terça-feira, 26 de setembro de 2023

A literatura como motor de conhecimento

Percorro as páginas de "Tempo de erros", relato autobiográfico de M
UHAMMAD CHUKRI [1], e detenho-me ao ler:«O demónio da Literatura apoderou-se de mim e eu comecei a interessar-me mais pela leitura de obras literárias do que pela psicopedagogia ou pelo regulamento escolar». E leio mais adiante: «O professor de psicopedagogia apanhou-me a ler Os Miseráveis e expulsou-me da aula aos gritos: "Isto é uma sala de aula, não uma biblioteca"». E dou comigo a divagar à volta de uma escola, onde a literatura é porta de entrada, se não de todos, de grande parte dos saberes: E se as salas de aula estivessem implantadas no interior de uma grande biblioteca, fossem também as suas salas de leitura, com paredes de vidro a deixar ver as estantes e portas de acesso a dar para ela? Um cenário de ficção, obviamente!

«As histórias, como as parábolas, os enigmas e os símbolos, dirigem-se à área mais reflexiva da pessoa, onde o afeto e o conhecimento se unem, para nos fazer desejar, admirar e sonhar», diz PEDRO CUNHA, ao que JOSÉ MATIAS ALVES acrescenta«Unir o afeto ao conhecimento, ligar a emoção à razão. Assumir que não há saber sem sabor. Fazer de cada lição uma história, uma resposta»[2].

Sei pouco das razões que levaram MUHAMMAD a trocar a aula de psicopdagogia pela leitura d'Os Miseráveis (Certamente, mais do que as que me levavam a desenhar bonecos, enquanto fazia de conta que tirava notas da aula). Mas gosto de pensar que algumas estarão algures por ali E não sei também o que faz, hoje, um professor, que apanha um aluno a trocar a sua aula pelo “demónio da literatura”: pedir-lhe para fechar o livro e estar atento à lição? Não sei! Mas prefiro imaginar, talvez, a ouvi-lo perguntar o que está a ler, a ouvir as razões que o levaram à trocaE procurar, quem sabe, ligações prováveis entre os conteúdos do livro e da aulaIsto imaginando como possível, que um aluno escolha a leitura de uma obra literária, para "fugir" da sala de aula. Algo improvável, num tempo em que o smartphone tende a desviar-nos do livro ou mesmo da leitura de textos, literários ou não [3].

Para assinalar o "Dia Mundial do Livro", algumas escolas fazem do livro a "estrela do dia". Em todas as tur­mas, seja qual for a disciplina, no tempo agendado, os alunos lêem em voz alta excertos de uma obra previa­mente escolhida para o efeito. Assim, durante um curto espaço de tempo, os alunos trocam a matemática, a mú­sica, a educação física,... pela literatura, num ritual que António Nóvoa classificaria de "pro­jecto de ano bis­sexto"[4] ou para a fotografia que provoca a notícia, dirão mui­tos de nós, e pouco mais. Não é, então, "fugas da sala de aula", através da leitura de obras literárias, que procuro, mas encontrar portas que se abram à sua en­trada, nos lugares onde não é suposto a entrada da lite­ratura. Mas, com um currículo partido às fatias, como fazer entrar a literatura, com as suas histórias [ou histó­rias apenas], em todas as disciplinas? Nem todas elas têm esta “vocação” literária, é certo. Mas isto não signi­fica que os diferentes saberes, que te­mos para ensinar, não possam ser contaminados pela litera­tura [5]. Mas para isso é preciso aproveitar todas as opor­tunidades, criando-as se preciso for, de fazê-la pre­sente [6] e não apenas, provocando a sua “entrada a mar­telo”, no Dia Mundial do Livro

