domingo, 13 de abril de 2025
Quando antes do significado é o significante que importa
quinta-feira, 20 de março de 2025
O outro é uma mais-valia *
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Laurent Reynaud |
Do «penso, logo existo» de Descartes ao «penso porque tu existes» de Albert Jacquard, há o outro, a alteridade como motor do pensamento. Pensar é ter dúvidas, mas para isso as nossas certezas e representações precisam ser desestabilizadas. A ambição do professor é desenvolver o pensamento, incutindo o reflexo da dúvida fundamentada.
Na prática, estamos constantemente a caminhar sobre uma corda bamba. Por um lado, há o risco da dúvida generalizada, que abre abismos de suspeita permanente, de pensamento confuso e estéril: será que ainda devemos ter dúvidas sobre o aquecimento global antropogénico, sobre a esfericidade da Terra...? Por outro lado, há o abismo das certezas dogmáticas e das crenças que não toleram, verdadeiramente, a dúvida: o que podes dizer a um aluno que afirma que «o homem não é um animal, que o homem é assim mesmo», ou que «os dinossauros são uma fantasia, nunca existiram». A queda, para um lado ou para o outro, ao sabor do vento, mergulha num confinamento ideológico que só reforça os laços do clã. A aparente solidariedade do grupo tranquiliza e conforta ao mesmo tempo que conforma. Entre os dois, há o confronto de opiniões, de representações e de «certezas» que suscita dúvidas e activa a investigação racional através do pensamento.
O desacordo é aqui frutuoso, desde que cada um possa exprimir as suas opiniões e ouvir as dos outros sem ser desacreditado de antemão. Não se trata do exercício de hábitos espontâneos, mas de hábitos que temos de aprender (e ensinar) a praticar. Muitas vezes, porém, o nosso ensino transmite conceitos de forma dogmática, sem utilizar muito o recurso da alteridade. O máximo que é costume fazer-se é recolher as ideias dos alunos, durante as avaliações diagnósticas, mas muito raramente as comparamos com a forma como os outros as vêem. Aprender, organizando o confronto de pontos de vista, significa aprender a duvidar com os outros e a agradecer-lhes por isso. É isto que o trabalho de grupo, assente no conflito sócio-cognitivo, propõe. Se for utilizado regularmente, podemos, razoavelmente, apostar que os alunos verão a sua utilidade, muitas vezes expressa no registo da crença: «O outro é uma mais-valia».
quinta-feira, 13 de março de 2025
Tu és livre e deves portanto libertar-te *
A liberdade começa em saberes o que te oprime. Não bem em haver opressão, mas em reconhecê-la como tal. Porque pode haver opressão e tu julgá-la uma fatalidade; porque pode haver opressão e convencerem-te de que é necessária para a liberdade que te prometem. Vergílio Ferreira
Só a liberdade absoluta é um perpétuo horizonte, para lá de todos os horizontes, que é o horizonte do impossível. Mas é nos limites humanos que tu hás-de querer ser livre e esses são os limites do homem, ou seja, do possível. Por isso não aceites que te inventem a liberdade mas apenas que te ajudem na tua libertação. Não admitas que ninguém seja livre por ti, mas assume tu próprio essa difícil dignidade. Reduz ao máximo o baldio para os outros, para que sejas tu ao máximo em tudo aquilo que fores. Não consintas que alguém seja a tua própria voz e chame à sua vontade a vontade que é tua.
Ninguém é livre sozinho, porque o é apenas com os outros. Assim, só com os outros tu o poderás ser. Mas ser livre com os outros não é serem-no os outros por ti. Que a fronteira da tua liberdade te não seja a porta da casa para que tu sejas livre dentro e fora dela. Que a tua liberdade comece no pão que te espera à mesa e persista no desconhecido que te espera na rua; na palavra que pensaste e naquela que disseste; na paz do teu sono e na agitação da vigília; naquilo que és para ti e no houveres de ser para os outros; naquilo que és tu e naquilo que mostras ser.
Constrói a tua alegria, mesmo a tua amargura, e não esperes que te digam se o estar triste ou alegre está previsto num programa. Que a distância de ti a ti seja por ti preenchida e nunca pela polícia ou um director de consciência — seu irmão. Tu és livre.
É portanto do teu dever libertares-te.
* Fonte: Vergílio Ferreira, Contra-Corrente (1969-76), Lisboa: Livraria Bertrand, 1980, pp. 217-18.
quarta-feira, 12 de março de 2025
Introdução à metafísica *
Essa Europa, estando num estado de cegueira incurável, sempre pronta para se apunhalar a si mesma, encontra-se hoje na grande tenaz, encurralada entre a Rússia de um lado e a América do outro. A Rússia e a América, consideradas metafisicamente, são ambas a mesma coisa; a mesma fúria desolada da desenfreada técnica e da insondável organização do homem vulgar. Quando o recanto mais remoto do globo tiver sido conquistado pela técnica e explorado pela economia, quando um qualquer acontecimento se tiver tornado acessível em qualquer lugar a qualquer hora e com uma rapidez qualquer, quando se puder «viver» simultanemanete um atentado a um rei em França e um concerto sinfónico em Tóquio, quando o tempo for apenas rapidez, momentaneidade e simultaneidade e o tempo enquanto história tiver de todo desaparecido da existência de todos os povos, quando o pugilista for considerado o grande homem de um povo, quando os milhões de manifestantes constituirem um triunfo — então, mesmo então continuará a pairar e estender-se, como um fantasma sobre toda esta maldição, a questão: para quê? — para onde? — e depois, o quê?
O declínio espiritual da terra está tão avançado que os povos ameaçam perder a última força espiritual que permite sequer ver e avaliar o declínio como tal. Esta simples constatação nada tem que ver com um pessimismo cultural nem tão-pouco, como é óbvio, com um optimismo; pois o obscurecimento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odienta contra tudo o que é criador e livre, atingiram, em toda a terra, proporções tais que categorias infantis como pessimismo e optimismo já há muito se tornaram ridículas.
Fonte: Martin Heidegger, Introdução à Metafísica, tradução de Mário Matos e Bernhard Sylla, Lisboa: Instituto Piaget, s.d., p. 45.