Neste excerto de “Cinco ideias educativas que eu aprendi sem professor”, David Rodrigues, através do relato da prática educativa de um jovem estagiário, reflecte sobre a urgência de «questionar as regras que excluem as pessoas e que as avaliam com base em critérios únicos e que por serem únicos, se tornam injustos».
Precisamos muito, mesmo muito, de pensar a articulação da reflexão com a acção, concepção e prática, no âmbito da educação, que só pode ser inclusiva para ser educação.
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No começo do ano letivo um jovem e empenhado estagiário de Educação Física apresentou-se à sua turma do 6º ano de escolaridade. Chamou-lhe atenção, um aluno obeso, na verdade, muito obeso. Feitas as apresentações e explicadas as regras e o funcionamento da disciplina, mandou os alunos sair. O tal aluno obeso ficou para trás e pediu para falar ao professor em particular. "Muito bem disse-lhe o professor puxando-o para o lado. Como te chamas?" "Daniel" — respondeu o aluno. "E de que se trata?" "Sabe professor no ano passado tive dispensa das aulas de Educação Física por ser... assim... "— e deixou cair os braços desanimados ao longo do corpo. O jovem e militante professor respondeu: "Isso de dispensas não existe nas minhas aulas. Havemos de encontrar maneiras de tu participares como todos os outros".
A verdade é que o tempo parecia dar razão à sugestão do Daniel: quando tinha de integrar uma equipa originava exclamações de desagrado dos colegas, ninguém lhe passava a bola com medo de que ele estragasse o jogo e às vezes os colegas não se inibiam de alguma chacota e risota sobre a forma como ele se movia.
O professor apercebeu-se da dramática situação e depois de várias tentativas frustradas de incluir o Daniel decidiu tomar uma atitude mais radical.
Um dia chegou à aula e disse: "Hoje vamos fazer uma atividade de competição muito especial: chama-se um crosse de precisão! Vai funcionar da seguinte maneira: vamo-nos organizar em equipas de quatro elementos e cada uma das equipas vai correr à volta da escola. Vai correr uma vez e eu registo o tempo que demoraram e mais tarde a mesma equipa vai fazer o mesmo percurso pela segunda vez e eu registo de novo o tempo que demoraram. Ganha a equipa que tiver uma diferença de tempo mais pequena entre a primeira e a segunda corrida".
Começaram-se a escolher as equipas e no fim das escolhas sobrou o Daniel que teve ser integrado à força numa equipa muito mal-humorada por ter de o receber. E começaram as corridas. O primeiro grupo chegou à meta muito disperso: o primeiro a chegar perguntou ao professor "Qual foi o meu tempo?" E o professor respondeu:" O tempo é o do teu grupo e por isso vou registar o tempo do último elemento do teu grupo que chegou".
O grupo "do Daniel" partiu também vertiginoso. O Daniel que iniciou o percurso a caminhar. Quando os seus colegas atravessaram a meta, o Daniel era ainda um ponto longínquo... O grupo, muito desanimado, esperou que o colega chegasse à meta com a certeza de que o atraso dele era o fim das suas possibilidades de sucesso.
Quando chegou a altura de fazer a segunda corrida do grupo, o Daniel partiu com o seu imperturbável ritmo de relógio suíço e o tempo que levou a cobrir o percurso foi muito semelhante ao que se tinha registado na primeira corrida.
Feitas as contas o professor informou que tinha sido o grupo que integrava o Daniel que tinha ganho: tinham conseguido só três segundos de diferença entre o primeiro e o segundo percurso e isso devia-se ao ritmo constante com que o Daniel tinha feito os dois percursos.
O interessante é que durante mais de um mês as perguntas dos outros alunos não pararam. "Ó professor, explique lá outra vez porque é que o grupo do Daniel ganhou!" ou "Então o Daniel foi o último e ganhou a quem chegou em primeiro? Não entendo!", "Mas afinal, se isto é uma corrida como é que os mais lentos podem ganhar?" etc. etc.
O jovem professor aproveitou para escrever no relatório de estágio uma reflexão sobre o papel e as formas de competição em Educação, mas, melhor do que isso, recebeu passados muitos anos, um abraço comovido do Daniel, então já adulto e professor universitário, que lhe disse que nunca se tinha esquecido do "crosse de precisão".
Aqui aprendi que não é conversa fiada dizer que para compreender o mundo (e logo, perceber o que se passa na Educação) faz mesmo falta contar com todos. E todos quer dizer mesmo todos: pessoas com todas as variáveis das diferenças humanas. O caso do Daniel foi uma lição que nos foi possível aprender porque alguém pensou em questionar as regras que excluem as pessoas e que as avaliam com base em critérios únicos e que por serem únicos, se tornam injustos.