Daniel Lousada




[1] Muhammad Chukri, Tempo de Erros, Lisboa, Antígona [Ver citação >>>]
[2] José Matias Alves, Uma pedagogia da fascinação [LER>>>]
[3] Não se trata de recusar o digital como suporte do texto. Para mim o livro digital (e-book) também é livro, e não deveria ser misturado no sim ou não à presença do smartphone na sala de aula [assunto que espero abordar em breve].
[4] António Nunes conta que António Nóvoa, aquando da visita a uma sala de aula, de uma escola, na cidade do Porto, refere-se ao trabalho da professora nos seguintes termos: "Vê-se bem que nesta sala não existem projectos de anos bissextos", quer dizer, projectos que acontecem apenas em dias festivos e com pouco ou nenhum conteúdo educativo.
[5] Na busca de ligações com a psicopedagogia, leio n'Os Miseráveis, que entretanto revisitei: «Se uma alma é deixada na escuridão, pecados serão cometidosE a responsabilidade não é de quem comete o pecado, mas daqueles que causam a escuridão (...). Certamente nós falamos connosco mesmos; não há um ser pensante que não tenha experimentado isso. Alguém até poderia dizer que a palavra é um mistério ainda mais magnífico quando, dentro do homem, ela viaja de seu pensamento até à consciência, e retoma da consciência ao pensamento»Victor Hugo, Os Miseráveis, Círculo de Leitores, 1982: vol. 1, pp. 26 e 311.
[6] A título de exemplo, o poema de Manuel António Pina, Coisas que não há que há, traz a literatura para o planeamento [VER>>>]; e O pequeno livro da desmatemática, leva a matemática até ao universo das histórias. 

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Inovação ou o já visto pintado com outras cores?

"(...) Insistimos muito menos no aspecto novidade do que no da adaptação às necessidades do nosso século. Uma técnica de escola tradicional pode perfeitamente integrar-se nas nossas concepções, se permitir e facilitar as formas de trabalho que preconizamos",* defendem Freinet e Salengros na pequena brochura a que deram o título de "Modernizar a Escola".* E desvalorizam o valor da novidade: do que a escola precisa é de definir-se pela actualidade [modernidade, no dizer deles] das suas propostas, e não pela sua novidade ou da novidade dos instrumentos que usa; do inovar por inovar ou como instrumento de propaganda, acrescento eu.

A história recente da educação mostra-nos uma escola obcecada pelas inovações que não são outra coisa mais do que "novidades velhas”, mesmo velhas, na maior parte dos casos, pintadas com outras cores, disfarçadas de coisa nova: fazem-nas aparecer com estrondo para logo se esfumarem passada a surpresa inicial, destronadas por outras com cores mais atraentes; inovação apenas para quem não sabe nada da sua história. E esta obsessão é de tal forma que, por vezes, não basta trazer para a escola este ou aquele instrumento pedagógico, é preciso transformá-lo numa caricatura: o projecto pedagógico, por exemplo, quando exige a participação de todas as disciplinas, mesmo que não caibam todas nele! É o instrumento pedagógico a ocupar o lugar de destaque e não o problema pedagógico que é suposto um projecto resolver. Então, o que começou por ser um instrumento, é como que elevado à condição de pedagogia, um mantra a que é necessário aderir por inteiro: o projecto pedagógico transforma-se em "pedagogia do projecto", a diferenciação pedagógica em "pedagogia diferenciada" …, e até a pergunta, essencial no desenho de um projecto, se transforma numa pedagogia: a “pedagogia da pergunta”.**

Inovar? Sim, quando é necessário inovar, mas conscientes de que a inovação não tem de ser novidade, de que a sua preocupação não é essa: impressionar pela novidade que traz. Mas não querendo impressionar pela novidade, tem, no entanto, de trazer algo de novo em si, que identifique a inovação que propõe. Do latim innovatione [renovação], manifesta-se numa forma renovada, que incorpora novas funções, necessárias para responder melhor aos novos desafios educativos; ou pode ser, simplesmente, um olhar sobre um objecto do passado, que actualiza as suas possibilidades no presente: "O mais importante não é o novo que se vê, mas o que se vê de novo no que já tínhamos visto", diria Vergílio Ferreira.*** É este olhar e só este, que se deve pedir aos professores. É com este olhar que precisamos convocar os saberes dos pedagogos do passado, que nos fizeram chegar aqui: Freinet [entusiasta das tecnologias do seu tempo, o que não teria feito com os recursos tecnológicos de que dispomos!], Montessori, Dewey, ... e tantos outros. Mas lançar o nosso olhar sobre eles não é deixar que ressuscitem numa escola, como se fosse possível uma escola Freinet, ou uma escola Montessori. Reconhecer a actualidade pedagógica de alguns dos seus instrumentos, ou mesmo todos, é uma coisa, outra bem diferente é ressuscitá-los por inteiro numa proposta que exclui, à partida, todas as outras. Daqui a importância da história da pedagogia, que não nos deixa levar ao engano.

Repito: do que a escola precisa é de definir-se pela actualidade das suas propostas, e não pela sua novidade ou da novidade dos instrumentos que usa. Ou pior, pelo nome do passado que afixamos a uma proposta para lhe dar crédito.

