Algum dia, em nome da preservação do ambiente, ou de qualquer outra causa, que não vislumbro, num futuro que não sei como será, cenário de ficção científica, apocalíptico talvez, o livro em papel será objecto de museu!Vem isto a propósito do debate sobre os usos e abusos da utilização dos instrumentos digitais na escola, que me traz o desconforto de estar na presença de um debate sem rumo e sem foco. Elege-se o smartphone como inimigo e, de repente, não é só este dispositivo que está em causa, mas todos os dispositivos electrónicos, como suporte da informação em geral, e do texto em particular. Somos o oito ou oitenta, vamos do endeusamento do digital à sua diabolização, com uma rapidez surpreendente (efeito de “Maria vai com as outras”, que nos dispensa da capacidade de pensar?).Até há bem poucas semanas, quando se falava dos perigos associados ao digital, não era o seu uso, em geral, que era posto em causa, mas o seu uso sem controlo. Agora, dizem-nos que “a simples proximidade de um telemóvel é capaz de distrair os estudantes (...), prejudicar a gestão da sala de aula (...) e pôr em risco a interacção humana”, como que a admitir que o trabalho na sala de aula (se de trabalho se pode falar, nestas condições) se desenrola em roda livre [1].
O que caracteriza a escola como espaço educativo, é o controlo do trabalho de aprendizagem que nele se realiza. Não se vai para a escola para usar os instrumentos de trabalho (digitais ou quaisquer outros), à vontade do freguês, sem critérios ou sem qualquer objectivo educativo no horizonte. Então, a questão está em saber em que condições, e por quem, esse controlo é exercido. Aliás, como dizia António Nunes, no programa Antena Aberta, a propósito da entrada, na escola, das tecnologias de informação e comunicação, “há momentos em que a voz é importante e as canetas estão paradas” [2]. Ora, é precisamente ao professor que compete gerir estes momentos: decidir sobre os tempos em que os smartphones estão ligados ou desligados. Não acho, assim, pelo que se diz e escreve, que seja um problema que resulte da proximidade dos alunos com estes dispositivos, mas da dificuldade, ou mesmo da incapacidade, que grande parte dos professores sente, em gerir aqueles tempos. Consequência de uma autoridade (a sua), que a cada dia sentem que estão a perder e pensem que, desta forma, ela possa ser restaurada? [3]
Se da presença dos smartphones, na sala de aula, se pode dizer que levanta, em muitos casos, problemas difíceis de gerir, já da substituição dos manuais escolares, em papel, pelos correspondentes digitais, não vejo que problemas possa trazer. Os tablets que suportam os manuais escolares permitem o acesso a conteúdos que não queremos que sejam acessíveis aos nossos alunos? Fácil: bloqueie-se o seu acesso nesses dispositivos; façamo-los dispositivos dedicados à leitura de manuais escolares e de mais informação relacionada com eles.
Bastou a Suécia travar às quatro rodas, na digitalização dos manuais escolares para que, entre nós, se levantasse um coro de vozes a reivindicar idêntica decisão. Como se, o livro em papel, só consiga entrar na sala de aula através do manual escolar... Esquece-se que, o que se passou na Suécia, foi o resultado de uma soma de excesso, que valeria a pena analisar, não vá começarmos nós, agora, a soma de outros excessos mas de sentido contrário [4].
Para mim e para outros como eu, que gostam de livros, o manual escolar é um “livro” que não é livro. É coisa da escola, um instrumento de trabalho que, sendo bem feito (seja qual for o seu formato), poderia ser ligação a outros livros, esses sim, a merecerem ser lidos ou consultados. Além do que, o livro digital (e-book) também é livro, e são cada vez mais as editoras que, a par da edição em papel, apostam neste formato. Pela parte que me toca, confesso, são mais os livros que compro, hoje, neste formato do que em papel. Leio-os, nos dispositivos dedicados à sua leitura, com o mesmo prazer ou desprazer, dependendo do conteúdo, excepto no ecrã de um pc.Claro que, dir-me-ão, “sentes o mesmo prazer a ler e-books, porque passaste pelo livro em papel antes de chegar a eles. Quer dizer, construíste uma relação com os livros, que transportas agora para o digital; ao lê-los, na tua cabeça está, de certa forma, um livro”. E é verdade, ou acho que é verdade: o desenvolvimento do gosto pela leitura de um livro faz-se também da relação (afectiva), que conseguimos estabelecer com o objecto que suporta o texto. Quem gosta de ler também gosta de livros. Quem gosta de livros também gosta de ler. Os miúdos precisam de estar rodeados de livros para que possam relacionar-se com eles. Se não estão em casa, deveriam estar na escola, na sala de aula. O manual escolar digital só é concorrente do livro em papel se deixarmos que seja. Na Suécia, quiseram que o digital fosse concorrente do analógico. E ele fez o que lhe competia: deu cabo da concorrência! Porque deixaram que desse! Agora fazem marcha atrás, num processo em tudo semelhante, mas em sentido contrário, respeitando, supostamente, as conclusões da "ciência". Temo que se esqueça que, em educação, nem tudo (para não dizer nada) é científico; o que acontece, nesta área, tem em conta as ciências, certamente (da educação e outras), mas a sua aplicação não é científica, é pedagógica: uma acção inserida na busca do sentido do acto educativo, na sua relação com os instrumentos pedagógicos que melhor o servem [5]. Valeria a pena, certamente, trazer a voz dos pedagogos para o debate. Estranho mundo, este em que vivemos. Valorizamos o digital nas nossas vidas, mas não sabemos (nem procuramos saber) o que fazer para ajudar as nossas crianças e jovens a usá-lo de uma forma saudável! Apetece dizer, com Philippe Meirieu, “Velho devaneio filosófico: reduzir o mundo àquilo que podemos pensar dele ou àquilo que percebemos dele. E, para ter a certeza de lá chegar, fazê-lo entrar inteirinho no nosso campo de visão...” [6].
Entretanto, chegam-me notícias que dão conta de escolas que proíbem os smartphones nos recreios, aparentemente com a adesão dos miúdos: “Foi quase como se tivesse autorização para brincar” [7].
O recreio é um daqueles espaços que, embora na escola, é um espaço, de certa forma, sem controlo. Não é sobre estes espaços que escrevo. É sobre o uso dos dispositivos digitais em espaços controlados, que me atrevo a pensar. E que só neles é possível aprender a usá-los de forma saudável. Porque se não há um espaço onde as crianças possam aprender, elas aprendem, de qualquer forma, em qualquer espaço, correndo o risco de aprender mal: no recreio, por exemplo. Nestes espaços, não controlados, e só nestes, que, tantas vezes, nem vigiados são, admito que o uso destes dispositivos possa ser vedado, não sem antes procurar que a decisão seja vista como legítima, aos olhos de todos quantos serão afetados por ela. E já agora, uma provocação, ou nem tanto: porque não vedar o uso do smartphone no espaço familiar, pelas mesmas razões com que se pretende proibir o seu uso na escola?DISPONÍVEL em PDF >>>