Versão condensada em português de Daniel Lousada
No domínio da educação, há certas tomadas de posição simplesmente irritantes, em obras de divulgação pedagógica como no livro On achève bien les écolier, de Peter Gumbel [autor britânico radicado em França], um panfleto que recupera teses bem conhecidas desde há décadas, sobre os efeitos prejudiciais da competição desenfreada entre alunos, o carácter inutilmente stressante das avaliações sistemáticas, o cansaço provocado pelo excesso de exercícios repetitivos e de trabalhos de casa, a ineficácia de programas idiotamente enciclopédicos, etc.
Quando apareceu, os grandes meios de comunicação social logo se apressaram a falar do livro como se do acontecimento do século se tratasse (...).
Entendamo-nos: estou, em grande parte, de acordo com algumas das constatações de Peter Gumbel. Até poderia fazê-las minhas numa conversa de amigos e não apenas como provocação. Mas não as teria apresentado de maneira tão caricatural, sem tomar algumas precauções, sem evocar, pelo menos, os argumentos dos meus adversários. Quanto mais não fosse porque no âmbito educativo, mais do que em qualquer outro, creio estarmos obrigados a aplicar o “princípio da tolerância”, enunciado por Paul Ricoeur: “A tolerância não é uma concessão que fazemos ao outro; é reconhecer o princípio de que uma parte da realidade me escapa”.
Não compreendo como é que declarações tão radicais, tão pouco argumentadas histórica e filosoficamente, que apresentam, como novidades extraordinárias, banalidades que se vêm arrastando desde há um século, na bibliografia pedagógica, podem receber tão ampla aprovação. Até porque, se queremos verdadeiramente animar a polémica, mais vale referir certos textos dos inícios da Educação Nova, como o famoso epigrama de Adolfo Ferrière.*A questão é que Peter Gumbel não disse nada de diferente deste poema, só que o disse com menos talento. O que não impediu os comentadores de serviço, ignorantes da história da pedagogia, de o encontrarem “refrescante” (...), decisivo para o futuro da educação”. Enaltece-se, assim, um pensamento que tem sido relativizado, porque objecto de numerosas e diversas interpretações, sobre o qual os pedagogos se interrogam: (...) Que quer dizer “a actividade da criança deve servir para alguma coisa”? Estamos a falar de uso imediato, de uso futuro, de uso pessoal e cultural? Pode-se opor tão facilmente as mãos e o cérebro? Não haverá um ir e vir permanente entre ambos? O silêncio e a memória serão verdadeiramente inúteis? O aluno pode investigar ciência sem que alguém o guie na sua investigação? Poderá compreender o mundo graças a modelos científicos, apresentados pelo adulto de forma magistral e, ainda assim, aceder à alegria de compreender? Como é possível que um século depois de Ferrière, se passem por alto todas estas perguntas? E o que é mais estranho, como é possível que os defensores oficiais da anti-pedagogia, grandes intelectuais ou pequenos fazedores de opinião das redes sociais, percam o controlo quando alguém apresenta, comedidamente e com infinita prudência, algumas teses sobre a necessidade de diferenciar a pedagogia (...), e fiquem misteriosamente silenciosos perante panfletos pouco escrupulosos na sua enunciação, apesar de terem muito mais impacto na opinião pública do que os escritos pedagógicos que estigmatizam? Como explicar que os tenham tratado – como me trataram tantas vezes – de “impostor” ou de “coveiro” da cultura?Há algo particularmente irritante, quando vemos as intervenções das estrelas da “pedagogia espectáculo”, a navegar, sem correr o menor risco, nas águas dos lugares comuns mais consensuais. (...) Veja-se, por exemplo, Ken Robinson na sua conferência TED mais célebre. Com muita habilidade e humor, explica que todas as crianças são espontâneas, criadoras e que o sistema escolar, ao submetê-las a exercícios absurdos e estandardizados, mata nelas toda a criatividade. Convoca-nos a “respeitar mais a infância”, a “cultivar cuidadosamente a sua imaginação”, e exorta-nos a inventar uma educação “que assente na busca incessante da capacidade criadora de cada indivíduo”.
Quem poderia opor-se a tais intenções gerais tão generosas? Ken Robinson brinca no registo dos lugares comuns mais sedutores e, com isso, todos os pais podem acreditar que os seus “rebentos” são espontaneamente génios e que, se não conseguirem sê-lo na escola, é porque esta os arruinou profundamente. Quanto aos professores que descobrem que os seus alunos não são nada criativos (...), podem contentar-se em condenar o "sistema" e apelar à "revolução", para não terem de enfrentar a mínima "mudança" concreta nas suas práticas.
A verdade é que a "natureza criativa" da criança não foi atestada nem repartida de forma equitativa no campo social. Por outro lado, não é assim tão certo que, o que tomamos por uma regressão do imaginário, à medida que a criança cresce, não seja, afinal, a descoberta do princípio da realidade que, durante algum tempo, restringe o campo do possível, mas que também dá acesso ao conhecimento que leva a um verdadeiro domínio do mundo: Como sabemos, o pensamento científico é simultaneamente abertura e renúncia; implica formular hipóteses e testá-las, a fim de identificar quais são os verdadeiros instrumentos de inteligibilidade do mundo, "saberes estabilizados", que permitem aos seres humanos partilhar conhecimentos comuns.
Além disso, a exaltação da “criança criativa”, perante a qual os adultos só podem maravilhar-se, o uso constante da metáfora hortícola, que apresenta a criança como uma planta que tem em si todo o potencial para florescer naturalmente, sob o nosso olhar extasiado, ignora as terríveis desigualdades sociais resultantes, em particular, da educação familiar.
É por isso que não podemos contentar-nos – mesmo que o façamos com a maior habilidade – em pregar a abstenção educativa para "deixar a criatividade desenvolver-se livremente". Mais ainda: não podemos insinuar que a criatividade é um dom, que apenas necessita que não se lhes imponham restrições escolares. A criatividade é algo que também se “ensina”; requer uma pesquisa permanente do professor para encontrar situações estimulantes (...), uma atitude positiva e exigente de expectativas em relação a cada aluno. Podemos certamente assumir que Ken Robinson sabe tudo isto... E no entanto, dando a entender o contrário, enche o seu público de ilusões, ao mesmo tempo que anestesia, com o seu optimismo absurdo, qualquer verdadeira inventividade pedagógica.
Daqui a minha irritação: na circulação de lugares comuns pedagógicos que, por trás de uma unanimidade de fachada, podem levar ao desenvolvimento de teorias e práticas contraditórias que, na realidade, perseguem objectivos opostos. Ora bem, os nossos filhos merecem muito melhor. Eles merecem, ao menos, um pouco de lucidez. Eles merecem o nosso esforço em descobrir as verdadeiras questões pedagógicas e políticas em jogo na nossa educação. Merecem adultos com os pés no chão, que não reneguem nada, mas que também não se deixem enganar.
____________________
* In Pédagogie des lieux communs aux concepts clés, ESF Éditeur, Paris: 2016
Sem comentários:
Enviar um comentário