"Qualquer que seja a aparência da novidade, eu não mudo com medo de perder com a troca", escreveu Montaigne. Eis a máxima necessária para resistir àquela novidade feita "inovação", que nos pede adesão por impulso.

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C. Freinet e R. Salengros, Modernizar a escola, Lisboa, Dinalivro, 1977.
** Laurence de Cock, referindo-se ao que designa de «pedagogias alternativas» escreve: "No sistema educativo público, permite aos ministérios manter um discurso de «modernização» sem gastar o mínimo euro".  Quer dizer, se alguma coisa está a falhar não é por falta de apoio, mas da pouca vontade em inovar. Só que, diferentemente do que nos querem fazer crer, "mais do que a multiplicação de exortações ministeriais à inovação, ela depende também da liberdade que é deixada aos professores para fazerem experiências nas salas de aula e para se dotarem de ferramentas de acompanhamento de avaliação dos resultados. As reformas educativas recentes vão exactamente no sentido inverso. Não é, portanto, às pedagogias alternativas que é preciso apontar o dedo, mas à escolha que uma instituição faz de privilegiar umas em detrimento de outras; de as utilizar de forma distorcida tendo como objectivo camuflar as injustiças escolares" [Ler Mais >>>]. 
*** Vergílio Ferreira, Pensar, Lisboa, Bertrand Editora, Lisboa, 1992.

domingo, 3 de setembro de 2023

Sobre livros de leitura obrigatória

Daniel Lousada
Quando me disponho a ler, naquela busca do prazer que o texto tem para dar, não estou à espera que me venham a fazer perguntas (de interpretação). As perguntas que importam reservo-as para mim, antes mesmo de iniciar a leitura, interrogando o livro pelo seu título, pelo que me diz a configuração da sua capa, por uma ou outra expressão que, prendendo-me o olhar ao folheá-lo, promete-me o prazer da sua leitura, a que se seguirão as perguntas que eu farei, tomada a decisão de iniciar a aventura.

Não devia ser permitida a "pergunta de interpretação" sobre os textos que queremos ensinar as nossas crianças e jovens a (de)gostar. É impossível a leitura com prazer à sombra das perguntas que o(a) professor(a) irá fazer. Ler para responder faz com que a resposta que tenho que dar se sobreponha ao prazer que o texto pode oferecer.

Até há bem pouco tempo, os livros que entravam na escola do 1º Ciclo, estavam a salvo desta prática. Mas com a adopção de livros de leitura obrigatória, de repente, os manuais escolares parece que deixaram de ser suficientes para satisfazê-la, e os livros que era suposto ensinar a amar, passaram a entrar no circuito das "perguntas de interpretação", que arriscam afastar o leitor do livro. Porquê? Se são obrigatórios, a administração da escola, que tem no controlo burocrático das práticas o seu principal objectivo, faz deles assunto para testes e exames, para que sejam obrigatórios mesmo!

Na escola do 1º ciclo, pelo menos, onde o que importa é trazer leitores para os livros, não devia haver livros de leitura obrigatória. Obrigatória já é a leitura; conservemos, ao menos, a liberdade de escolha das leituras a fazer. Uma coisa é apresentar uma lista alargada de títulos aconselhados, que não põe de fora outros títulos que as crianças e os seus professores possam trazer para a escola [os livros apresentados pelo Plano Nacional de Leitura, por exemplo, poderiam ser essa lista]; outra bem diferente é dizer: estes tens que ler, queiras ou não queiras.

Não é na perspectiva da criança que me coloco! – acredito que, nestas idades, as crianças abraçam os textos que os adultos, com o seu entusiasmo, quiserem que abracem, desde que estejam ao seu alcance – É na perspectiva do professor que me coloco: eu não saberia como entusiasmar uma criança para a leitura de um livro que não me seduz [tantos livros que sou aconselhado a ler e que, por opção, não leio]. Acho que um dos principais critérios de escolha dos livros que entram na sala de aula deveria ser o(a) professor(a) gostar deles. Então, ele(a) envolve-se na leitura com os seus alunos; traz a leitura para a aula, não traz perguntas a pedir respostas certas! Lê, e ao ler, emprestando a sua voz ao texto, ao mesmo tempo que convida os seus alunos a emprestar a deles, as perguntas que importam estarão lá todas: aquelas que fazemos ao texto como leitores, implicados na leitura do livro com prazer. E o livro vira assunto de conversa; conversas iguaizinhas àquelas que temos com colegas e amigos sobre os livros que nos deram prazer ler.


SOBRE O MESMO TEMA:

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