cegueira incurável, sempre pronta para se apunhalar a si mesma, encontra-se hoje na grande tenaz, encurralada entre a Rússia de um lado e a América do outro. A Rússia e a América, consideradas metafisicamente, são ambas a mesma coisa; a mesma fúria desolada da desenfreada técnica e da insondável organização do homem vulgar. Quando o recanto mais remoto do globo tiver sido conquistado pela técnica e explorado pela economia, quando um qualquer acontecimento se tiver tornado acessível em qualquer lugar a qualquer hora e com uma rapidez qualquer, quando se puder «viver» simultanemanete um atentado a um rei em França e um concerto sinfónico em Tóquio, quando o tempo for apenas rapidez, momentaneidade e simultaneidade e o tempo enquanto história tiver de todo desaparecido da existência de todos os povos, quando o pugilista for considerado o grande homem de um povo, quando os milhões de manifestantes constituirem um triunfo — então, mesmo então continuará a pairar e estender-se, como um fantasma sobre toda esta maldição, a questão: para quê? — para onde? — e depois, o quê?

O declínio espiritual da terra está tão avançado que os povos ameaçam perder a última força espiritual que permite sequer ver e avaliar o declínio como tal. Esta simples constatação nada tem que ver com um pessimismo cultural nem tão-pouco, como é óbvio, com um optimismo; pois o obscurecimento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odienta contra tudo o que é criador e livre, atingiram, em toda a terra, proporções tais que categorias infantis como pessimismo e optimismo já há muito se tornaram ridículas.

Fonte: Martin Heidegger, Introdução à Metafísica, tradução de Mário Matos e Bernhard Sylla, Lisboa: Instituto Piaget, s.d., p. 45.